Jó 1-42 (Excertos): CONVITE À INTEGRIDADE

CONVITE À INTEGRIDADE

Jó 1-42 (Excertos):

1. INTRODUÇÃO
Uma das formas de evitarmos o mal é nos desviarmos dele. Há cristãos que se acham tão competentes espiritualmente que vivem a desafiar o mal, como se a vitória fosse sua, não de Jesus Cristo.
Jó tinha outro estilo de vida. Diz a Bíblia que ele se desviava do mal (Jó 1.1). O registro de sua experiência diante do sofrimento é tão contemporâneo quanto um telejornal. Como na vida, aprendemos negativamente e positivamente com o drama narrado no livro que leva seu nome.
Conhecemos bem a história que, de certo modo, é a biografia de cada um de nós. Como Jó, os cristãos somos íntegros, retos, tementes a Deus e nos desviamos do mal (Jó 1.1).  Como Jó, e também como os não-cristãos, somos assaltados por experiências dolorosas, como a doença, o desemprego, a depressão, a delinqüência e o desamparo.
Nestas condições, ficamos como Jó, tão física e emocionalmente transtornados, que nem nós mesmos ou nossos amigos nos reconhecem, como aconteceu com os amigos de Jó (Jó 2.12).
Algumas destas situações, pelas quais passamos, nos levam a agir com a mulher de Jó, que desistiu de viver e recomendou a seu marido que fizesse o mesmo, já que tudo o que lhes acontecia não fazia qualquer sentido.
Nosso convite é outro: é a manutenção da integridade. Estou usando a palavra no sentido espiritual, que significa permanecer no caminho da adoração a Deus, da confiança em Deus, do conhecimento com Deus e da fidelidade a Deus.

2. UM CASO ÚNICO
Diante desta realidade, precisamos reafirmar que, diferentemente do que a leitura equivocada do texto bíblico pode nos levar a pensar, Satanás não tem poder sobre nós. Por mais que diariamente ouçamos pelo rádio ou pela televisão, ele não está no controle deste mundo. Nosso foco é Deus e Sua palavra, nunca Seu já derrotado adversário.
Segundo a narrativa sagrada, saiu Satanás da presença do Senhor e feriu a Jó de tumores malignos, desde a planta do pé até ao alto da cabeça (Jó 2.7). Está claro que Satanás não apenas tentou, mas feriu a Jó, mas só depois que o Senhor saiu de cena, isto é, só depois que Deus permitiu a Satanás fazer o que pretendia, no seu desvario de ganhar de Deus. Foi uma concessão especialíssima. O Senhor autorizou-o a agir assim porque conhecia Jó e sabia que ele se manteria íntegro. O apóstolo Paulo nos ajuda a entender como Deus age conosco: as provações que nos vêm, sejam quais forem as suas origens, são aquelas que podemos agüentar, porque Aquele que as permite nos conhece. Afinal, Deus é fiel e não permitirá que sejamos tentados além das nossas forças; pelo contrário, juntamente com a tentação, nos proverá livramento, de sorte que a possamos suportar (1 Coríntios 10.13).
Este é um caso único na Bíblia e não pode ser universalizado. Satanás pode nos tentar; pode até nos trazer, quando sucumbimos à sua tentação, transtornos psíquicos ou espirituais, nunca físicos. Seu poder consiste basicamente em se interpor no nosso caminho em direção à fidelidade para com Deus (1 Tessalonicenses 2:18 — Por isso, quisemos ir até vós (pelo menos eu, Paulo, não somente uma vez, mas duas); contudo, Satanás nos barrou o caminho.) Seu método é a mentira (Ora, o aparecimento do iníquo é segundo a eficácia de Satanás, com todo poder, sinais e prodígios da mentira. — 2 Tessalonicenses 2:9); na verdade, seu único poder é a mentira.
No caso do espinho na carne de Paulo, o apóstolo o tinha como um sofrimento doloroso que, embora de origem diabólica, era uma providência de Deus para a sua vida. Leiamos: Para que não me ensoberbecesse com a grandeza das revelações, foi-me posto um espinho na carne, mensageiro de Satanás, para me esbofetear, a fim de que não me exalte (2 Coríntios 12.7). Paulo não tomou aquele espinho como uma ação diabólica, mas como uma ação de Deus, embora viesse sob a forma de uma pesada tribulação.

