A BEM-AVENTURANÇA DA MISERICÓRDIA
Mateus 5.7:
Preparado para ser pregado em 23.10.2005, na IB Itacuruçá, noite
“A misericórdia não é uma banalidade; é um assunto extremamente sério na vida” (JOHN PIPER)
Vão se gastando as palavras cunhadas para descrever gestos bons. “Misericórdia” é uma delas. No entanto, a Bíblia está cheia dela, em palavras e em ações. Encontrei 201 vezes o termo na Palavra de Deus, mas há muitos outros, considerados os sinônimos.
Jesus mesmo colocou a misericórdia como uma das oito condições para a felicidade, no seu sermão das bem-aventuranças. Em termos gerais, misericórdia é uma atitude concreta de compaixão para alguém que está em necessidade. Ela nasce no coração de Deus e sintetiza toda a Sua atitude para conosco desde a criação. “As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim; novas são cada manhã; grande é a tua fidelidade”. Traduzido de outro modo: “Graças ao grande amor do Senhor é que não somos consumidos, pois as suas misericórdias são inesgotáveis” (Lamentações 3.22-23). Neemias recorda ao povo, numa oração ao Senhor que Deus, graças à sua misericórdia, não destruiu nem abandonou seu povo, porque Ele é “bondoso e misericordioso” (Neemias 9.31)
Sem misericórdia, sem a misericórdia de Deus, nem respirar conseguiríamos. Sem a misericórdia divina, continuaremos como ossos secos num vale de pó. Sem a misericórdia humana, não conviveríamos com os nossos erros. Sem a misericórdia de algumas pessoas, as vidas de algumas outras pessoas miseráveis seriam insuportáveis.
Eu penso em Saul, que, perseguindo Davi, ficou a sua mercê, mas não foi executado, antes teve a sua vida preservada pela misericórdia do futuro rei de Israel.
Eu penso naquele anônimo homem caído no chão próximo a Jericó, se não fosse o também anônimo samaritano ter considerado a vida do desconhecido mais importante que os seus compromissos ou temores, razão por que salvou a sua vida.
Eu penso nos índios da Guatemala, se não fosse o bispo espanhol Bartolomé de las Casas (1484-1566) a defender os seus direitos de gente.
Eu penso nos pacientes do doutor Albert Schweitzer (1875-1965), que deixou os salões de música e escritório de teologia da Europa para abrir e manter um hospital em Lambaréné (Gabão, África) para quem não podia pagar.
Eu penso nos portadores de hanseníase da Índia, se não tivessem conhecido a misericórdia na pessoa do doutor Paul Brand (1914-2003), que colocou todo o seu conhecimento como cirurgião de mãos para minorar o sofrimento dos chamados “mendigos leprosos” execrados pelo sistema de castas
Eu penso naquela multidão de miseráveis que se aproximaram de Jesus em busca de consolo, cura e comida, recebendo dEle comida, cura e consolo.
Quando ele disse que são bem-aventurados os misericordiosos, sua vida ainda era pouco conhecida; depois, no entanto, muitos vieram a Ele com este pedido nos lábios: “Jesus, tenha misericórdia de mim”, oração que ainda podemos e precisamos fazer, para sermos atendidos do mesmo modo aquele atendeu a todos quantos o procuraram. Sua palavra e Seu testemunho nos pedem e nos estimulam a mesma atitude.
A misericórdia tem muitas faces, mas vem de um mesmo tipo de coração sempre. O misericordioso tem muitos rostos, mas seu gesto bem de sua imagem-semelhança com o Pai de todas as misericórdias (2Coríntios 1.3).
1. O misericordioso é aquele cujo rosto se parece com a face de Deus.
Quero começar com uma história. Dois irmãos se desentenderam por causa de uma herança. Para não morrer, um deles desapareceu, abrigando-se na casa de um parente que morava distante. Passados 20 anos, o fugitivo decidiu voltar, junto com a sua família, para a terra da sua infância. No meio do percurso, no entanto, teria que se encontrar com seu irmão. O culpado separou vários presentes para o outro. A história prossegue assim:
“E disse Esaú:
— De que te serve todo este rebanho que tenho encontrado?
E [Jacó] disse:
— Para achar graça aos olhos de meu senhor.
Mas Esaú disse:
— Eu tenho bastante, meu irmão; seja para ti o que tens.
