Lucas 9.46-56: JESUS NOS ENSINOU A TOLERÂNCIA

JESUS NOS ENSINOU A TOLERÂNCIA

Lucas 9.46-56

Pregado na IB Itacuruçá, em 14.12.2003, manhã

Odiar é escolher a facilidade simplista e redutora do desdém como fonte de satisfação. É cavar um fosso onde cairão sufocados o agente do ódio e sua vítima. Odiar é atear o fogo da guerra em que as crianças se tornam órfãs, e os velhos, loucos de dor e de pena.
Em religião, o ódio esconde a face de Deus. Em política, o ódio destrói a liberdade dos homens. No campo das ciências, o ódio está a serviço da morte. Em literatura, ele deforma a verdade,  desnaturaliza o sentido da história e encobre a própria beleza sob uma grossa camada de sangue e de feiúra.
O ódio é como a guerra: uma vez começada, é tarde demais.
(Elie Wiesel — WIESEL, Elie. Prefacio. Em: A intolerância. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000, p. 8)

Jesus mudou o mundo. Não dá para imaginar o mundo sem o natal de Jesus. Não dá para imaginar também como a intolerância ainda persegue o mundo.
No final de 2003, dois jovens viajavam num vagão de trem em São Paulo. Vestiam roupas tipo punk. Outros jovens se acercaram deles e eles acabaram sendo jogados para fora com o trem em movimento. Um teve grave traumatismo craniano e outro perdeu um dos braços. Segundo as denúncias, os agressores eram skinheads, que não podiam tolerar punks no seu “território”.
Na mesma época, o governo francês pretendia, em nome do secularismo, considerado melhor que a religião, proibir que alunas e professoras muçulmanas usassem véus nas escolas da França.
Apesar do que ensinou Jesus, que foi morto pela mão e pelos pés da intolerância, muitos cristãos no passado trafegaram pela mesma via da morte. Na maior parte do mundo controlado pela fé islâmica, ser cristão é crime punível com a pena de morte. Na maior parte do mundo cristão, há liberdade de expressão para todos, mas há cristãos individuais e organizações cristãs envolvidos em movimentos de ódio contra outras pessoas, porque pensam diferente. No interior da igreja, há pessoas que não se falam, mas falam mal da outra, porque têm interpretações diferentes da Bíblia ou porque têm gostos litúrgicos diferentes.
Jesus nasceu para nos pôr em outra via.

Leio, então, uma das histórias do Novo Testamento (Lucas 9.46-55), em que Jesus nos mostra como viver.

Começou uma discussão entre os discípulos acerca de qual deles seria o maior.
Jesus, conhecendo os seus pensamentos, tomou uma criança e a colocou em pé, a seu lado. Então lhes disse:
— Quem recebe esta criança em meu nome, está me recebendo; e quem me recebe, está recebendo aquele que me enviou. Pois aquele que entre vocês for o menor, este será o maior”.
Disse João:
— Mestre, vimos um homem expulsando demônios em teu nome e procuramos impedi-lo, porque ele não era um dos nossos.
— Não o impeçam” — disse Jesus, — pois quem não é contra vocês é a favor de vocês.
Aproximando-se o tempo em que seria elevado aos céus, Jesus partiu resolutamente em direção a Jerusalém. E enviou mensageiros à sua frente. Indo estes, entraram num povoado samaritano para lhe fazer os preparativos; mas o povo dali não o recebeu porque se notava que ele se dirigia para Jerusalém. Ao verem isso, os discípulos Tiago e João perguntaram:
— Senhor, queres que façamos cair fogo do céu para destruí-los?
Mas Jesus, voltando-se, os repreendeu, dizendo:
— Vocês não sabem de que espécie de espírito vocês são, pois o Filho do homem não veio para destruir a vida dos homens, mas para salvá-los.
E foram para outro povoado.