3. AFIRMAÇÃO DE NOSSA INCOMPETÊNCIA
Precisamos reafirmar também que não sabemos explicar porque algumas coisas nos acontecem. Nunca perguntamos acerca das boas coisas, mas sempre nos indagamos quanto às razões das ruins.
Jó fez a mesma pergunta. Ao final da leitura do livro, ficamos com a pergunta: por que ele sofreu? Seus amigos tentaram convencê-lo que seu drama era uma conseqüência do seu pecado. Não conseguiram. Eles eram legalistas, esses que querem a santidade para os outros, não necessariamente para si; que julgam os outros com o padrão que não aplicam a si mesmos. Os critérios que usaram para Jó também os reprovariam. E Deus os repreendeu por terem uma teologia tão distante da Sua graça. Eles não falaram a verdade a respeito de Deus (Jó 42.7), apresentando-O como movido apenas pelo desejo de justiça e, logo, desprovido da capacidade de amar.
Quando estamos em dificuldade, a maioria das coisas que dizem para explicar o nosso sofrimento, às vezes, com a melhor das intenções, deve ser jogada na lata do lixo, de onde nunca deveria ter saído. Só aqueles que conhecem por experiência própria que Deus é Graça não ficam perturbados.
Há muitos cristãos que ainda não entenderam que Deus é Amor; por isto, ainda se deixam acorrentar ao seu passado de pecadores, esquecidos que agora são santos, santos que pecam, mas santos. Então, não nos esqueçamos, que depois que ouvimos a palavra da verdade, o evangelho da nossa salvação, tendo nele também crido, fomos selados com o Santo Espírito da promessa (Efésios 1:13). Nós fomos lavados, santificados e justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus (1 Coríntios 6.11). Fomos santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas (Hebreus 10.10). Não podemos ser perturbados com o fantasma de uma vida sem a paz de Cristo, porque esta não é mais a nossa vida.

4. O MEDO DA PERDA DO CONTROLE
Perguntar “por que sofremos?” não nos leva ao desespero. O que nos leva a pecar é perceber que perdemos o controle sobre as nossas vidas.
A mulher de Jó se desesperou quando perdeu o controle sobre sua vida, quando descobriu que seu marido deixou de ser o poderoso de Uz. Seu pecado foi desistir de Deus, desconhecendo a maior verdade da Revelação: Deus jamais desiste de nós.

1. A mulher de Jó fundava sua vida numa visão egocêntrica, em torno da concepção da justiça própria. Na sua visão, sua família não merecia o sofrimento. Jó era justo, ela era justa, seus filhos eram justos. Sua visão é a mesma visão que confunde a muitos cristãos ainda hoje, como a dizer: os ímpios merecem sofrer, mas os justos, não. Sua visão era a mesma de Elifaz: Segundo eu tenho visto, os que lavram a iniqüidade e semeiam o mal, isso mesmo eles segam (Jó 4.8). Segundo esta equivocada visão, sempre colhemos o que plantamos e, é claro, nesta visão, só plantamos coisas boas…
Os cristãos sabemos que, se o critério fosse a justiça própria, estaríamos todos condenados. Em certo sentido, todos merecemos sofrer; na verdade, só a misericórdia de Deus nos livra do sofrimento ou nos capacita a sobreviver em meio a ele, porque é isto que Ele faz: ou nos livra ou nos capacita, dando-nos, portanto, vitória sobre o sofrimento. A mulher de Jó, porque confiava demasiadamente em si mesma, não aguardou a vitória.

2. Sua resposta é própria de quem não tem o seu bem-estar como vindo de Deus. Agora, na hora da manifestação da força do mal, não podia entender a sua chegada. Uma vida boa nos faz muito mal. Neste sentido, as aflições, como experiências do mal, são janelas para Deus. Sabem por que? Quando as coisas vão bem, elas nos dominam. Quando elas vão mal, nós buscamos a Deus. Quando as coisas vão bem, elas nos satisfazem. Quando vão mal, só a graça de Deus nos basta. Sabendo isto, entenderemos melhor o que Tiago escreveu: Meus irmãos, tende por motivo de toda alegria o passardes por várias provações (Tiago 1.2).
A experiência do crescimento é a mais saudável das experiências. O sofrimento, não importando o seu tipo, é o adubo do crescimento. A mulher de Jó era ainda uma criança, protegida na sua caverna, achando que a vida era apenas aquelas pobres imagens que via. Escrava do seu próprio bem-estar, desistiu quando chegou a oportunidade de ver outras coisas, experimentar outras sensações e, especialmente, quando poderia se aproximar de Deus. Se ela não tivesse desistido, aprenderia que as possibilidades do bem e do mal são reais, mas que Deus é senhor tanto de uma coisa quanto de outra, porque nada nos poderá separar do seu amor, amor que está em Cristo Jesus, nosso Senhor: nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura (Romanos 8.38,39).

A mulher de Jó não tinha esta fé e caiu.