Então disse Jacó:
— Não, se agora tenho achado graça em teus olhos, peço-te que tomes o meu presente da minha mão; porquanto tenho visto o teu rosto, como se tivesse visto o rosto de Deus, e tomaste contentamento em mim. Toma, peço-te, a minha bênção, que te foi trazida; porque Deus graciosamente má tem dado; e porque tenho de tudo.
Jacó tanto insistiu que Esaú acabou aceitando.
E Esaú disse:
— Caminhemos e andemos; eu partirei adiante de ti”.
(Gênesis 33.8-12 — NVI e ARA)
Estamos diante de uma história de ressentimento mútuo. Julgamos Jacó culpado, mas se ele se sentiu injustiçado por seu irmão, que não cumpriu o acordo que fizeram, ao persegui-lo na juventude. Ao longo de sua vida, o medo do encontro o habitou. Em certo sentido, podemos dizer que ele desejou rever o irmão e foi ao seu encontro, para não ter que conviver com o irmão.
Julgamos Esaú culpado, mas seu direito de primogenitura lhe foi tirado, com o emprego de uma “armação”, da qual participou a sua própria mãe. Ele era o ofendido, o prejudicado, o agredido, a vítima; podia defender-se, atacando, liquidando o ofensor, o covarde, o trapaceiro. Ao longo de sua vida, o desejo de vingança reinou soberano no seu coração. Tinha força suficiente para fazer justiça com as próprias mãos.
De algum modo, a oração de Jacó (Gênesis 32) mudou os corações dos dois. Eliú, o amigo de Jó, disse algo verdadeiro: um homem “ora a Deus e recebe o seu favor; vê o rosto de Deus e dá gritos de alegria, e Deus lhe restitui a condição de justo” (Jó 33.26). E Jacó viu no rosto de Jacó o rosto de Deus. Quando se tornou misericordioso, perdoando quem não merecia, o rosto de Esaú recuperou sua imagem-semelhança com Deus. E Jacó o viu.
Estamos, na verdade, diante de uma história de misericórdia mútua. Jacó viu a face de Deus em Esaú. Esaú viu a face de Deus em Jacó. Jacó obteve misericórdia. Esaú obteve misericórdia.
Quando somos misericordiosos, ficamos parecidos com Deus. Queremos nos parecer com Ele? Ou preferimos nos parecer conosco mesmos? Ou intervir como os amigos de Jó, batendo ainda mais em quem está em dificuldade, sem lhe ouvir o lamento: “Misericórdia, meus amigos! Misericórdia! Pois a mão de Deus me feriu” (Jó 19.21). Misericórdia é ato que vem de Deus sobre os homens, que espera destes o mesmo para com os outros. Não seja duro com a pessoa. Não seja alguém de quem as pessoas tenham medo, como Davi tinha, ao exclamar, numa situação ameaçadora: “É grande a minha angústia! Prefiro cair nas mãos do Senhor, pois grande é a sua misericórdia, a cair nas mãos dos homens” (2Samuel 24.14).
Você quer olhar para si mesmo e se considerar um cristão misericordioso? Seja misericordioso.
2. O misericordioso é aquele que olha para o outro com os olhos do outro, ou melhor, com os olhos de Deus.
Há outra história que nos ajuda a entender como podemos viver assim. Ouça a história.
“Saul voltou da luta contra os filisteus e disseram que Davi estava no deserto de En-Gedi. Então Saul tomou três mil de seus melhores soldados de todo o Israel e partiu à procura de Davi e seus homens, perto dos rochedos dos Bodes Selvagens. Ele foi aos currais de ovelhas que ficavam junto ao caminho; havia ali uma caverna, e Saul entrou nela para fazer suas necessidades. Davi e seus soldados estavam bem no fundo da caverna. Eles disseram:
— Este é o dia sobre o qual o Senhor lhe falou: `Entregarei nas suas mãos o seu inimigo para que você faça com ele o que quiser’.
Então, Davi foi com muito cuidado e cortou uma ponta do manto de Saul, sem que este percebesse. Mas Davi sentiu bater o coração de remorso por ter cortado uma ponta do manto de Saul, e então disse a seus soldados:
— Que o Senhor me livre de fazer tal coisa a meu senhor [isto é: contra Saul], de erguer a mão contra ele, pois é o ungido do Senhor”.
