Lucas 6.1-11: JESUS VEIO ENSINAR COMO DEVE SER A RELIGIÃO

Lucas 6.1-11: Jesus veio ensinar como deve ser a religião

(Da série: RETRATOS DE JESUS PELO QUE ELE FEZ, 2)

(Pregado na Igreja Batista Itacucuruça, em 26.11.2006, noite)

1
ABERTURA

Antes de ler a história de Jesus passeando por uma plantação de cevada, quero ler o que estabelecia a lei judaica em vigor para os judeus:

“Se vocês entrarem na vinha do seu próximo, poderão comer as uvas que desejarem, mas nada poderão levar em sua cesta. Se entrarem na plantação de trigo do seu próximo, poderão apanhar espigas com as mãos, mas nunca usem foice para ceifar o trigo do seu próximo” (Deuteronômio 23.24-25).

Os rabinos, depois disso, foram mais restritivos. O capítulo 7 do Talmud babilônico, coleção de leis tradições judaicas editada 499 d.C., relaciona 39 ações que um judeu não devia cometer num sábado: arar; semear; ceifar; fazer feixes (de espigas de cereais, por exemplo); bater frutos para tirar as sementes; dispersar (grãos, para separar o imprestável); selecionar (alimentos uns dos outros); moer; peneirar; amassar; cozinhar; tosquiar; embranquecer (fios de tecido); cardar; tingir; fiar; esticar o fio no vertical (no tear); fazer a tela (retesar fios no vertical no tear); tecer; romper (os fios); atar; desatar; costurar; rasgar; construir; destruir; bater com martelo; caçar; degolar; pelar (animal); curtir (pele); pelar (tirar o pelo da pele); cortar (a pele); escrever; apagar (o que foi escrito); esboçar; acender; apagar (o fogo); transportar. (Cf. Introdução às Leis de Chabat. Disponível em <http://www.judaismo-iberico.org/mtp/tempos/chabat/12.htm>.)

Leiamos o que Jesus fez (Lucas 6.1-5).

(1) Certo sábado, enquanto Jesus passava pelas lavouras de cereal, seus discípulos começaram a colher e a debulhar espigas com as mãos, comendo os grãos. (2) Alguns fariseus perguntaram: “Por que vocês estão fazendo o que não é permitido no sábado?”
(3) Jesus lhes respondeu: “Vocês nunca leram o que fez Davi, quando ele e seus companheiros estavam com fome? (4) Ele entrou na casa de Deus e, tomando os pães da Presença, comeu o que apenas aos sacerdotes era permitido comer, e os deu também aos seus companheiros”.
(5) E então lhes disse: “O Filho do homem é Senhor do sábado”.

O ministério de Jesus foi altamente peripatético, no sentido que ele caminhava com seus discípulos, ensinando a eles e aos grupos com quem se encontrava em praças, casas e sinagogas.
Numa dessas caminhadas, atravessou uma plantação de cevada. O problema é que isto aconteceu num sábado. Caminhar por um período curto no sábado era permitido, mas debulhar espigas para comer, era considerado uma quebra da lei referente ao sábado.

O evangelista Lucas narra outro episódio, igualmente transgressor da regulação sobre o sétimo dia da semana (Lucas 6.6-11)

(6) Noutro sábado, ele entrou na sinagoga e começou a ensinar; estava ali um homem cuja mão direita era atrofiada.
(7) Os fariseus e os mestres da lei estavam procurando um motivo para acusar Jesus; por isso o observavam atentamente, para ver se ele iria curá-lo no sábado. (8) Mas Jesus sabia o que eles estavam pensando e disse ao homem da mão atrofiada: “Levante-se e venha para o meio”. Ele se levantou e foi.
(9) Jesus lhes disse: “Eu lhes pergunto: O que é permitido fazer no sábado: o bem ou o mal, salvar a vida ou destruí-la?”
(10) Então, olhou para todos os que estavam à sua volta e disse ao homem: “Estenda a mão”. Ele a estendeu, e ela foi restaurada.
(11) Mas eles ficaram furiosos e começaram a discutir entre si o que poderiam fazer contra Jesus.

2
ATITUDES DE JESUS
O que aprendemos sobre Jesus, nestas duas narrativas conjugadas?

Podemos sintetizar os ensinos que suas atitudes nos deixam com três afirmativas.

