2Crônicas 33; 2Reis 21: PAIS E FILHOS E SUAS ESCOLHAS

PAIS E FILHOS E SUAS ESCOLHAS
2Crônicas 33; 2Reis 21
Pregado na Igreja Batista Itacuruçá, em 20.5.2001 (noite)

1. INTRODUÇÃO
Esta é a crônica de uma tragédia familiar.
Sempre me intrigou que Manassés tenha sido o que foi tendo tido o pai que teve.
Ezequias, seu pai, foi um dos maiores reis de Israel. Ele é descrito como um rei que Deus prosperar e que praticou muitas obras de misericórdia (2Crônicas 32.32). Segundo o registro bíblico, Ezequias fez o que era bom, reto e verdadeiro perante o Senhor, seu Deus. ( 2Crônicas 31.20)
Bem ao contrário, Manassés, que lhe nasceu na velhice, é descrito como um dos piores da história do povo de Deus. Conforme o livro segundo de Reis, o menino tinha 12 anos de idade quando começou a reinar e reinou 55 anos em Jerusalém. Sua mãe chamava-se Hefzibá. (2Reis 21.1) Esta informação adicional indica que a rainha-mãe, Hefzibá, exerceu um papel de relevo no seu governo.
A síntese do seu governo não podia ser pior:
Fez ele o que era mau perante o Senhor, segundo as abominações dos gentios que o Senhor expulsara de suas possessões, de diante dos filhos de Israel. Pois tornou a edificar os altos que Ezequias, seu pai, havia destruído, e levantou altares a Baal, e fez um poste-ídolo como o que fizera Acabe, rei de Israel, e se prostrou diante de todo o exército dos céus, e o serviu. (…) E queimou a seu filho como sacrifício, adivinhava pelas nuvens, era agoureiro e tratava com médiuns e feiticeiros; prosseguiu em fazer o que era mau perante o Senhor, para o provocar à ira. Além disso, Manassés derramou muitíssimo sangue inocente, até encher Jerusalém de um ao outro extremo, afora o seu pecado, com que fez pecar a Judá, praticando o que era mau perante o Senhor. (2Reis 21.1-6, 16)
Segundo o livro de Crônicas, premeditada antítese completa do pai, Manassés fez errar a Judá e os moradores de Jerusalém, de maneira que fizeram pior do que as nações que o Senhor tinha destruído de diante dos filhos de Israel.  Falou o Senhor a Manassés e ao seu povo, porém não lhe deram ouvidos. Pelo que o Senhor trouxe sobre eles os príncipes do exército do rei da Assíria, os quais prenderam Manassés com ganchos, amarraram-no com cadeias e o levaram à Babilônia. (2Crônicas 33.9-11)
Num registro, que só o editor de Crônicas apresenta, Manassés, angustiado, suplicou deveras ao Senhor, seu Deus, e muito se humilhou perante o Deus de seus pais; fez-lhe oração, e Deus se tornou favorável para com ele, atendeu-lhe a súplica e o fez voltar para Jerusalém, ao seu reino; então, reconheceu Manassés que o Senhor era Deus. Depois disto, (…) tirou da Casa do Senhor os deuses estranhos e o ídolo, como também todos os altares que edificara no monte da Casa do Senhor e em Jerusalém, e os lançou fora da cidade. Restaurou o altar do Senhor, sacrificou sobre ele ofertas pacíficas e de ações de graças e ordenou a Judá que servisse ao Senhor, Deus de Israel. Contudo, o povo ainda sacrificava nos altos, mas somente ao Senhor, seu Deus. (2Crônicas 33.12-17)

2. POSSIBILIDADES INTERPRETATIVAS DA HISTÓRIA DE EZEQUIAS E MANASSÉS
Desta história, eu poderia produzir vários convites à reflexão.