(1Samuel 24.1-6)
Davi olhou para Saul e não viu um homem que injustamente o perseguia. Ele viu um homem criado por Deus, como ele o era. Ele não viu homem prepotente e violente, mas um homem inseguro em sua baixíssima auto-estima. Ele não viu um inimigo a ser eliminado, mas um homem a ser preservado. Ele não viu um obstáculo ao seu sucesso pessoal, mas um ungido do Senhor, como ele mesmo o era.
Davi tinha seus desejos; Saul também. Davi era alguém em quem Deus habitava; Saul também. Davi tinha suas dificuldades; Saul também. Saul não era misericordioso, mas Davi o era. Ele era um ungido do Senhor, mas Saul também o era. O modo, cheio de misericórdia, com que Davi olhou para Saul determinou o seu comportamento. Davi viu a Saul como queria ser visto também. O misericordioso é aquele que vê o outro como gostaria de ser visto.
Este é o nosso problema: queremos ser vistos como nós mesmos nos vemos, mas nem sempre estamos dispostos a olhar o outro como o outro se vê. Só os misericordiosos vêem assim os outros. Ser misericordioso não é ver o outro como acha que o outro é; é ver o outro como outro acha que é. Queremos este tratamento para nós; tratemos os outros assim.
O misericordioso é aquele que não olha o exterior de uma pessoa, buscando proceder como Deus age”. O Senhor não vê como o homem: o homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração” (1Samuel 16.7).
Nossa melhor escolha é ver as pessoas através dos olhos misericordiosos de Deus, do Deus revelado em Jesus, do Deus encarnado em Jesus. Quando nos relacionamos com uma pessoa já alcançada pela graça de Jesus, temos alguém em quem o Espírito Santo de Deus habita; é com misericórdia que devemos olhar para essa pessoa. Quando convivemos com uma pessoa que ainda não teve sua vida gerada de novo pelo sangue de Jesus Cristo, temos alguém por quem nosso Senhor morreu; é com misericórdia que devemos olhar para essa pessoa. Em qualquer circunstância, “temos algo maravilhoso e poderoso para dar aos outros e também para liberar dentro de nós mesmos”. (CRABB, Larry. Conexão. São Paulo: Mundo Cristão, 2000, p. 120.)
Você quer olhar para si mesmo e se considerar um cristão misericordioso? Seja misericordioso.
3. O misericordioso é aquele cujo ego é menor que o seu coração.
Naturalmente nossos egos são maiores que nossos corações. Nos misericordiosos, que são aqueles que sentem com o coração a dor do outro, os egos são menores que os corações de seus donos.
Há um rei no Antigo Testamento que personifica, mesmo que anonimamente, o narcisismo humano a que muitos podemos chegar. Deus incumbe o profeta Ezequiel da seguinte mensagem: “Diga [ao governante de] Tiro, que está junto à entrada para o mar, e que negocia com povos de muitos litorais: Assim diz o Soberano, o Senhor: “Você diz, o Tiro: ‘Minha beleza é perfeita’. (…) No orgulho do seu coração você diz: ‘Sou um deus; sento no trono de um deus no coração dos mares’. Mas você é um homem, e não um deus, embora se considere tão sábio quanto Deus. Mediante a sua sabedoria e o seu entendimento, você granjeou riquezas e acumulou ouro e prata em seus tesouros. Por sua grande habilidade comercial você aumentou as suas riquezas e, por causa das suas riquezas, o seu coração ficou cada vez mais orgulhoso” (Ezequiel 27.3; 28.2, 4-5).
O egoísmo é a doença-mãe da humanidade. Todas as outras são geradas no seu útero. O egoísmo é uma doença que nos faz adoecer ainda mais. O egoísmo leva a pessoa à auto-destruição e à destruição da sociedade em que vive. Apesar desta percepção, parece que nada nos consegue afastar da preocupação obsessiva conosco mesmos. (PETERSON, Eugene. Onde o seu tesouro está. Niterói: Textus, 2005, p. 15.) O egoísmo está na origem da injustiça, da miséria e da violência.
