Êxodo 3: AQUELE QUE É

DEUS É AQUELE QUE É
Êxodo 3

Preparado para ser pregado na IB Itacuruçá, em 9.4.2000 – noite

1. INTRODUÇÃO
Quem viu o filme “Beleza Americana”, de Sam Mendes, deparou-se com o retrato de um mundo sem Deus. O nosso mundo é um mundo sem Deus. Desde que deixou a presença de Deus, sem intenção de voltar, como aconteceu na queda, o homem vem fazendo Deus desaparecer do seu horizonte.
Vivemos para o mundo do trabalho, que suga todas as nossas energias. O trabalho exige que expulsemos Deus e dediquemos todo o nosso tempo a ele. Nós somos dependentes do trabalho.
Vivemos no mundo governados pela política, onde predomina a ética das coisas possíveis, mesmo que contra a moral, e não os valores inspirados por um Deus eterno, tornado inexistente ou irrelevante. De tal modo nos habituamos que acabamos querendo que os governantes nos dêem, não importa o quanto nos tiram, na perenização da moral desistente do “rouba, mas faz”.
Até mesmo a religião tende a expulsar Deus. Ela de tal modo se organiza que Deus não faz falta, como na parábola do Grande Inquisidor, de Dostoievsky. Esperando que a sua não seja assim, é possível uma religião sem Deus, que tenha cultos agradáveis, templos confortáveis, relacionamentos civilizados.
A palavra Deus caiu no vazio do sentido. Mestre da palavra, a escritora Susan Sontag saiu (na revista “Talk”, de abril de 2000) com a seguinte pérola: Thomas Mann “foi o meu primeiro deus”. Ela foi corroborada por outro gigante contemporâneo do texto, Edward Said, que disse de T.S. Elliot: “ele ainda é meu deus”.
Por isto, em certo sentido, o máximo que podemos dizer de Deus foi o que Ele disse: Ele é o que é
Moisés experimentou esta realidade, no arrebatador encontro registrado em Êxodo 3.

[TEXTO BÍBLICO]
Êxodo 3
Moisés estava apascentando o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Mídia; e levou o rebanho para trás do deserto, e chegou a Horebe, o monte de Deus. E apareceu-lhe o anjo do Senhor em uma chama de fogo do meio duma sarça [talvez uma acácia, com flores vermelhas parecidas com labaredas]. Moisés olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia; pelo que disse:
— Agora me virarei para lá e verei esta maravilha, e por que a sarça não se queima.
E vendo o Senhor que ele se virara para ver, chamou-o do meio da sarça, e disse:
— Moisés, Moisés!
Respondeu ele:
— Eis-me aqui.
Prosseguiu Deus:
— Não te chegues para cá; tira os sapatos dos pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa. (…) Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó.
E Moisés escondeu o rosto, porque temeu olhar para Deus.
Então disse o Senhor:
— Com efeito tenho visto a aflição do meu povo, que está no Egito [há * séculos], e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores [fiscais da Receita Federal do Faraó], porque conheço os seus sofrimentos; e desci para o livrar da mão dos egípcios, e para o fazer subir daquela terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel; para o lugar do cananeu, do heteu, do amorreu, do perizeu, do heveu e do jebuseu [os povos que habitavam a terra que um dia seria a terra do povo de Israel]. E agora, eis que o clamor dos filhos de Israel é vindo a mim; e também tenho visto a opressão com que os egípcios os oprimem [dura opressão, sem quaisquer direitos humanos e sociais]. Agora, pois, vem e eu te enviarei a Faraó, para que tireis do Egito o meu povo, os filhos de Israel.
Então Moisés disse a Deus:
— Quem sou eu, para que vá a Faraó e tire do Egito os filhos de Israel?
Respondeu-lhe Deus:
— Certamente eu serei contigo e isto te será por sinal de que eu te enviei: Quando houveres tirado do Egito o meu povo, servireis a Deus neste monte.
Então disse Moisés a Deus:
— Eis que quando eu for aos filhos de Israel, e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós; e eles me perguntarem: Qual é o seu nome? Que lhes direi?
Respondeu Deus a Moisés:
— EU SOU O QUE SOU. (…) Assim dirás aos olhos de Israel: EU SOU me enviou a vós. (….) Assim dirás aos filhos de Israel: O Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, me enviou a vós; este é o meu nome eternamente, e este é o meu memorial de geração em geração.