5. COMO JÓ MANTEVE SUA INTEGRIDADE
E Jó? Por que não caiu? Por que não desistiu de Deus?  
Como sua esposa, o mundo desabou sobre ele, mas ele não desabou. Diante da desolação, seu grito não podia ser outro, senão este: Por que em vez do meu pão me vêm gemidos, e [por que] os meus lamentos se derramam como água? Aquilo que temo me sobrevém, e o que receio me acontece. Não tenho descanso, nem sossego, nem repouso, e já me vem grande perturbação. (Jó 3.24-26)
Deus parecia tê-lo desamparado. Eis como se sentia: as flechas do Todo-Poderoso estão em mim cravadas, e o meu espírito sorve o veneno delas; os terrores de Deus se arregimentam contra mim Jó (Jó 6.4). Assim mesmo, ele não desistiu de seu Senhor.
Quero sugerir três razões por que Jó não desistiu do seu Senhor; antes, continuou a adorá-LO.

1. Jó ousou perguntar “por que?” e a esperar e a aceitar a resposta de Deus.
Como sua esposa, ele não achava justo o que lhe estava acontecendo e foi direto à Fonte, Àquele que poderia lhe responder e Lhe perguntou: “por que?” Sua esposa não fez pergunta nenhuma, porque sabia todas as respostas.
Ele derramou o seu coração, sem barbitúricos para a alma. Ele deu curso à sua queixa, falando com toda a amargura do seu ser (Jó 10.1). Diante do Senhor, ele clamou: Se pequei, que mal te fiz a ti, oh Espreitador dos homens? Por que fizeste de mim um alvo para ti, para que a mim mesmo me seja pesado? Por que não perdoas a minha transgressão e não tiras a minha iniqüidade? Pois agora me deitarei no pó; e, se me buscas, já não serei. (7.20-21)
Seu pedido foi claro: Direi a Deus: Não me condenes; faze-me saber por que contendes comigo. (10.2)
Jó nos ensina a postura correta diante do sofrimento e diante de Deus. Ele não é um conformado, porque o conformismo é um outro tipo de revolta contra Deus, uma revolta covarde, que não ousa levantar a voz e a cabeça, mas não aceita aquilo que julga ser uma injustiça divina. Ele não é um revoltado imaturo, aquele que se acha centro do mundo e das pessoas, encontrando como caminho o ataque aos outros, a Deus inclusive.
Jó não entende o seu sofrimento. Jó pergunta pela razão do seu sofrimento. Na sua luta pela resposta e pela paz, contende com Deus, mas não o ofende; reclama de Deus, mas não blasfema.

2. Jó aceitou a companhia dos seus amigos e cresceu com eles.
Jó tinha três amigos (Bildade, Elifaz e Zofar), que eram quatro, porque depois apareceu Eliú (capítulo 23).
Somos críticos dos três primeiros amigos de Jó, e temos razão em nossas críticas. No entanto, mesmo que tenham atormentado (e como os amigos, até os verdadeiros amigos nos atormentam!), eles foram muitos importantes para que Jó mantivesse sua lucidez. Jó os chamou de consoladores molestadores (Jó 16.2), tantas as bobagens que proferiram, mas manteve a comunhão espiritual com eles, chegando a interceder por seus amigos diante de Deus (Jó 42.10).
A comunidade espiritual formada foi possível porque eles se dispuseram a gastar tempo e inteligência com Jó e porque Jó os recebeu. Eles não se contentaram em saber que seu amigo estava na pior. Seu amigo não se fechou em si mesmo, mas antes compartilhou com eles a sua dor.
Os amigos de que precisamos são como estes até abrirem suas bocas. Mesmo depois disso, foram vitais para Jó. Destaquemos, no entanto, o comportamento dos três amigos antes de começarem a procurar razão para as coisas sem razão (Jó 2.11-13).
Diz a Bíblia que, estando cada em seu lugar e recebendo o anúncio da tragédia, combinaram uma viagem conjunta para apoiar o amigo. Os amigos são assim: deixam voluntariamente seus afazeres e interesses para se dirigir ao outro. Não há amizade que resista ao egoísmo. Eles conheceram Jó nos bons tempos, das festas grandiosas. Agora, nos tempos angustiosos, eles formaram uma comunidade para apoiá-lo. Jó nada tinha para lhes oferecer em retorno; era agora um miserável. Assim mesmo, cada um deles se dispôs a ser um ombro para o desesperado amigo.
Eles tomaram como seus o sofrimento de Jó. As expressões bíblicas indicam bem este envolvimento emocional, que depois perderia espaço para uma perspectiva apenas intelectual. Eles ergueram a voz, como Jó. Eles choraram, como Jó. Eles rasgaram suas vestes, como Jó. Eles se humilharam, como Jó, jogando pó (cinza) sobre suas cabeças. Eles ficaram sete dias (7 indicando que ficaram todo o tempo necessário) consolando com sua presença, sem dizer palavras, porque elas são insuficientes para explicar a tragédia humana.
Um dia destes, duas senhoras, antes do início do culto da noite, abraçaram-se longamente e choraram longamente. Eu não sei por que, mas me lembrei dos três amigos de Jó, pois foi o que fizeram. O choro dos seus amigos ou o choro das duas irmãs da Igreja formava uma comunidade espiritual, sem a qual a vida é insuportável.
Jó pôde contar com amigos que  se dispuseram a ir ao seu encontro, apenas para lhe dar apoio. Jó pôde contar com amigos capazes de chorar. Jó pode contar com amigos capazes de apenas estarem juntos dele. Jó pôde contar com amigo que, pelo menos no primeiro momento, abriram mão de explicar e de oferecer soluções.
Por isto, foram amigos e ajudaram Jó numa época especialmente difícil.
Bom seria que a igreja fosse uma comunidade espiritual para apoiar cada um em sua jornada para Deus..