O egoísmo é uma espécie de ateísmo do coração. Deus existe, mas não importa. O egoísta não tem tempo para Deus. Para este tipo de ateu, a dependência humana de Deus é vista como uma fraqueza moral; não uma virtude espiritual. É bom que nos lembramos de que “precisamos de Deus sob nossos pés e dentro de nossos pulmões. Dependemos do Criador, das criaturas e da comunidade. Ele é o grande continente de realidade em que vivemos. Se O negamos na prática, tentando viver no oceano do ego, logo nos cansamos e precisamos de todo tipo de ajuda artificial para nos manter à superfície — pedaços de madeira flutuante e coletes salva-vidas. O oceano não é o nosso ambiente natural. Toda hora ficamos com os pulmões cheios de água e precisamos ser resgatados para receber respiração artificial. Depois partimos e recomeçamos tudo. Deveríamos simplesmente deixar o oceano do ego e firmar os dois pés na terra seca do reino de Deus”. (PETERSON, Eugene, op. cit., p. 133.)
O egoísmo é uma espécie de niilismo do coração. Afinal, o outro é apenas um bem de consumo. (PETERSON, Eugene, op. cit., p. 134.) Não vale a pena se envolver com o próximo. Não vale a pena levantar o próximo. Nenhum convite para ajudar o outro o toca. Nada é com ele. Solidariedade é tido como um sentimento menor ou, no máximo, para quando sobra algum tempo ou algum dinheiro. O egoísta não tem tempo para os outros; os outros que resolvam os seus problemas. O egoísta não abre mão de nada; afinal — raciocina — tudo o que tem foi conquistado com muito sacrifício. O egoísta não visita enfermos; afinal — explica-se — hospital é um lugar deprimente. O egoísta não entra em presídios; afinal — pensa –, quem está ali está ali porque merece.
Permita-me uma pergunta: qual o tamanho do seu ego? Para lhe ajudar nesta resposta maior, permita-me fazer algumas perguntas para o seu diagnóstico: qual foi a última vez que você doou pelo menos um quilo de alimento a alguém? qual foi a última que você se preocupou com alguém, fora do círculo familiar? qual foi a última vez que você parou para ouvir alguém? qual foi a última vez que você intercedeu por alguém? qual foi a última vez que você se envolveu num ministério da igreja? qual foi a última vez que você aceitou perder uma discussão? qual foi a última vez que você pediu desculpas a alguém?
“Toda vez que faz alguma coisa que deriva da sua necessidade de aceitação, afirmação ou atenção, e toda vez que faz alguma coisa que contribui para que essa necessidade cresça, saiba que você não está com Deus”. (NOUWEN, Henri. A voz íntima do amor. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 37.)
Lembro que, ignorando que “o ego não é o contexto em que se pode viver em sentido completa e humano”, (PETERSON, Eugene, op. cit., p. 133.) o egoísta é aquele quer vencer sempre, mesmo à custa da guerra; o egoísta quer ser satisfeito sempre, mesmo que suas necessidades sejam vazias; o egoísta quer que Deus o sirva, numa forma eloqüente de idolatria mesmo que sem nome.
O misericordioso é aquele que tem ego, como todo mundo, mas procura mantê-lo crucificado com Cristo (Gálatas 2.20). O egoísta deleita-se em si mesmo. O misericordioso é aquele que sofre com os outros. O egoísta sofre apenas consigo mesmo.
O misericordioso é aquele que faz diferença no mundo, porque só os misericordiosos tornam diferente o mundo, mas os egoístas fazem-no cada vez mais igual. O misericordioso é agente do amor de Deus, porque o amor de Deus tem agentes, que são os misericordiosos.
Eis o que nos pede o Senhor da história: “Administrem a verdadeira justiça, mostrem misericórdia e compaixão uns para com os outros. Não oprimam a viúva e o órfão, nem o estrangeiro e o necessitado. Nem tramem maldades uns contra os outros” (Zacarias 7.9-10).
Você quer olhar para si mesmo e se considerar um cristão misericordioso? Seja misericordioso.
4. O misericordioso é aquele que está se capacitando para receber misericórdia.
Temos um problema, mas aparente problema, nesta bem-aventurança. Jesus diz que os misericordiosos obterão misericórdia. Neste caso, os misericordiosos não são misericordiosos porque agem na expectativa da misericórdia que vão receber.
Li até, numa reflexão vinda de alguém de outra confissão religiosa, que “o motivo pelo qual Jesus disse que os misericordiosos alcançarão misericórdia é que receberemos aquilo que fizermos aos outros”.
Não! Os misericordiosos não colherão necessariamente misericórdia. Assim mesmo, continuarão misericordiosos, mesmo sem estímulo, mesmo sem reforço positivo, como diriam os psicólogos.
