MENTORIA PASTORAL – TEMA 2: CARÊNCIA, ORGULHO, NECESSIDADE

MENTORIA ESPIRITUAL

Tema 2: Carência, orgulho, necessidade

 

Israel Belo de Azevedo

 

“E assim é o ser humano: tão vazio que se preenche com qualquer coisa,

por mais insignificante que seja".

(Blaise Pascal)

 

1

NEUSTÃ, a carência.

Feito para conviver e interagir e desenhado com a marca da liberdade para pensar e se movimentar, o ser humano começou a cultivar o jardim que lhe foi entregue para cuidar (Gênesis 2). Livre como um pássaro capaz de alto voar, sonhou muito alto, como devia realmente se dar e assim foi até que, procurado pelo Ser-Que-Rasteja, também chamado de Neustã (2Reis 18.4), aquela que, para falar, sempre a voz aveluda e imposta, ouviu-lhe o ser humano a encantadora proposta (Gênesis 3). O Ser-Que-Rasteja garantiu-lhe atenção e afeto, desde que se tornasse seu seguidor quieto. O Ser-Que-Rasteja ofereceu-lhe aprovação, conferindo-lhe sorte em tudo que viesse querer e fazer, mesmo que resultasse em violência e destruição. O Ser-Que-Rasteja disponibilizou-lhe a liberdade que já tinha desde a criação, se lhe entregasse o controle de toda a decisão. Entre o Criador e a criatura, a criatura ergueu um muro de separação. Em respeito à humana escolha, era necessária do jardim a expulsão.

Continuamos abandonando o jardim, o jardim de nossa casa em busca de outros que parecem mais verdes com possibilidades sem fim, consumindo mentiras que nos prometem mundos e fundos, escutando afagos produzidos como estratégias baratas de sedução, ouvindo vozes que nos fazem rastejar mas nos fazem momentaneamente sentir como se estivéssemos a voar.

Continuamos entregando nossos destinos ao Ser-Que-Rasteja, nada fazendo sem lhe pedir opinião, abrindo mão de uma liberdade em nome da aceitação ou do pertencimento à mesma multidão — a dos que fazem o que todo mundo faz, a dos que pensam o que todo mundo pensa, a dos que vão onde todos vão —, assim de nossa magnífica liberdade absurdamente abrindo mão. [1]

Continuamos estúpidos, quando podíamos ser esclarecidos. Continuamos perdidos, apesar da oferta da redenção (João 3.16).

 

Ainda não nos demos conta do que somos capazes de fazer para comprar afeto.

Convivemos com nossos vazios, mesmo quando o Grande Autor é por nós reconhecido com o nosso Senhor.

Com Reinaldo, pessoa de sucesso em tudo o que punha as mãos, aconteceu. Acontece em muitas histórias.

Reinaldo era aclamado onde ia. Se havia um congresso e ele estava presente, dava logo jeito de organizar um jantar. Na hora de pagar, a conta já estava quitada. As pessoas agradeciam e ele dizia que era um prazer.

Quem conversava com ele saía animado. Suas palavras inspiravam. Seus sonhos inspiravam. Seu dinheiro, generosamente compartilhado, embora sem alarde, inspirava. Seus gestos afetuosos inspiravam.

Mas o seu casamento fracassou. Nunca ninguém soube por que. Ele apenas comentava que o trabalho o afastara de casa, nessas desculpas comuns.

Boa era a relação com sua mãe. Num dos encontros, notou o quando lhe aprazia estar com ela, receber a sua aprovação.

Sua mente estalou. Homem feito, ele ainda precisava da aprovação da mãe, já que pai de verdade não tivera.

A crise se instalou. Preciso da aprovação dos meus amigos. Sou eu mesmo amigo dos meus amigos ou preciso deles, da aprovação deles, da admiração deles?

A reflexão morou muito tempo no seu coração, até que a resposta ficou clara para ele:

— Eu compro meus amigos. Eu gosto deles, mas não posso usá-los.

Tomou coragem e procurou cada um deles:

— Quero compartilhar com você uma descoberta dolorosa. Espero que me entenda. Tenho grande apreço por você, mas descobri que muitas coisas que fiz com você e por você foi uma forma, inconsciente, de comprar seu afeto. Eu preciso de seu afeto, mas não vou mais pagar por ele.