2. O HOMEM DIANTE DOS SEUS EXTREMOS
Ao longo da história, em seu relacionamento com Deus, o homem tem marchado entre extremos.
Num extremo, temos, como Moisés e seu povo, dificuldade em nos relacionarmos com um Deus que não tem nome, que não é um ídolo. Gostamos de coisas palpáveis, do “preto no branco”, como se diz.
Por isto, aquele povo procurava, mesmo contra todas as advertências da lei e dos profetas,  representar a Deus, chegando a fundir ouro para esculpir aquele trágico bezerro (Ex 32). A motivação deles é a mesma nossa hoje. A permanência dos santos católicos é uma indicação disto. Nossa facilidade em construir mitos humanos e deuses em forma humana é outra demonstração desta nossa condição. O desejo de participar de um culto espetacular faz parte da mesma genética humana.
Esta tendência gera sistemas doutrinários, como o animismo (todos os seres da natureza são deuses), o panteísmo (Deus é a soma de tudo quanto existe), o pantiteísmo (Deus está em tudo), o politeísmo (há muitos deuses e não apenas um) e gnosticismo (Deus é um ser absolutamente inacessível).
No outro extremo, temos as posições secularistas, tão antigas quanto o próprio ser humano. Secularista é aquele que, não importa o que creia, vive como se Deus não existisse. Ao secularista importa o deus do século, tenha o nome que tenha, como ateísmo (Deus não existe), deísmo  (Deus existe, mas não interfere na história humana), agnosticismo (não podemos saber se Deus existe) e hedonismo (meu prazer é Deus).
Todas passagem longe da simplicidade do Deus único da Bíblia, Aquele que é, como aprendemos da experiência de Moisés, há 3500 anos.
Uma vida sem o Deus que é é vazia como a de Moisés, que apenas tocava a sua vida. Tinha uma família e tocava o negócio do sogro. Há um momento quando reconhecemos precisar de Deus. Moisés estava tocando a sua vida, talvez sem sentido ou propósito, talvez pensasse que passaria a vida naquele emprego, depois herdaria o rebanho do sogro e o passaria a seus filhos.
Sua vida antes do encontro talvez se assemelhasse ao estilo de vida descrito por
Carlos Drummond de Andrade no poema “Cidadezinha Qualquer”:

Casas entre bananeiras
Mulheres entre laranjeiras
Pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.

Devagar… as janelas olham.
Êta vida besta, meu Deus.

Moisés talvez fosse religioso, como a maioria de nós, mas sua religião não tinha Deus como centro. Possivelmente a religião estivesse presente em sua vida. Talvez ele estivesse esquecido daquilo que seus pais lhe ensinaram (sobre o Deus de Abraão, Isaque, Jacó e Anrão, ou de Sara, Rebeca, Raquel e Joquebede), mas participava da vida religiosa do seu sogro, Jetro, que era sacerdote. Deus não era um ser presente, mas também não era um ser distante. Talvez até orasse a Ele de vez em quando, sem esperar resposta.
Sua concepção foi mudada a partir deste encontro. A nossa percepção também pode ser alterada radicalmente, se nos permitirmos um encontro com Deus.
Moisés descobriu o Deus que é, derivando de sua experiência a fundação do monoteismo, a crença de que só existe um Deus. Talvez aqui todos sejamos monoteístas, embora, na vida de muitos de nós, o monoteísmo na saia da Bíblia para nos invadir como uma chama incendiária. Isto acontece conosco quando a presença do Deus que é se parece ainda hoje como uma sarça que queima, mas não se consome.
Muitos nos deparamos um dia com esta teofania (aparecimento de Deus) a nós, mas ela ficou no passado, como uma imagem ofuscada pelo túnel do tempo, sem força para nos mover ainda hoje.

3. O DEUS QUE É

3.1. O Deus que é não tem nome.
Ele diz:
EU SOU O QUE SOU. (…) Assim dirás aos olhos de Israel: EU SOU me enviou a vós. (….) Assim dirás aos filhos de Israel: O Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, me enviou a vós; este é o meu nome eternamente, e este é o meu memorial de geração em geração.

É como se Ele dissesse: “não vou dizer meu nome, porque, se eu o disser, vocês vão idolatrá-lo e optarão por se relacionar com este nome, em lugar de me adorar e se relacionar comigo”. Deus conhece a nossa propensão para a idolatria. Preferimos um ídolo porque temos medo de Deus.
Preferimos um nome porque podemos aprisioná-lo e classificá-lo. Os hebreus acreditavam que o nome de uma pessoa carregava o seu caráter. Por isto, vários nomes são mudados: Abrão torna-se Abraão, Jacó vira Israel, Saulo é transformado em Paulo, por exemplo. Se Deus tivesse um nome, Ele seria este nome; este nome seria sua prisão. Não poderia mais soprar onde quisesse, como faz seu Espírito, porque estaria limitado ao seu nome.
Em termos contemporâneos, seu nome seria uma marca, como Cola-Cola, por exemplo. Quando abrimos uma garrafa ou uma lata, esperamos encontrar nela o produto com as mesmas qualidades. A marca aprisiona o produto. Se o fabricante quiser mudar o produto, tem que enganar ou consultar o consumidor.
Por isto, Deus não é uma marca e nem tem um nome. Se Deus tivesse um nome ou fosse uma marca, Ele seria transformado num número, em forma de senha digital. Muitos querem um Deus-senha: lembrou, digitou, conectou-se. Nada de encontro pessoal. Neste universo, entre ele e o homem há uma máquina a separar e a intermediar, para tornar o relacionamento sem o fogo da sarça.