Não! Os misericordiosos não agem para ser honrados por Deus e receber dEle o prêmio que acham merecer. O resultado da misericórdia é a bênção divina, na maioria das vezes, porém, invisível, imperceptível. O bom samaritano não esperava nada, em termos de recompensa. Seu modelo é Deus, que não espera; se esperasse, não faria, porque conhece a infidelidade humana..
Obterão misericórdia os que tiverem os corações preparados para receber misericórdia, preparo que se recebe com a prática da misericórdia. O ladrão na cruz, ao olhar para Jesus com misericórdia, teve o seu coração preparado para receber misericórdia; ele ficou pronto, porque a misericórdia cura. Obterão misericórdia os que recebem para compartilhar, não para guardar.
A misericórdia, portanto, deve ser um estilo de vida. “Quando você vivencia misericórdia e compartilha misericórdia, seu coração está em condições de receber mais misericórdia para compartilhar com os outros. Jesus não nos está pedindo para sermos misericordiosos de vez em quando; Ele está nos pedindo para sermos constantes canais de misericórdia. “Dêem, e lhes será dado” (Lucas 6.38). Ao transmitir misericórdia, abrimos nossos corações para receber misericórdia e, tendo recebido, podemos compartilhar mais e mais”. (WIERSBE, Warren. Live Like a King! Grand Rapids: Kregel, 1995, p. 106.)
O misericordioso não age por causa de um motivo; ele age por causa daquilo que Deus é, por causa daquilo que Deus lhe faz, por causa daquilo que Deus lhe pede. Ele age assim porque descobriu que, querendo ou não, faz parte de uma comunidade. Ele age assim porque Deus é o centro de suas vidas. E Ele o empurra para os outros. Misericordioso é aquele que vive perto de Deus, e isso lhe basta.
Você quer olhar para si mesmo e se considerar um cristão misericordioso? Seja misericordioso.
5. O misericordioso é aquele que não se esquece que foi resgatado por Jesus, por causa da misericórdia de Deus.
Quero sugerir três textos para memorização. Eles têm que estar diante de nós, se não em nossa mente, numa placa, numa faixa, num ímã de geladeira.
. O primeiro é “Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, deu-nos vida com Cristo, quando ainda estávamos mortos em transgressões” (Efésios 2.4-5).
. O segundo é: “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o pior. Mas por isso mesmo alcancei misericórdia, para que em mim, o pior dos pecadores, Cristo Jesus demonstrasse toda a grandeza da sua paciência, usando-me como um exemplo para aqueles que nele haveriam de crer para a vida eterna” (1Timóteo 1.15-16).
. O terceiro é: “Quando, da parte de Deus, nosso Salvador, se manifestaram a bondade e o amor pelos homens, não por causa de atos de justiça por nós praticados, mas devido à sua misericórdia, ele nos salvou pelo lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele derramou sobre nós generosamente, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador” (Tito 3.4-6).
Todos os textos são sobre a graça, outro nome para a misericórdia divina.
O primeiro texto (Efésios 2.4-5) nos mostra que a graça nos alcançou. Não fomos nós quem a alcançamos. A iniciativa foi de Deus. A iniciativa continua sendo de Deus. Talvez você diga:
— Mas eu tenho procurado a Deus.
É verdade, mas não há mérito nesta sua busca. Você está apenas respondendo ao convite de Deus. Ele colocou no seu coração o desejo por Ele, seja por meio de uma necessidade que o incomoda, de um problema que o aflige ou de um desejo seu por adorá-lO. Quando você aceita a morte de Cristo por você, você recebe vida. A partir daí, a partir desta misericórdia, você pode ser misericordioso. Antes, é esforço; antes, é troca; depois de Cristo entronizado no seu coração, é gratidão; é devolução; é entrega.
O segundo (1Timóteo 1.15-16) descreve o apóstolo Paulo, que se considerava o pior dos pecadores. Descreve você? Nasci num lar evangélico, filho e neto de evangélicos atuantes em suas igrejas. Será que me descreve? Paulo perseguiu cristãos; eu nunca persegui ninguém; desde muito cedo, leio e ensino a Bíblia. Será que sou um pecador assim tão ruim? Será que você, que tem uma biografia semelhante ou melhor que a minha, é um grande pecador? Quanto a mim, posso garantir: sou um grande pecador; ou melhor, fui um grande pecador; hoje sou um pecador redimido. Jesus morreu por mim. O meu coração era igual ao de Paulo, embora não tivesse tido as mesmas oportunidades horrorosas dele. Se tivesse… Ainda hoje preciso me esconder ao pé da cruz; preciso que a sombra da cruz me cubra; se não meu ego me domina.
