VALORES QUE NOS FAZEM VIVER
1Timóteo 4
A escritora norte-americana Camille Paglia recentemente lamentou o cenário ideológico do seu país, com o predomínio da direita em todos os ambientes. Sua explicação foi a seguinte: a esquerda norte-americana, promissora nos anos 60 e 70, deu lugar à direita, que não teve que fazer nada para aniquilá-la: a própria esquerda se auto-destruiu pelo consumo de drogas e pelo envolvimento homossexual, que levou à Aids, mortal naqueles tempos; a droga e o sexo ceifaram, segundo ela, as melhores cabeças dos Estados Unidos. [NESTROVSKI, Arthur. Persona livre. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1004200506.htm>. Acessado em 10.04.2005.]
Na França, dois brilhantes pensadores da sua geração (Roland Barthes e Michel Foucault) foram apagados pelos meios raios letais.
No Brasil, três dos mais brilhantes músicos do último quarto do século 20 tiveram fins precoces e trágicos relacionados ao mesmo tipo de busca do prazer: Elis Regina, Cazuza e Renato Russo.
Essas mortes, ao mesmo tempo em que seduzem alguns, inconscientemente desejosos do mesmo destino “glorioso”, têm suas causas ignoradas por muitos, fixados no prazer a qualquer preço. De igual modo, mas pó razão inversa, essas mortes acabam se tornando pretextos para a negação do prazer em geral, como se fosse algo a ser evitado.
À luz do pensamento paulino, escrevendo ao jovem Timóteo, todas as visões deificadoras ou demonizadoras do prazer não passam de “fábulas profanas e tolas”. É um equívoco a visão de que importa o prazer, importa o momento, como se o resto não importasse. É um equívoco também ensinar que não importa o momento, mas a eternidade, como se o prazer não fosse adequado para quem leva a sério os mandamentos de Deus.
VALORES A NEGAR
A partir do ensino do apóstolo, podemos e precisamos negar os seguintes valores, por mais enraizados que estejam:
1. Em nome de uma espiritualidade, tem sido divulgada como vontade de Deus um estilo de vida ascético sedutor, aplicado a todas áreas (no sexo, no alimento e no dinheiro).
A abstinência sexual, no interior do casamento, por exemplo, só deve acontecer por mútuo consentimento e em caso raro, e para oração e por algum tempo, como ensina Paulo em outro lugar (1Coríntios 7.5).
Alimentar-se é, sobre satisfazer uma necessidade, deliciar-se com a degustação, com o cheiro, com o preparo, com a companhia. A Bíblia está repleta de estímulos gastronômicos, ao ponto de a terra prometida ser vislumbrada como uma região em que o leite e o mel eram abundantes (Êxodo 3.8). Mais tarde, um dos líderes do povo de Israel recomendou: “comam e bebam do melhor que tiverem, e repartam com os que nada têm preparado. Este dia é consagrado ao nosso Senhor. Não se entristeçam, porque a alegria do Senhor os fortalecerá” (Neemias 8.10). Jesus, que participou de vários jantares com amigos e interessados, lembrou que, num sentido espiritual, “não é o que entra pela boca o que contamina o homem, mas o que sai da boca, isto, sim, contamina o homem” (Mateus 15.11). Jesus participou de vários jantares, em casa de amigos e interessados. Ele chegou a se auto-convidar para comer na casa de um recém-convertido (Lucas 19.5).
2. Em nome da liberdade, cristã ou pagã, o sexo por vezes perde sua dimensão espiritual para se tornar apenas uma espécie de ginástica, mesmo que sob o pretexto que fora do prazer não há salvação.
Em nome da beleza e da saúde, o próprio corpo é deificado. O exercício (e todas as formas de modelagem do corpo) só serve para esta vida; deve ser cultivado, mas nesta perspectiva: não vai durar para sempre, não vai integrar o nosso ser na vida eterna, quando teremos um corpo glorificado pela força do Espírito Santo, não pelo exercício físico nem pela representação artística.
