Salmo 104: POESIA: VIDA E ADORAÇÃO

POESIA: VIDA E ADORAÇÃO
(Salmo 104)
Pregado na Igreja Batista Itacuruçá, em 11.3.2001 (noite)

1. INTRODUÇÃO
A linguagem humana tem sido empobrecida pela ausência da poesia.
Num mundo marcado pelo imediatismo e pelos artefatos da tecnologia microeletrônica, há poucos espaços para a imagem poética, necessariamente profunda e às vezes aparentemente sem utilidade. No entanto, os poetas são mais importantes que os desenvolvidos pelos criadores de tecnologia, que nos fazem fruir a vida, mas não nos ajuda a entendê-la.
Podemos dizer que a poesia ficaria relegada a livros de tiragens ridículas, não fosse a música, que tem sua poesia própria (a melodia) e se encontra com a poesia propriamente dita através das letras usadas. As canções, no entanto, são poesia, mas um outro tipo de poesia.
No meio cristão, passamos pela mesma experiência. A poesia vem perdendo espaço, mantida por meio dos hinos, que também são um tipo de poesia. Nós somos um povo musical, como o de Israel o era, como nos lembra o profeta Amós: Vocês fazem músicas como fez o rei Davi e gostam de cantá-las com acompanhamento de harpas. (Amos 6.5)  

2. ENRIQUEÇAMO-NOS COM A IMAGINAÇÃO POÉTICA
Não podemos, diante deste quadro, nos esquecer que a Bíblia, o livro pelo qual pautamos as nossas vidas, é um livro de expressão poética. Se não entendermos esta sua característica, teremos dificuldade para ouvir Deus falando.
Tomemos alguns dos grandes salmos.
O salmo 1 não diz simples que a felicidade consiste em viver de forma reta diante de Deus, mas usa imagens para descrever os ímpios e para pintar os justos. Assim,

Bem-aventurado o homem que
não anda no conselho dos ímpios,
não se detém no caminho dos pecadores,
nem se assenta na roda dos escarnecedores.

Ele é como árvore plantada junto a corrente de águas,
que, no devido tempo, dá o seu fruto,
e cuja folhagem não murcha;
e tudo quanto ele faz será bem sucedido.
(Salmo 1.1,3)

A pessoa temente a Deus não é uma árvore, mas é como se fosse, diz-nos a poesia.

O salmo 19 retrata a glória do Senhor com imagens poéticas majestosas:

Os céus proclamam a glória de Deus,
e o firmamento anuncia as obras das suas mãos.
Um dia discursa a outro dia,
e uma noite revela conhecimento a outra noite.
Não há linguagem, nem há palavras,
e deles não se ouve nenhum som;
no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz,
e as suas palavras, até aos confins do mundo.
Aí pôs uma tenda para o sol,
o qual, como noivo que sai dos seus aposentos, se regozija como herói.
(Salmo 19.1-5)

Como o firmamento anuncia, se não tem boca? Como um dia discursa, se não tem língua? Como a natureza, que não tem som, faz ecoar a palavra de Deus? Como pôr uma tenda para o sol?

O salmo 23 é poesia pura, desde o princípio.

O Senhor é o meu pastor;
nada me faltará.
Ele me faz repousar em pastos verdejantes.
Leva-me para junto das águas de descanso;
refrigera-me a alma.
Guia-me pelas veredas da justiça por amor do seu nome.
Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte,
não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo;
o teu bordão e o teu cajado me consolam.
(Salmo 23.1-4)

O que é repousa em pastos verdejantes e ter um pastor, se não somos gado? O que é ser guiado pelas veredas da justiça? Como receber consolo de um bordão e de um cajado?

Estes poucos exemplos bastam para mostrar que não dá para entender alguns capítulos senão com a imaginação. Precisamos, portanto, de imaginação poética para fruir melhor a Bíblia. Se não, como admiremos também a existência de uma sarça que não se consome ou de uma estrela que percorre o firmamento para guiar os magos? Se não, como entenderemos a oração de Jesus pedindo pela passagem do cálice? Como entenderemos a descrição que o livro de apocalipse faz do céu? como uma

Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descia do céu.
Ela vinha de Deus, enfeitada e preparada,
vestida como uma noiva que vai se encontrar com o noivo, (…)
brilhando com a glória de Deus.
A cidade brilhava como uma pedra preciosa,
como uma pedra de jaspe, clara como cristal.

[Nela, não havia templo,]
pois o seu templo é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, e o Cordeiro.
A cidade não precisa de sol nem de lua para a iluminarem,
pois a glória de Deus brilha sobre ela,
e o Cordeiro é o seu candelabro.
(Apocalipse 21.2, 11, 23, 23)

Só podemos usufrir da riqueza do livro de Apocalipse por meio da imaginação poética, a mesma que Deus inspirou a autor bíblico.
Nem todos precisamos ser poetas, mas todos precisamos de um pouco de imaginação poética para penetrar na riqueza da Palavra de Deus.