O terceiro (Tito 3.4-6) nos mostra como fomos salvos: Jesus Cristo generosamente derramou sobre nós o Seu Espírito, que nos lavou, nos regenerou e nos renovou. Particularizemos: Jesus Cristo generosamente derramou sobre mim o Seu Espírito, que me lavou, mês regenerou e me renovou.
Meu mérito não é presumido. Minha culpa, sim. Muito antes de Jesus, Daniel entendeu a dinâmica do perdão, ao orar assim: “Inclina os teus ouvidos, oh Deus, e ouve; abre os teus olhos e vê a desolação da cidade que leva o teu nome. Não te fazemos pedidos por sermos justos, mas por causa da tua grande misericórdia” (Daniel 9.18). Preciso, então, entender a graça, aceitar a graça, viver a graça. Preciso tornar a olhar para a cruz, celebrar a cruz e me agarrar à cruz.
Por causa de Jesus e do Espírito Santo, quero ser misericordioso. Se for ferido, não quero ficar ferido. Se for traído, eu me comprometo a não dar as costas ao traidor que voltar. Continuarei distribuindo, mesmo que não receba. Quero continuar é livre, mesmo que à minha volta muitos estejam presos ao egoísmo, ao rancor, à vingança, à decepção. Para viver, não dependo da minha misericórdia para com os outros, mas dependo da misericórdia de Deus para comigo.
Você quer olhar para si mesmo e se considerar um cristão misericordioso? Seja misericordioso.
6. O misericordioso é aquele que vive a dinâmica do perdão.
Perdão tem a ver com os que são feridos e com os que ferem. A recomendação bíblica é clara: no que depender de nós, devemos viver em paz uns com os outros (Romanos 12.18; Hebreus 12.14). Jesus nos ensina claramente que aquilo que queremos que os outros nos façam, devemos fazer com eles (Lucas 6.31).
O princípio 6 do caminho para a recuperação é bem preciso: “Examino todos os meus relacionamentos, oferecendo perdão àqueles que me fizeram mal e reparando os danos que causei a outras pessoas, exceto quando faze provocaria mais danos a essas pessoas ou a terceiros” (Princípio 6). O princípio parte da bem-aventurança da misericórdia para incorporar o passo 8 dos Alcoólicos Anônimos: “Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem prejudicamos e dispusemo-nos a fazer reparações a todas elas”.
Misericórdia tem a ver com perdão. Só os misericordiosos perdoam. Todos os outros esperam por justiça ou mesmo por vingança.
1. Decida aceitar o perdão de Deus para você.
Há uma promessa extraordinária na Bíblia: “Venham, vamos refletir juntos”, diz o Senhor.“Embora os seus pecados sejam vermelhos como escarlate, eles se tornarão brancos como a neve; embora sejam rubros como púrpura, como a lã se tornarão” (Isaías 1.18). Em outras palavras, “quem esconde os seus pecados não prospera, mas quem os confessa e os abandona encontra misericórdia” (Provérbios 28.13).
Se aceitou como sendo para você o perdão de Jesus espalhado a partir da cruz, você foi perdoado, você está perdoado. Se ainda não aceitou, “busque o Senhor enquanto é possível achá-lO; clame por ele enquanto está perto. Que o ímpio abandone o seu caminho, e o homem mau, os seus pensamentos. Volte-se ele para o Senhor, que terá misericórdia dele; volte-se para o nosso Deus, pois ele dá de bom grado o seu perdão” (Isaías 55.6-7).
Viva a promessa da restauração, tanto no plano espiritual quanto no plano emocional. Seus pecados foram lançados no fundo mar (Miquéias 7.19). A sentença foi rasgada e não sobrou cópia. Eis a verdade bíblica: “Quando estávamos mortos em pecados e na incircuncisão da carne, Deus nos vivificou com Cristo. Ele nos perdoou todas as transgressões e cancelou a escrita de dívida, que consistia em ordenanças, e que nos era contrária. Ele a removeu, pregando-a na cruz, e, tendo despojado os poderes e as autoridades, fez deles um espetáculo público, triunfando sobre eles na cruz” (Colossenses 2.13-15).