Esses ensinos repugnam a Deus, a ponto de Paulo considerá-los nascidos das entranhas dos demônios porque atentam contra a santidade e a beleza de Deus.
Esses ensinos vêm de pessoas que querem controlar outras pessoas, que nem sequer crêem ou vivem o que pedem aos outros.
VALORES A AFIRMAR
A partir do ensino do apóstolo, podemos e precisamos reafirmar os seguintes valores:
1. A criação (a natureza, o corpo e os sentidos) é boa porque foi criada por Deus. Ele mesmo olhou para a Sua criação e se satisfez com ela porque era boa e bela (Gênesis 1).
Contemplar a natureza ou fruir dela, responsavelmente, em passeios, observações, escaladas e outras ações, pode ser uma forma de exaltar o Criador, se Ele for visto como tal: um Criador diferente da obra, que Ele cria para Seu próprio deleite e para o bem-estar da própria criação.
2. O prazer é humano e fruí-lo denota a aceitação de nossa semelhança com o nosso Criador, que vinha, por exemplo, bater papo com o a primeira família ao final do dia (será que em torno de um rodízio de pizza? será que no frescor da beira-rio?)
3. Ao usufruirmos as boas coisas da vida, precisamos e podemos nos lembrar de celebrar nossa confiança e esperança no Deus vivo, para que nossa fruição não seja vaidade das vaidades (cf. Eclesiastes 1.2).
A intensidade da experiência do prazer, no entanto, pode nos levar a nos perdermos nele mesmo.
Ele pode ser fruído como algo fora de nós, numa perigosa fuga, ou como uma expressão de revolta, sempre numa espécie de preenchimento de um vazio muitas vezes do tamanho de Deus.
Qual é o critério para sabermos se o prazer é santo? É quando podemos agradecer a Deus por ele, antes de fruí-lo. Sorvemos aquilo como excelente, mas sabemos que aquilo é temporal. Reconhecemos que seu efeito (pode ser um alimento, um surfe, uma leitura, uma viagem) passará e precisará de outro.
Tudo pode ser santificado: até o que não é. Eis o que fazemos quando agradecemos a Deus…
4. Devemos e podemos santificar o prazer.
Tudo o que Deus fez é santo, originalmente santo. É nossa tarefa conservar esta santidade, confirmando-a ou ressantificando o que conspurcamos.
Aqui é preciso um cuidado, para que a nossa mente não fique cauterizada: quem diz que este ou aquele prazer é santo? É a nossa consciência, Sim, é a nossa consciência, mas a consciência pura, que é aquela educada pela palavra de Deus (2Timóteo 3.16) e desenvolvida por meio da oração (2Timóteo 1.3). Sem uma mente biblicamente orientada, o instinto se torna o senhor, o desejo se torna o guia de nossas escolhas.
5. A salvação é o maior prazer.
A salvação nos põe num relacionamento com Deus que torna plena a nossa vida, de modo a que continuaremos a buscar e fruir os prazeres sabendo que podem e o que não podem dar
A salvação nos põe na certeza de uma vida transbodrante, que faz com que cantemos mesmo em meio a dificuldades. Jesus disse que veio para que tivéssemos vida que transborda (João 10.10)
A salvação nos põe na dimensão da vida quando o prazer será para sempre, sem que precisemos pagar ou nos esforçar para ter acesso a ele. Eis a palavras que no céu se poderão ouvir: “O Espírito e a noiva dizem: `Vem!’ E todo aquele que ouvir diga: `Vem!` Quem tiver sede, venha; e quem quiser, beba de graça da água da vida” (Apocalipse 22.17).
Deve ser nossa a certeza apostólica: “Se trabalhamos e lutamos é porque temos colocado a nossa esperança no Deus vivo, o Salvador de todos os homens, especialmente dos que crêem” (verso 10).
Esta é a certeza do cristão. Quem não a tem é convidado a tê-la.