3. VALORIZEMOS A EXPRESSÃO POÉTICA
A poesia é uma das formas mais apropriadas para se falar da vida. Os livros de Jó, Eclesiastes e Cântico dos Cânticos são uma demonstração viva desta realidade.
Há na Bíblia expressões poéticas acerca do sofrimento, como esta:

A minha harpa se me tornou em prantos de luto,
e a minha flauta, em voz dos que choram.
(Jó 30:31)

Há, na Bíblia, inclusive expressões poética de exaltação ao amor erótico, entre um homem e uma mulher, como em Cântico dos Cânticos, uma das quais sendo a seguinte:

O inverno já foi, a chuva passou, e as flores aparecem nos campos.
É tempo de cantar; ouve-se nos campos o canto das rolinhas.
Os figos estão começando a amadurecer,
e já se pode sentir o perfume das parreiras em flor.
Venha então, meu amor. Venha comigo, minha querida.
(Cântico dos Cânticos  2.11-13:)

A poesia é uma das formas mais adequadas para se falar de Deus e para se exaltar a sua excelsitude para conosco. O que é o seu nome “Emanuel” se não uma expressão poética? Como um Deus pode se apresentar como “Eu sou o que sou”, se não pela imaginação poética. Os salmos, uns musicados (e é pena que tenhamos perdido as suas melodias), outros não, são essencialmente cânticos de louvor, isto é, exaltação, a Deus. Nós os apreciamos porque falam de nós mesmos, nossas dores e dúvidas, mas também porque falam de Deus, de sua glória, isto é, de sua beleza, e de sua graça, de seu amor para conosco.
Um dos pontos altos da expressão poética do Antigo Testamento é o salmo 104, todo escrito em forma de imagens poéticas.

Bendize, oh minha alma, ao Senhor!
Senhor, Deus meu, como tu és magnificente:
sobrevestido de glória e majestade,
coberto de luz como de um manto.
Tu estendes o céu como uma cortina,
pões nas águas o vigamento da tua morada,
tomas as nuvens por teu carro e voas nas asas do vento.
Tomaste o abismo por vestuário e a cobriste;
as águas ficaram acima das montanhas;
à tua repreensão, fugiram,
à voz do teu trovão, bateram em retirada.
Elevaram-se os montes,
desceram os vales, até ao lugar que lhes havias preparado.
Que variedade, Senhor, nas tuas obras!
Todas com sabedoria as fizeste;
cheia está a terra das tuas riquezas.
Todos esperam de ti que lhes dês de comer a seu tempo.
Se lhes dás, eles o recolhem;
se abres a mão, eles se fartam de bens.
Se ocultas o rosto, eles se perturbam;
se lhes cortas a respiração, morrem e voltam ao seu pó.
Envias o teu Espírito, eles são criados,
e, assim, renovas a face da terra.
A glória do Senhor seja para sempre!
Exulte o Senhor por suas obras!
Cantarei ao Senhor enquanto eu viver;
cantarei louvores ao meu Deus durante a minha vida.
Seja-lhe agradável a minha meditação;
eu me alegrarei no Senhor.
(Salmo 104.1-3,6-8,24,27-31,33,34)

Os poemas de exaltação a Deus nos levam à Sua presença, para contemplar a Sua glória:

Oh profundidade da riqueza,
tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus!
Quão insondáveis são os seus juízos,
e quão inescrutáveis, os seus caminhos!
Quem, pois, conheceu a mente do Senhor?
Ou quem foi o seu conselheiro?
Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído?
Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas.
A ele, pois, a glória eternamente.
Amém!
(Romanos 11.33-36)

Não há, portanto, uma dicotomia entre poesia e fé. A fé diz “eu creio em Ti, Senhor “; a poesia crente anota: “meu coração se lança sobre as tuas costas, Senhor”.
A fé afirma: “guarda-me, Senhor”; a poesia bíblica escreve: esconde-me à sombra das tuas asas (Salmo 17.8).
A fé exalta: Como é preciosa, oh Deus, a tua benignidade! a poesia aprofunda: Por isso, os filhos dos homens se acolhem à sombra das tuas asas. (Salmo 36.7)
A fé pede: Tem misericórdia de mim, oh Deus, tem misericórdia; a poesia consagrada enriquece: pois em ti a minha alma se refugia; à sombra das tuas asas me abrigo, até que passem as calamidades. (Salmo 57.1)
Para que usufruamos da poesia enquanto expressão de nossos sentimentos e desejos mais profundamos precisamos valorizar a expressão artísticas, precisamos nos educar para a poesia, precisamos nos expressar por meio da poesia.