Eu poderia, por exemplo, lembrar que Ezequias, o bom rei, governou 29 anos (715 – 687 a.C.), dos quais apenas 15 com rei único; Manassés, o ímpio, governou 55 anos sozinho (696 a.C – 642 a.C.). Disto poderíamos concluir que o mau, às vezes, reina mais que o bom, o que exigiria uma reflexão sobre o aparente triunfo do mal sobre o bem. Conquanto assim podemos nos sentir, não é a mensagem principal que quero derivar deste conjunto de experiências.
Eu poderia, também, tomar a trajetória de Manassés para mostrar até que ponto o homem pode chegar quando se afasta voluntariamente de Deus (2Crônicas 33.3-9) e até onde pode levar outras pessoas no seu itinerário. Faria, então, uma reflexão sobre a natureza do pecado e da capacidade humana de influenciar para o mal. Embora necessária e o texto nos convite a tal tipo de reflexão, não a farei neste momento.
Eu poderia, de igual modo, destacar a insistência de Deus ao arrependimento por parte de Manassés como uma demonstração do caráter divino absoluto em comparação com o caráter humano relativo. Estaríamos diante de uma reflexão sobre as conseqüências do pecado e sobre a natureza do perdão. No entanto, a história nos permite outras visões em torno da vida em família.
Eu poderia, se quisesse, registrar que Manassés se arrependeu diante de Deus, mas, para sua tristeza, não conseguiu que o povo a quem levara à idolatria se arrependesse. A narrativa serviria para mostrar que Deus perdoa aquele que se arrepende, embora o pecador tenha que pagar pelas conseqüências dos seus pecados.
No entanto, tomarei esta história para fazer um convite à reflexão sobre a vida familiar.

3. EM QUE FALHOU EZEQUIAS?
A pergunta que demanda resposta é: Em que falhou Ezequias? Na formação do seu filho, que parte Ezequias não cumpriu? Em que podemos estar falhando? Que parte não estamos cumprindo?
Mesmo supondo que Manassés foi completamente responsável — e o foi — por suas escolhas, sugiro, a partir da imaginação e da inferência, que Ezequias falhou como pai em quatro aspectos.

1. A falta de limites aos desejos do filho
Minha primeira inferência é que Ezequias não deu limites ao seu filho.
O menino era filho da velhice, nascido depois que Deus curou Ezequias e lhe deu uma sobrevida de 15 anos. Ele tinha muito que fazer nesta fase da sua existência. Neste período, cometeu acertos e erros. Um deles, no plano da inferência, foi não dar limites a Manassés. Imagino que Ezequias nunca tenha dito um “não” para o seu filho da velhice. Assim, criado como um príncipe, foi educado para mandar, não para obedecer. Quem não aprendeu a obedecer não sabe comandar.
Manassés viveu sua vida na presença de um pai ausente que talvez lhe desse carinho nos intervalos das suas realizações governamentais. No entanto, Ezequias não ensinou ao seu filho que a vida é feita de escolhas. Escolher um caminho significa recusar outro caminho.
A educação autoritária, recebida pelos pais de hoje dos pais de ontem, leva muitos ao medo de apresentar limites. A repressão no passado acaba produzindo antiteticamente no presente uma educação de fronteiras sempre móveis, isto em, sem fronteiras, sem limites. Todo pai não pode esquecer que quem escolhe não escolher se torna inseguro. Uma pessoa insegura faz tudo para agradar aos outros. Jamais tem a segurança de escolher. O medo de Manassés levou-o a escolher as escolhas do seu povo, e seu povo queria o paganismo, a idolatria, a corrupção, a injustiça.
Depois do fracasso da cultura do “é proibido proibir”, nossa sociedade clama por limites.  Nossos filhos clamam por limites. Dar limites não significa não dar carinho. O limite  é uma dimensão  do afeto. Quem verdadeiramente ama é aquele que apresenta limites ao amado. São com estes limites, tecidos com “sim” e “não”, que os filhos vão percorrer seus caminhos, presentes ou ausentes os pais.