Os amigos de verdade continuaram sendo seus amigos.

Reinaldo se libertou, embora não completamente.

Vivemos buscando o louvor dos homens, mas a glória que a importa é a aprovação por parte de Deus. Mesmo que os homens não nos nobelizem, o prêmio que vem de Deus é coroa de louros permanente sobre as nossas cabeças. Ter sido aprovados por Deus é o que nos dá confiança e esperança para continuar o que estamos fazendo.

Perdemos muito tempo fazendo coisas que levem as pessoas a nos elogiar e amar. O elogio deve ser consequência de uma vida aprovada por Deus. Precisamos saber que o louvor humano de hoje é a reprovação de amanhã. Matar um leão todo dia para arrancar louvor tem como resultado certo a drenagem de nossas forças.

Devemos sempre fazer o melhor e esperar que Deus se agrade. Quando Ele se agrada, Ele se agrada e é para sempre. Ele não elogia hoje e retirar amanhã o louvor que nos dá.

Que louvor estamos buscando?

 

2

BABEL, o orgulho.

Quando o ser humano começou a fazer suas primeiras conquistas, uma das mais notáveis foi construir uma torre (Gênesis 11) cujo objetivo era chegar ao céu, para ser tão poderoso quanto o Criador e, ato contínuo, dispensá-lo para viver ao léu.

É como um marido que, bem-sucedido profissionalmente, cresce ao ponto de esquecer que é fraco e sucumbe vergonhosamente à primeira tentação, até pastar o capim grosso da humilhação.

É como um pastor que, inteligente e estudioso, ousado e dedicado, perseverante e cuidadoso, acaba tão admirado que acaba por usar a Bíblia e a oração, as pautas que deveriam reger suas canções, como instrumentos de trabalho e de marketing junto aos seus irmãos.

Na sua força, seja mental ou muscular, o homem mostra a sua fraqueza. É raro quem se torna grande e mantém a sua grandeza. É raro quem recebe a bênção de crescer e mantém os olhos em quem o fez se desenvolver. É raro quem ouve e atende. É raro quem com o erro realmente aprende.

Continuamos erigindo torres que sabemos ao céu não chegarão, como se precisássemos enganar nosso próprio coração, como se para crescer precisássemos de ilusão, como se precisássemos parecer o que sabemos não ser.

Se é da nossa natureza construí-las, precisamos erigir diferentes torres, a melhor delas devendo ser a humildade, cujas sandálias não nos deixam esquecer que são de barro os nossos pés e de vento os nossos músculos. Nossos alfabetos não são maiúsculos. Nossas metas habitam mesmo os rodapés.

Precisamos erigir torres, a mais alta delas devendo ser a profundidade, aquela que permite a melhor sondagem, a de nós mesmos, o que demanda, sobretudo, coragem.

Até quando precisaremos parecer o que não somos, exibir o que não temos, comprar abraços e afetos como se fossem objetos, se o amor de Deus já recebemos?

Até quando permaneceremos avidamente atentos a vozes de baixo teor quando podemos ler a Palavra do Grande Autor.

Ouvimos vozes da sedução, mesmo quando conhecemos e lemos a Palavra de Deus.

(HISTÓRIA, autocensurada)

O primeiro homem não escolheu deixar o jardim?

Até hoje fazemos o mesmo.

 

3

ESPINHO, a necessidade.

Multiplamente talentoso, o ser humano precisa de palavras para ficar no seu lugar, mas palavras não são suficientes. Com Saulo de Tarso, depois Paulo, elas não foram suficientes. Forte para percorrer milhares de quilômetros, não importava o meio de transporte se havia, genial como estrategista da evangelização, brilhante na arte de convencer o público reunido e belíssimo com a pena de escritor a mão, legou igrejas, poemas, tratados, ensinos que ultrapassam seus espaços e seus dias.

Ele parecia estar em todos os lugares, em todas as frentes e em todos os estilos, mas ficou doente. Então, crente que era, orou a Deus e pediu que fosse curado.