Esta é uma história de intolerância, ou melhor, de intolerâncias.
Os discípulos de Jesus tinham dificuldades em conviver com o sucesso, imaginário no caso, do outro. A disputa deles tem a ver com a incapacidade de se respeitar o outro e em se admirar o outro e de se entender que cada um tem um lugar no Reino de Deus, em função de suas habilidades e em função  da necessidade do Reino.
Os samaritanos odiavam os judeus porque estes cultuavam em Jerusalém; eles detestavam o sectarismo judeu. Por esta razão, não cooperaram, como mandava a hospitalidade, com os discípulos de Jesus que recolhiam donativos para a viagem. A sua intolerância os cegou para ver o Messias.
Os judeus odiavam os samaritanos porque eles, no passado, tinham se envolvido em casamentos mistos (com não judeus) e agora não podiam ser aceitos na comunidade dos filhos de Abraão. Os discípulos se tornaram escravos deste mesmo sentimento. A sua intolerância os levou a agir contra suas próprias convicções espirituais. Eles eram crentes, o que prova que mesmo os mais crentes, como Pedro, Tiago e João, os mais íntimos  de Jesus, podem se tornar intolerantes, violentamente intolerantes.

1. Não façamos do conhecimento da verdade um escudo para esconder nosso pecado (verso 46-47).
Há dois episódios nesta história, que se interligam, porque toda a intolerância é filha do vaidoso desejo de ser superior aos outros. Jesus era combatido por fariseus e saduceus, que certos de suas verdades, como maiores e melhores, recusavam quaisquer outros. Temerosos que suas verdades fossem negadas, negaram ao outros, Jesus e seus seguidores, o direito à liberdade e, por fim, o direito à própria vida.
A intolerância tem a ver com a presunção da verdade. A intolerância tem a ver com a vaidade. Os fariseus e saduceus tinham a certeza que estavam mais certos e eram melhores. Quem não era bom como eles, deviam se converter ou morrer.
Ao longo da história cristã, muitos cristãos que puderam carregar no peito da tolerância, enquanto outros deixaram seus corpos ser manchados pelo sangue dos que pensavam diferentes deles, e logo nos vêm a mente o triste episódio da inquisição européia, ramificada na América Latina.
Olhando para os exemplos tristes, ocorre-me pensar que o intolerante tem algo escondê-la. Posso recorro à história real relatada por Philip Yancey no admirável “Maravilhosa Graça”. Joe Grandão era um intolerante. Embora fosse (ou se achasse) cristão, não aceitava a igualdade racial e, diferentemente de todo ensino bíblico, se envolveu em vários episódios de intolerância contra os negros. Atrás daquele ódio todo estava um escudo para esconder a sua patologia sexual. Mudou-se para a África do Sul, então ainda sob o apartheid, onde foi preso e condenado por assédio sexual a uma atriz.

2. Aprendamos com as crianças que brincam com aquelas que lhe são diferentes, porque lhes importam viver e deixar viver (verso 48).
Por que Jesus “apela” para as crianças para ensinar humildade e tolerância? É porque Ele sabe que, mesmo nas situações mais injustas e desiguais, é possível verem-se crianças de condições socioeconômicas diferentes, de cores diferentes, de religiões diferentes, brincando naturalmente. Crianças não têm preconceitos… até serem “doutrinadas” pelos adultos.