1. Precisamos valorizar a expressão poética.
Cada um de nós deve buscar formas artísticas para expressar nossos sentimentos (de tristeza e de alegria), nossos desejos e nosso louvor.
A Bíblia reconhece o valor da expressão artística, e um dos exemplos está no livro de Samuel. E sucedia que, quando o espírito maligno, da parte de Deus, vinha sobre Saul, Davi tomava a harpa e a dedilhava; então, Saul sentia alívio e se achava melhor, e o espírito maligno se retirava dele. (1 Samuel 16:23)
Você está triste, ouça uma canção que anime o seu coração. Você está agitado, entre numa galeria de arte ou numa exposição para ver as obras dos outros.
Você está com a auto-estima lá embaixo? leia o poema 8 do livro dos salmos. Você está excessivamente autoconfiante? leia o poema de Paulo aos filipenses (capítulo 2).

2. Precisamos nos educar para a poesia.
Para fruir a poesia, temos que nos educar para a poesia. Precisamos entender que a poesia é uma outra maneira de dizer as coisas. Precisamos reconhecer que ler poesia nos torna menos duros, menos amargos, menos pesados; mais sensíveis, mais agradáveis e mais leves.
Educando-nos para a poesia, leremos melhor e escreveremos melhor; mais que isso, entenderemos melhor a Palavra de Deus a nós.
Para tanto, leiamos a poesia bíblica, leiamos a poesia secular (principalmente brasileira), leiamos a poesia evangélica (embora escassa).

3. Precisamos nos expressar por meio da poesia.
Só ela nos permite dizer o que não cabe na boca nem no discurso narrativo.
A poesia é bonita de mais para ficar só com os poetas. A poesia é profunda demais para ficar só com os poetas não cristãos.
Precisamos escrever poeticamente. A poesia cristã precisa estar nos livros, nas praças e nos teatros. Precisamos de poesia cristã de qualidade, mesmo que perca parte de seu didatismo ou homiletismo.
Aos poetas jovens, de qualquer idade, leiam muita poesia e escrevam. Escrevam muito, reescrevam muito. Sejam humildes e ousados, ao mesmo tempo. Sejam os melhores poetas. Orem a Deus em busca de inspiração. Vejam o que os outros fazem e façam melhor.

4. CONCLUSÃO
O mundo precisa de poesia. Vamos dar poesia ao mundo. A poesia também se ressente da corrupção do gênero humano. Nós podemos falar da redenção, também sob a forma poética.
Foi o que o apóstolo Paulo fez no grande teatro ao livre de Atenas. Depois de ver as expressões poéticas do povo, espalhadas pelas ruas e pelos templos, ele assim se expressou:

Esse que adorais sem conhecer
é precisamente aquele que eu vos anuncio.
O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe;
sendo ele Senhor do céu e da terra,
não habita em santuários feitos por mãos humanas.
Nem é servido por mãos humanas,
como se de alguma coisa precisasse;
pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo mais;
de um só fez toda a raça humana
para habitar sobre toda a face da terra,
havendo fixado os tempos previamente estabelecidos
e os limites da sua habitação;
para buscarem a Deus se, porventura, tateando, o possam achar,
bem que não está longe de cada um de nós;
pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos,
como alguns dos vossos poetas têm dito:
“Porque dele também somos geração”.
Sendo, pois, geração de Deus,
não devemos pensar que a divindade
é semelhante ao ouro, à prata ou à pedra,
trabalhados pela arte e imaginação do homem.
(Atos 17.24-29)

O cristianismo precisa de poesia. Paulo, para nos ensinar o sentido da vida, sentido da vida que muitos cristãos temos perdido, nos abençoa com as seguintes palavras, carregadas de poesia:

Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado
com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo,
[Ele] assim como nos escolheu nele antes da fundação do mundo,
 para sermos santos e irrepreensíveis perante ele;
e em amor nos predestinou para ele,
para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo,
segundo o beneplácito de sua vontade,
para louvor da glória de sua graça,
que ele nos concedeu gratuitamente no Amado,
no qual temos a redenção, pelo seu sangue,
a remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça,
que Deus derramou abundantemente sobre nós
em toda a sabedoria e prudência,
desvendando-nos o mistério da sua vontade,
segundo o seu beneplácito que propusera em Cristo,
de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos,
todas as coisas, tanto as do céu, como as da terra;
[pois em Jesus] fomos também feitos herança,
predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas
conforme o conselho da sua vontade,
a fim de sermos para louvor da sua glória,
nós, os que de antemão esperamos em Cristo;
em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade,
o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido,
fostes selados com o Santo Espírito da promessa;
o qual é o penhor da nossa herança,
ao resgate da sua propriedade,
em louvor da sua glória.
[Ele] pôs todas as coisas debaixo dos pés,
e para ser o cabeça sobre todas as coisas, o deu à igreja,
a qual é o seu corpo,
a plenitude daquele que a tudo enche em todas as coisas.
Efésios 1.1-14, 22-23)