3.2. O Deus que é e não tem nome tem o testemunho da história a seu favor.
Para o povo de Israel, Ele sempre se apresentava como o Deus de Abraão, com quem e por quem fez o que fez. Quando esta lembrança era referida, acendia-se na memória do povo aquilo que o seu Deus lhe tinha feito.
Ele também tem se apresentado a nós. Cada um de nós sabe o que Deus já fez em sua vida.Talvez esta apresentação esteja esmaecida. Talvez a foto emoldurada até precise de um novo porta-retrato. Um antídoto existencial para a incredulidade é lembrar o que Deus já fez por nós.
Pode ser que, com o passar do tempo, com suas lutas e envolvimentos, o fogo de Deus na sua vida se consumiu, como se consome um palito de fósforos, que você acende a hora que quiser, para acender o fogão. A sarça de Moisés não era um graveto.
O Deus que é não se  consome no dia a dia da vida. Se o seu se consumiu, trate de reencontrá-lo.

3.3.  O Deus que é, não tem nome e tem o testemunho da história a seu favor não pode ser cultuado junto com deuses que não são e não têm história, embora tenham nomes.
Os deuses foram criados à nossa imagem-semelhança, mas nós fomos criados à imagem-semelhança do Deus que é. Ele é tão radicalmente diferente de nós, em sua infinitude, que Ele já foi justamente considerado como Totalmente Outro, ou Totalmente Diferente de nós.
Machado de Assis foi meu primeiro grande herói. Eu tinha um retrato imenso dele no meu quarto. Li todas as biografias disponíveis sobre ele. Com imenso prazer, li toda a sua obra, inclusive as cartas e crônicas, que dão mais de 50 volumes.  Eu queria ser como ele, parecer com ele, escrever com ele. A tarefa era possível; eu poderia, se tivesse talento, ter sido um grande escritor como Machado de Assis. Ele foi melhor que eu, mas não radicalmente diferente de mim. Em certo sentido ainda, eu criei um Machado de Assis.
Mas eu gostei de outros autores, como Monteiro Lobato, Humberto de Campos e Érico Veríssimo, Castro Alves, Manoel Bandeira e Carlos Drummon de Andrade. Também me apaixonei por Júlio Verne, Dostoievsky e Tolstoi. Nenhum deles me exige exclusividade, mesmo porque todos estão mortos.
Cada um de nós pode ter o seu herói, mas cada um é convidado a seguir Aquele que é, que não serve apenas como um paradigma literário, um modelo de estilo, mas, antes, completa toda as dimensões de nossa vida, já que Ele a criou.

3.4. O Deus que é, não tem nome, tem o testemunho da história a seu favor e não pode ser cultuado junto com deuses é Deus conosco.
Ele prometeu a Moisés que iria com ele. E foi. A história seguinte mostra que Deus esteve com aquele líder e com o seu povo.
A Bíblia é essencialmente a história deste ser-conosco e deste estar-conosco de Deus.
Moisés temeu olhar para Deus. Olhar para aquele Ser totalmente outro provocava-lhe medo. Sua finitude tremia diante da infinitude. No entanto, vencido o medo, Moisés foi desenvolvendo um relacionamento com Deus, que Aquele que é lhe falava face a face como se fala a um amigo (Ex. 33.11).
Esse tipo de intimidade é possível para cada um de nós. Jesus Cristo tornou veio possibilitar este novo relacionamento. Antes de Jesus, Ele se revelava como se coberto por um véu, véu que Seu filho veio rasgar de alto a baixo.
Como tem sido o seu relacionamento com o Deus que é?

4. CONCLUSÃO
. Para descobrir o Deus que é, você precisa se voltar para Ele. Precisamos nos voltar para Deus para vê-lO. Foi isso que Moisés fez, diante daquela manifestação divina (v. 3). Deus veio ao encontro de Moisés e Moisés foi ao seu encontro. Se você não o quiser, Ele não forçará a querê-lO.
Deus encontrou Moisés no meio de suas cabras. Deus quer encontrá-lo onde e como você estiver. Tem gente se escondendo para não ser encontrado por Deus. Não seja um destes.

. Avalie quem é o seu deus. Como Ele é?
Troque-o por Aquele que é.

. Se você já encontrou Deus um dia, no deserto da vida, permita que o calor dele abrase sua vida de novo.

O Deus que é quer ser seu Deus.

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