3. Peçamos a Deus a capacidade de conviver com o outro, fora e dentro de nossas igrejas, mesmo que pensem diferentemente de nós (verso 49-54).
Os discípulos não toleraram a intolerância dos samaritanos. Por isto, queriam que Deus os consumisse pelo fogo (verso 54). Eles acham que podiam curar o preconceito com um preconceito e com uma violência maior.
Conviver com a diferença inclui a liberdade religiosa. Não devemos reprimir ou discriminar qualquer minoria religiosa, seja por uma questão de princípios (a religião, aprendemos com os primeiros batistas da história, no século 17 inglês, é uma questão de foro íntimo, entre o crente ou descrente e Deus) e por uma questão de inteligência: quando restringimos a liberdade do outro, estamos autorizando que suprimam a nossa também. É triste que “o Cristianismo que produz grandes perseguições religiosas tenha, junto com o Judaísmo, firmado o estímulo essencial para a liberdade religiosa” (James Leo Garrett, Jr. GARRETT, JR., James Leo. Religious Freedom: Why and How in Today’s World. Disponível em <http://www.preciousheart.net/religious%20freedom/Advocates_3a.htm>. Acessado em 13.12.2003.)
Jesus e os primeiros cristãos praticaram o princípio e a prática da liberdade religiosa. Eles nunca perseguiram ninguém. Antes, Jesus pediu que sequer reagissem quando fossem perseguidos (Mateus 5.10-12; 10.17-23; 23-29-36; Marcos 13.9-13). Os cristãos não podemos nos esquecer das palavras do apóstolo Pedro: Se vocês são insultados por causa do nome de Cristo, felizes são vocês, pois o Espírito da glória, o Espírito de Deus, repousa sobre vocês ( 1Pedro 4.14).
A propósito, só a partir do quarto século os cristãos passaram a apoiar o uso do poder civil para forçar à uniformidade religiosa. A liberdade religiosa é uma conseqüência da fé cristã. “A base da liberdade religiosa se demonstra pelo simples fato que Cristo não veio com esplendor celeste e majestade humana para subjugar qualquer possível resistência e obrigar a todos à sujeição” (Niels H. Soe). GARRETT, JR., James Leo, op. cit. Antes, nasceu do modo que nasceu, como nos recorda a história do Seu natal.
O natural em nós é pedir fogo do céu contra os que consideramos ser adversários de Deus. Acabamos por achar que quem pensa diferente de nós é contra nós. Por isto, brigamos demais entre nós. Igrejas locais são divididas pela intolerância. Seminários são feridos pela intolerância. Denominações são rachadas pela intolerância. Pior que tudo isto: pessoas são feridas de morte pela intolerância.
Alguns intolerantes usam o exemplo do Espírito Santo, que puniu os mentirosos Ananias e Safira por uma mentira que destruiria a comunidade (Atos 5), para justificar sua violência. Tais pessoas querem ser espadas de Deus, mas para este tipo de trabalho o Senhor não precisa do nosso concurso.
O espiritual em nós é saber que nós mesmos podemos nos tornar em adversários de Deus, pelo que temos que pedir a Deus que nos ajude a viver como Ele quer.

Tolerar não é aceitar o pecado. O apóstolo Paulo não pode ser tachado de intolerante porque se recusou a tolerar a imoralidade sexual na igreja de Corinto, onde havia imoralidade que não ocorre nem entre os pagãos. Ele recomenda que os cristãos não deviam se associar-se [participar do seu estilo de vida] com qualquer que, dizendo-se irmão, seja imoral, avarento, idólatra, caluniador, alcoólatra ou ladrão. Com tais pessoas vocês nem devem comer  (1Coríntios 5.1,11,12). Mesmo no caso de Alexandre, o latoeiro, cuja expulsão foi recomendada por Paulo, o apóstolo via nesta disciplina a maneira que levar Alexandre ao arrependimento (1Coríntios 5.2,5,13).

4. Lembremo-nos de que espírito somos (verso 55).
Jesus repreende os seus seguidores, lembrando-lhes que estão se esquecendo de que espírito são.
Ensina-nos o Novo Testamento que somos de Cristo (1Coríntios 1.30). E quem é de Cristo é tolerante. Quando somos carnais, nos deixamos levar por invejas e contendas, vivendo, assim, segundo os homens, não segundo o Espírito de Deus (1Coríntios 3.3).
Não sejamos do nosso jeito, mas do jeito de Cristo.

5. Evitemos controvérsias inúteis (verso 56).
O relato termina de uma maneira aparentemente displicente: E foram para outro povoado. Isto é: eles deixaram o povoado samaritano, onde não foram tolerados e contra o qual desejaram manifestar sua natural intolerância.
Esta informação significa que, instruídos por Jesus, tiveram a sabedoria de buscar outros povoados onde pudessem desenvolver o seu ministério. Ali seria lugar de ódio mútuo. Seria lugar de controvérsia inútil. Seria lugar de perder de vista o essencial por causa do acidental.
Ao fazê-lo, aprenderam, como recomendaria mais tarde o apóstolo Paulo, a evitar controvérsias tolas, genealogias, discussões e contendas a respeito da Lei, porque essas coisas são inúteis e sem valor (Tito 3.9). Coisas inúteis e sem valor são aquelas que precisam ter um vencedor, ao final do processo. Perca, se este for o preço do respeito pelo outro e da paz.
Os discípulos aprenderam a tolerar. Deixaram os samaritanos ali, naquela hora. Mais tarde, os samaritanos seriam evangelizados pelo missionário Felipe, um dos sete líderes da igreja que nascia (8.5-13).