1. Jesus caminha com seus discípulos.
Quando não está só, para orar, Jesus está com seus discípulos. Mesmo quando ora, leva um grupo deles junto. Ele os chamou; Ele os capacitou; Ele os amou. Caminhando com eles, ensinou-os que o recebimento da graça é pela fé imediatamente, mas a fruição da inteireza desta graça demanda crescimento, que vem pelo discipulado, que é uma caminhada com Jesus, nunca uma caminhada solitária.
Os Evangelhos são narrativas destas caminhadas de Jesus com seus discípulos, destas caminhadas deste Deus conosco até hoje. Ele está ao nosso lado hoje, não apenas nesta plantação de cevada, em que os discípulos estão com fome em meio a tanto alimento; não apenas na estradinha para Emaús, onde o desânimo governa os corações.
Em nossas escassezes, seja de alimento ou de alento, Ele está conosco.
Ele não é indiferente aos nossos dramas. Ele se interessa por nossa causa no tribunal, por nossa passagem pelo hospital, pela nossa indigência material, pela nossa desavença conjugal, pelo nosso esgotamento espiritual.

2. Jesus transforma, com Sua presença, nossas condições de vida.
Na primeira história, ocorrida ao ar-livre, a fome perdeu para o alimento. Mesmo contra a lei, Ele autorizou, talvez o mesmo, que, num sábado, seus discípulos colhessem espigas de cevada e as debulhassem para comer seus grãos e assim saciarem suas fomes. Como Davi, no passado, que pediu ao sacerdote que distribuísse os pães do culto entre seus soldados e foi atendido, Jesus foi além da lei, para cumprir de fato a lei. Muitas vezes, só cumprimos a lei quando aplicamos o espírito que está nela, que pode implicar em descumpri-la.
Na segunda história, transcorrida numa sinagoga, também num sábado. Os guardiães da religião queriam que a religião fosse respeitada, nem que para tanto fosse desrespeitada a vida. Ali estava um homem desejoso de uma vida com qualidade; uma má-formação na mão direita era um estigma para a sua vida; aquela necessidade o destruía emocionalmente e lhe fechava as portas para o mundo do trabalho. Sua condição de vida precisava ser alterada. Ele estava cansado de apanhar da vida. E ali estava alguém que podia fazer com que sua vida desse um salto. Jesus estava ali, mas era sábado. Era sábado, mas Jesus o curou. Era proibido curar no sábado, mas Jesus o curou num sábado. Como faz até hoje, Jesus transformou a condição de vida daquele homem.

3. Jesus enfrenta os poderes deste mundo para nos abençoar.
Desde o seu nascimento, Jesus incomoda os poderes do mundo. Herodes quis matá-lo ainda bebê. Menos de 30 anos depois o desejo de Herodos foi consumado.
Ao longo do seu ministério, Jesus não se curvou às regras da religião de então, não porque fosse contra as regras, porque Ele era contra as regras que atentam contra a dignidade da vida.
Era sábado, mas a vida precisa de alimento. Era sábado, mas um homem precisava de saúde. Era sábado e sábado é dia de vida. Quando se apresenta como Senhor do sábado, Jesus está dizendo que os poderes deste mundo, quando domesticam a religião, estão, na verdade, destruindo, não edificando, a verdadeira religião.

3
ENSINOS DE JESUS
Jesus deixou os fundamentos para uma religião nova, que deve ser o compromisso dos cristãos.

1. A religião que Jesus mostra nos aproxima de Deus, sem que tenhamos que fugir da vida.
Estava errado Tertuliano quando disse que tudo o que é humano é estranho aos cristãos. Está errado um hino que cantamos:

“Passarinhos, belas flores, querem me encantar.
São vãos terrestres esplendores
Mas contemplo o meu lar.”
(Hino 484– Cantor Cristão)

Os assuntos humanos são os nossos assuntos. As lutas são o campo onde a fé se torna real. Passarinhos e belas fores são dons de Deus para as nossas vidas.

Não precisamos fugir da vida para ser cristãos. Com Cristo, aprendemos a vivê-la como deve ser vivida. Nossa fé deve ser o centro de nossa vida, para que a fé seja mesma fé e para que a vida valha este nome. Nossa fé deve estar mergulhada em nossa casa, em nosso trabalho, em nossa ideologia, em nossa ciência, em nossa moral, em nosso temperamento, em nosso desejo. Deus é o Deus da vida. Se a nossa fé nos afasta da vida real, ela, na verdade, nos leva para longe de Deus, embora pronuncie o seu nome a toda hora.