No plano espiritual, não permita que nada lhe tire a alegria deste perdão.
No plano emocional, não se deixe escravizar outra vez. Não se deixe enredar pelo autopiedade. Em muitas pessoas, “a recusa em aceitar o consolo revela a motivação escusa do lamento: usar a tristeza para assegurar a tirania do ego. Todos devem reparar em mim porque estou sofrendo”. (PETERSON, Eugene, op. cit., p. 115.) Não faça do seu vício uma prática para ficar ao abrigo do perdão de Deus. Ponha o seu vício diante de Deus, para que Ele o perdoe e o liberte. Não faça do trauma que o atingiu uma desculpa para continuar se ferindo. Ponha o seu trauma no colo de Deus e viva livre. Não faça da sua compulsão, seja ela qual for, um guarda-chuva para a sua fraqueza. Ponha a sua compulsão no altar de Deus e peça a Ele que ajude você a ficar liberto.
Perdoe-se a si mesmo. Seja misericordioso consigo mesmo. Deus já o perdoou. Se Ele já o perdoou, o que você está esperando. Somos “agora definidos por algo incrivelmente bom, por mais que a vida nos tenha machucado, por piores que sejam os nossos fracassos”. (CRABB, Larry, loc. cit.)
Peça a misericórdia de Deus. Os salmos contêm 30 orações com este tipo de pedido. Faça alguns deles. “Misericórdia, oh Deus; misericórdia, pois em ti a minha alma se refugia. Eu me refugiarei à sombra das tuas asas, até que passe o perigo” (Salmo 57.1). “Em alta voz clamo ao Senhor; elevo a minha voz ao Senhor, suplicando misericórdia” (Salmo 142.1).
Decida viver como você é, ou pode ser: um perdoado por Deus.
2. Decida perdoar os que lhe feriram.
Perdoe quem lhe feriu, mesmo sabendo que o perdão é uma bela idéia, até que tenha de pô-la em prática. (BAKER, John. Celebrando a recuperação; guia do líder.. São José dos Campos: Propósito, 2004, p. 155.) Lembre-se que você foi perdoado. E o seu pecado foi rejeitar completamente a Deus. Não foi uma ofensa pequena. Não foi um mal-entendido. Foi a algo grave.
Para tanto, você precisa admitir que foi ferido. Faça a ferida sair de dentro de você. Grite, se for preciso. Você só será curado quando admitir que foi ferido. Não faça de conta que não foi ferido; a conta será cobrada. Não jogue a ferida para debaixo da pele; ela vai aflorar.
Quem feriu você? Se for o caso, faça uma lista, mentalmente ou por escrito.
Depois, procure o momento certo, para pedir perdão. Peça com sinceridade, sem justificar o que fez. Apenas peça perdão, humilhando-se mesmo. Perdão é decisão. Perdão é disposição. Perdão é aprendizagem.
Não espere nada em troca. Simplesmente deixe seus ofensores partirem de sua vida. Se eles pedirem perdão, perdoe-os. Se não pedirem, perdoe-os. Pode ser que, quando o feriram ou agora que não lhe pedem perdão, saibam o que estão fazendo e o estão fazendo de propósito. Perdoe-os, como Jesus, todo machucado, todo ensangüentado, quase à morte, fez. Pode ser que não saibam o que estão fazendo, perdoa-as, como Jesus os perdoou. E morreu em paz.
Não perdoe uma única vez apenas. Perdoe todas as vezes que a ofensa povoar sua lembrança, nem que isto ocorra 70 vezes 7. A regra de Jesus é clara: “Não julguem, e vocês não serão julgados. Não condenem, e não serão condenados. Perdoem, e serão perdoados” (Lucas 6.37). “Perdoem como o Senhor [Jesus] lhes perdoou” (Colossenses 3.13).
Quem machuca alguém propositadamente se torna menor que o ferido. Quem se vinga de alguém se rebaixa ao mesmo nível dele, mas perdoar quem lhe fere é uma atitude de grandeza. Além disso e o mais importante ainda é que, quando se perdoa alguém, há duas pessoas libertadas: o perdoador e o perdoado.
Se, neste processo, tiver que abrir mão de algo, perca. Se for necessário um acerto de contas, Deus o fará, se quiser e quando quiser e do jeito que quiser. Deixe isto com ele.