3. Jó ousou olhar para Deus e esperar a paz.
Jó olhou para si mesmo e viu indignidade. Disse ele: Sou indigno; que te responderia eu? Ponho a mão na minha boca. (Jó 40.4) Jó olhou para os seus amigos e viu as limitações deles, tendo até que enfrentar as suas opiniões.
Jó, no entanto, não se deixou derrotar por estas visões (de si mesmo e dos seus amigos), porque olhou para Deus e esperou a paz que Ele dá.
Diz a Bíblia que, quando o Senhor falou, Jó se calou (Jó 40.4). Uma vez falei e não replicarei, aliás, duas vezes, porém não prosseguirei. (Jó 40.5)
Jó era um homem de fé. Suas falam deixam isto bem claro. Numa delas, seu cântico, entoado antes mesmo de ouvir a palavra sonora de Deus, manifesta sua fé, numa forma que é uma das mais elevadas da esperança humana:

Eu sei que o meu Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra.
Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus.
Vê-lo-ei por mim mesmo, os meus olhos o verão, e não outros;
de saudade me desfalece o coração dentro de mim. (Jó 19.25-27)

Com a fé, muito antes de Paulo, ele entendeu que nem a morte nos pode separar de Deus, que é amor. Acontecesse o que acontecesse com ele, ficasse ele como ficasse, mudasse Deus ou não sua história, ele veria a Deus, porque ele queria a Deus.
Seu relacionamento com o Senhor era uma experiência de fé. E esta experiência de fé o levou a entender Quem era Deus. Eis como ele expressou sua fé:

Ao Todo-Poderoso, não o podemos alcançar;
ele é grande em poder,
porém não perverte o juízo e a plenitude da justiça.
Por isso, os homens o temem;
ele não olha para os que se julgam sábios.
(Jó 37.23-24)

Aquele que se justificava não se justifica mais. Aquele que pretendia, como lembrou Eliú, ser mais justo do que Deus (Jó 32.2), se cala diante dEle, celebra Sua misericórdia e se encanta com a Sua majestade. “A Jó não é oferecida não apenas a mensagem de Deus mas o próprio Deus”.  (CLARK, Kelly James. Quando a fé não é suficiente. Rio de Janeiro: Textus, 2001, p. 83)
Pela fé, Jó aceitou que Deus não o abandonou. Pela fé, experimentou a paz que Deus dá a todos quantos crêem e esperam nEle. Pela fé, “apesar de ainda não compreender porque os inocentes sofrem, ele é abraçado pelo amor divino, e sua ignorância não mais coloca obstáculos à sua fidelidade. Ele viu a força e a misericórdia de Deus, e humildemente confia nEle”. (CLARK, Kelly James. Quando a fé não é suficiente. Rio de Janeiro: Textus, 2001, p. 81)

6. CONCLUSÃO
Termino fazendo uma comparação com um dos momentos da vida diária.
Muitos de nós toda manhã fervemos o leite numa leiteira, a mesma leiteira que levamos à pia para lavar. Ela mantém sua integridade, resistindo ao calor e ao frio, por causa do seu material (aço inoxidável). Nossas vidas devem se assemelhar às leiteiras, capazes de resistir aos extremos da vida. Muitos somos de plástico, que só agüentamos as temperaturas-padrão, nunca seus extremos.
Deus quer nos fazer resistentes, nunca desistentes dEle. Para tanto, precisamos estar em comunhão.
Seu convite a nós é o convite à integridade.

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