2. A falta de participação na vida do filho
Ouso inferir que Ezequias terceirizou a formação do caráter do seu filho. Diz 2Reis 21.1 que sua mãe se chamava Hefzibá. Desta informação, que aparece no contexto de poucos monarcas de Israel, deduzo, com alguma liberdade, que o rei deixou para a rainha-mãe a tarefa de educar o filho do casal. Talvez seja por isto que seu nome apareça na história dos reis israelitas.
É até possível que, além da esposa, os sacerdotes e mestres do templo e do palácio tenham tido um papel decisivo na formação do garoto. Esta seria uma terceirização ainda mais grave e pode ter ocorrido.
Estamos falando de Ezequias e, ao mesmo tempo dos pais contemporâneos. A escola e a igreja acabam recebendo um papel que não têm como desempenhar. O tempo que se gasta na escola e na igreja é diminutamente inferior ao que se gasta na rua e em casa. Além disso, na escola e na igreja a educação tende mais para o formal e para o grupal, com pouco espaço para o individual, para o encontro face a face, como é típica da relação pai-filho, irmão-irmãos. Só o lar pode verdadeiramente formar para os princípios. Escola e igreja, no máximo, reforçam-nos, quando não os deformam. Engana-se o pai que terceiriza seu inalienável compromisso.
Formar é participar. Sejam quais forem as circunstâncias.
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3. A falta de prioridade correta
Rei por 29 anos, Ezequias muito realizou. Entre suas obras, está a transposição das águas de Giom, até hoje um desafio para a engenharia. Estes triunfos salienta que ele era uma pessoa excessivamente ocupada com o seu trabalho.
Se vivesse hoje, talvez fosse aquele que pai que chega em casa tarde, já cansado. Se não jantou, alimenta-se e se posta em frente à televisão para relaxar as tensões do dia. Calado, entrou; calado, continua, até o sono o derrubar.
Nossa sociedade torna o trabalho o centro da vida, não as relações pessoais, particularmente as familiares. Pais e filhos são vitimas deste modelo.
Quando trouxe a história da família de Hefizibá, fi-lo para mostrar que os problemas são comuns. O dilema é real, porque, também segundo as pesquisas, a renda familiar é um fator importante no desenvolvimento integral das crianças. Além disso, muitas vezes os pais não têm escolha. Talvez Hefzibá e Ezequias não tenham tido escolha.
No entanto, se os pais tiverem escolha, procurem fazer a escolha certa. Mesmo quando não puderem escolher, insistam em buscar recursos para a família, mas insistam, com o mesmo empenho, em demonstrar afeto para com os seus filhos, participando das suas vidas.
Estas histórias e os dados das pesquisas recentes são um convite àqueles que não se inscrevem nesta galeria a “curtirem” mais seus filhos.
Preciso lembrar às mães que elas não precisam se sentir culpadas por não trabalharem fora. Durante algum tempo a sociedade exerceu uma pressão muito forte sobre as mulheres, considerando como modernas apenas aquelas que trabalhassem fora do lar. Esta ditadura não tem sentido. Ser apenas mãe é tão nobre quanto ser, ao mesmo tempo, mãe e profissional.

4. A precocidade das escolhas
A quarta inferência advém não de um erro de Ezequias, mas de uma circunstância socialmente dada. Manassés começou a governar com 12 anos de idade. Morto o pai, ele tinha que assumir o trono, mas o que sabia ele da vida?
Diante de uma responsabilidade tão grande e tão precoce, Manassés, como se diz na linguagem quotidiana, não teve tempo de ser criança.
A luta pela sobrevivência também tem levado muitos adolescentes a tomarem papéis que não deveriam ser seus. Merecem elogios os programas públicos de estímulo à escolarização, como o da bolsa-escola. Na medida do possível, deixemos nossas crianças e nossos adolescente na escola.
A propósito, além da profissionalização precoce, nossa época comete também a sexualização precoce.
A busca por novos consumidores tem levado a industria e o comercio a, através dos meios de comunicação de massa, a antecipar a entrada das pessoas no circuito do consumo. As roupas das crianças e as suas danças revelam.
Ezequias não pôde evitar a profissionalização precoce do seu filho, mas a sociedade precisa proteger suas crianças e seus adolescentes.

6. CONCLUSÃO
Deus se torna favorável a nós por causa de nossa oração. Foi assim como Manassés. Pode ser assim conosco em relações a nós mesmos ou em relação a pessoas a quem queremos bem.
Viver segundo os valores de Deus pode nos colocar na contra-corrente. No entanto, se o nosso lugar é na contra-corrente, é nela que devemos estar, é na direção dela que devemos navegar. Nós o conseguiremos se estivermos firmados em Deus. Se for em nós mesmos, seguiremos facilmente a corrente do mundo.
Não dá para dizer, com certeza, que Ezequias e Hefizibá erraram. Dá para dizer, com absoluta certeza, que Deus nos capacita para fazer o que devemos. Esta deve ser a nossa esperança.