Era merecedor. Comparando-se com outros missionários, argumentou:

— Eu sou um servo melhor do que eles, embora, ao dizer isso, eu esteja falando como se fosse louco. Pois eu tenho trabalhado mais do que eles e tenho estado mais vezes na cadeia. Tenho sido chicoteado muito mais do que eles e muitas vezes estive em perigo de morte. Em cinco ocasiões os judeus me deram trinta e nove chicotadas. Três vezes os romanos me bateram com porretes, e uma vez fui apedrejado. Três vezes o navio em que eu estava viajando afundou, e numa dessas vezes passei vinte e quatro horas boiando no mar. Nas muitas viagens que fiz, tenho estado em perigos de inundações e de ladrões; em perigos causados pelos meus patrícios, os judeus, e também pelos não judeus. Tenho estado no meio de perigos nas cidades, nos desertos e em alto mar; e também em perigos causados por falsos irmãos. Tenho tido trabalhos e canseiras. Muitas vezes tenho ficado sem dormir. Tenho passado fome e sede; têm me faltado casa, comida e roupas. Além dessas e de outras coisas, ainda pesa diariamente sobre mim a preocupação que tenho por todas as igrejas. (2 Coríntios 11.23-30 — NTLH)

Teve experiências espirituais inigualáveis. Numa delas, havia 14 anos, chegara a ser levado por Deus até o mais alto céu, onde “ouviu coisas que palavras humanas não conseguem contar”. (2Coríntios 12.4 — NTLH)

Pediu, insistentemente e estava certo que seria curado daquilo que chamava de “espinho na carne", porque era assim que lhe doía a enfermidade.

Deus lhe respondeu, não com a intervenção desejada, mas com uma palavra inicialmente enigmática:

— A minha graça é tudo o que você precisa, pois o meu poder é mais forte quando você está fraco. (2Coríntios 12.8 — NTLH)

E nunca mais se falou no assunto. Nem ele, nem Deus.

Com o espinho fustigando e ensanguentando a carne, Paulo teve que meditar.

Entendeu que sua doença o impedia de ficar orgulhoso.

Aceitou que o poder de Cristo o protegesse contra ele mesmo.

Agradeceu pelas fraquezas, pelos insultos, pelos sofrimentos, pelas perseguições epelas dificuldades, sabendo que, quando perdia toda a sua força, podia contar com toda a força de Cristo.

Em Paulo, o mérito morreu.

Devemos orar para ficar livres dele.

Devemos orar para ficar livres de nossas forças ou precisaremos receber espinhos na carne?

 

4

ORAÇÃO

Dilata o meu coração, Senhor,

 

para amar mais a mim mesmo como o corpo da tua vida,

para amar os meus irmãos como poemas dos teus dedos,

para amar a terra — brilho da tua glória — que me deste para cuidar;

 

para ouvir tua canção de amor aos meus ouvidos

cansados de saber — muitas vezes acreditando — que sou apenas

um predestinado a cumprir as metas dos outros,

vencidos de escutar que tenho de bater

toda vez que apanhar, ou mesmo antes;

 

para buscar meu irmão que um dia cantou na minha roda,

para me importar com meu irmão que só conheço pela triste foto do jornal,

para trabalhar com meu irmão, mesmo que me veja melhor do que ele,

para cantar abraçado com meu irmão as fugazes canções que antecipam a eternidade,

para me deixar ser ajudado pelo conselho do meu irmão.

 

Senhor, se não dilatares este meu coração,

ele se bastará,

ele se encolherá,

ele endurecerá.

 

Se o Senhor dilatar o meu coração,

o Teu amor me bastará

(sim, que mais quererei?),

ele se fortalecerá,

ele receberá a alegria como hóspede permanente,

ele seguira o ritmo do teu

 

para caber mais de ti,

 

para te amar mais.

 

Embora não precises do meu amor, eu preciso

 

para ser feliz como uma criança

passeando um dia, solta nos largos ombros do pai,

no outro repousando no dilatado peito da mamãe.



[1] A ideia vem do livro de Harvey Cox. Que a serpente não decida por nós. São Paulo: Paz e Terra, 1967.

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