Precisamos arrancar as ervas daninhas que sufocam os nossos relacionamentos, passados e presentes. “Quando o cristão demonstra misericórdia, ele experimenta libertação. Ele fica livre dos rancores que drenam a força e desestruturam a mente. A prisão mais miserável no mundo é a prisão que construímos para nós mesmos quando nos recusamos a demonstrar misericórdia. Nossos pensamentos tornam-se embaraçados, nossas emoções ficam acorrentadas, nossa vontade fica quase paralisada. No entanto, quando demonstramos misericórdia, todas essas barreiras são quebrados e entramos numa liberdade alegre que nos livra para compartilhar o amor de Deus com as outras pessoas. A bênção da liberdade é o caminho pelo qual recebemos misericórdia quando demonstramos misericórdia. É o resultado da obediência a Deus. É maravilhoso viver compartilhando a misericórdia de Deus e não tendo que julgar as pessoas se são `dignas’ do que temos para lhes oferecer”. (WIERSBE, Warren, loc. cit.)
Decida viver como Deus quer que você viva: um perdoado que perdoa.
3. Decida reparar os danos que causou.
Acerte-se com quem você feriu. Admita que causou danos ao outro, talvez há muito tempo. Quem sabe, tenha pegado um dinheiro escondido e nunca se soube. Quem sabe, tenha tomado algo emprestado e acabou com raiva do seu benfeitor. Quem sabe, prejudicou alguém para ser promovido no emprego. Quem sabe, esconda um livro na estante que não é seu. Quem sabe, julgou mal alguém e viu que estava enganado. Quem sabe, foi agressivo com alguém e reconhece que errou. Quem sabe, caluniou alguém. Quem sabe, desejou o mal para alguém. Quem sabe, ofendeu alguém. Quem sabe, não socorreu alguém que precisa de você. Peça perdão. Repare sua falta.
No caminho da recuperação, não se pergunte como vai ser difícil pedir perdão, não olhe para o tamanho do estrago feito, não imagine que será impossível ser perdoado. Jacó imaginou que seu raivoso irmão não iria perdoa, mas sabemos como a história terminou, embora cada um para o seu lado, como, por vezes, é preciso que aconteça.
Escolha o momento certo. Depois de ter decidido reparar o dano causado, ore e peça a orientação dEle para todos os cuidados a partir daí, inclusive para o momento propício para a atitude a ser tomada. Lembre-se de Zaqueu. Primeiro, ele tomou a decisão. Depois, ficou de ver o que precisava ser reparado, com a disposição de, no caso de dinheiro cobrado a mais, devolver quadruplicadamente.
E quando a reparação causar mais dano? Neste caso, e só neste caso, como nos ensinam os Alcoólicos Anônimos, devemos nos deter. Nesta condição, nossa reparação traria ainda mais dano. O amor é um valor maior que a verdade. A reparação ficará só entre nós e Deus.
Decida viver como Deus quer que você viva: como alguém que perdoa e busca reparar os danos que provocou no outro, a menos que isto não seja bom para o outro.
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A misericórdia cura. “Que Deus tenha misericórdia de nós e nos abençoe, e faça resplandecer o seu rosto sobre nós” (Salmo 67.1).
Deus o abençoe nesta jornada. Se este é o seu desejo, ore comigo assim: “Senhor, tenho sido consumido pela falta de perdão. Sei que tu me perdoaste, mas, às vezes, vivo ainda sob um fardo que não pões mais sobre mim, porque Jesus o levou de mim, para sempre. Então, Senhor, te peço: dá-me a alegria do teu perdão, por causa da tua imensa misericórdia para comigo. Mas eu te peço mais, porque tenho sido atormentado por feridas que cavaram fundo no meu ser. Dá-me força para perdoar. Dá-me sabedoria para reconhecer que no perdão está a liberdade. Ajude a deixar irem os meus ofensores. Ah! Senhor, eu também magoei, eu também feri, eu também machuquei. E agora quero reparar os danos que causei, para remover as ervas daninhas do meu coração e dos meus relacionamentos. Dá-me força, porque isto é muito difícil, Senhor. Ajuda-me a mostrar misericórdia. Fortalece-me para ser misericordioso. Eu preciso, como nunca, de Ti, Senhor. Vem me socorrer. Eis o que te peço. Em nome de Jesus. Amém”.