2. A religião que Jesus ensina apresenta-se como meio para Deus, não como o fim de Deus, não como o fim da pessoa humana.
Religião como fim é o fim da religião vivida por Jesus. Religião como fim é o fim da dignidade humana.
A religião como meio está a serviço da paz. A religião como fim está a serviço dela mesma. E ai, vale tudo. É por isto que, ao longo da história, a religião tem sido a fonte de tantas violências. Infelizmente, religião tem a ver mais com guerra do que com paz, embora a paz devesse ser a sua essência.
Quem põe a religião acima da vida mata. Eis algo paradoxal: há grupos contra o aborto capaz de matar quem defende o aborto que eles condenam. Devemos nos perguntar se nossa religião é de vida ou de morte; se for de vida, é de Deus. Se for de morte, não é de Deus. Se for alegre, é de Deus; se for sisuda, não é de Deus. Se for de graça, é de Deus; se for de lei, não é de Deus.

3. A religião que Jesus propõe não conhece uma classe que tem acesso especial a Deus.
No Antigo Testamento, o crente se achegava a Deus por meio do sacerdote. No Novo Testamento, o crente se achega a Deus buscando-o em espírito e em verdade. No Antigo Testamento a presença de Deus era um espetáculo por sua raridade. No Novo Testamento, a presença de Deus é um continuum por sua naturalidade. No Antigo Testamento só os sacerdotes podiam comer do pão da propiciação, ou pão da presença. No Novo Testamento, o pão é para todos. Jesus é o pão da vida. Quem quiser comê-lo pode comê-lo.
O acesso é livre para quem está, como dizem alguns, no centro da vontade de Deus. (E eu me pergunto: como pode ser isto? Podemos estar perto da linha imaginária que divide a vontade de Deus e a vontade do homem e não estarmos na sua vontade? Acho que esta frase — estar no centro da vontade de Deus — não quer dizer nada. Mas isto é só um par de parênteses!)
O acesso é livre para quem parece estar longe de Deus (digo: “parece”, porque é impossível a alguém estar longe de Deus, que não está parado num lugar). Deus pode parecer longe, mas não está, para quem se encontra no ventre do peixe e com “headphone” nos ouvidos para não escutar a Sua voz, mas ali se ajoelha para orar. O acesso é livre para quem tem gasto sua vida na dissipação, seja na dissipação da mentira, da ambição, da vaidade, da prostituição, da alcoolização ou do tabagismo (oh que tristeza: em 2005 o álcool embalou 75% das bocas brasileiras; no mesmo ano, 53% dos brasileiros fumaram cigarro ou maconha pelo menos uma vez) mas, que desejando mudar, como o filho pródigo na pocilga, ajoelha-se para fazer o caminho de volta para Deus, cujos braços se estendem para receber, cujo coração arde para poder expressar Seu amor, cujos lábios se abrem para abençoar e festejar.
O acesso para Deus é livre. Ele não põe barreiras, mas as derruba, para que nos acheguemos; não constrói abismos, mas prepara pontes, que permitam o nosso encontro.

4. A religião que Jesus vive tem a ver com restauração.
Voltemos nosso foco para a segunda história, uma história de restauração. Jesus restaura a vida de um homem, ao restaurar-lhe a mão atrofiada.
Ele responde aos dois convites de Jesus.
O primeiro é que viesse para o centro da reunião, saindo do esconderijo do anonimato, onde curtia sua limitação e sua maldição. Este passo demandava coragem. Os donos da religião podiam matá-lo, como matariam a Jesus mais tarde.
Ele não olhou para os promotores da morte, mas olhou para a vida. Jesus lhe disse: “Levante-se e venha para o meio” (verso 9). Ele se levantou e foi para o meio.
Não pensou: o que vão pensar de mim? Não temeu as conseqüências negativas, sabendo que seriam mínimas diante daquele suave convite.
O homem de mão atrofiado recebeu um seguinte convite: “Estenda a mão” (verso 10). Ele a estendeu, e sua mão foi restaurada.
A proposta era clara: ele devia estender sua mão para ser curada, ali em público. E se Jesus fracassasse? Ele não cogitou esta hipótese. Ele não pensou no fracasso. Não achou ridículo atender à voz de Jesus. E ficou curado. A religião vivida por Jesus é a religião da restauração da dignidade perdida, da auto-estima afundada, da saúde abalada, dos sonhos esquecidos.

***

Venha para o meio.
Levante-se e venha para o meio onde está Jesus.
Venha para Jesus.

Estenda a sua mão.
Estenda o que precisa ser curado na sua vida.