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[Síntese da conversão e chamada]
Como qualquer um que sua Palavra
abre, para nela atento escutar
o que a Revelação divina lavra,
quero em nome do eterno Deus falar.
Com a mesma fé que só o Senhor grava
naquela alma que humilde o vem buscar
e uma luta pela resposta trava,
quero ao Senhor, que a todos ouve, orar.
Como universal fruto de quem crê,
quero ao sem-Deus Sua paz proclamar
e com ela ao acomodado afligir.
Como banal tarefa de quem vê,
quero ao aflito Seu amor levar
e por ele o incomodado acudir.
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CONFISSÃO DE IGNORÂNCIA
Penso que o hino que nenhum cristão pode esquecer é aquele que diz:
Não sei por que de Deus o amor a mim se revelou,
porque razão o Salvador na cruz me resgatou.
(…)
Ignoro como o Espírito me convenceu do mal,
mostrou-me Cristo, o Salvador, o Verbo divinal.
Como eu não sei isto, o que mais eu souber terá que se subordinar a esta ignorância fundamental, ignorância que nos leva à fé essencial:
Mas eu sei em que tenho crido e estou seguro que é poderoso para guardar bem o meu tesouro até o dia final.
(Daniel Webster Wittle, CC 377, HCC 447)
A vida é um itinerário em cujo percurso estou ainda nos primeiros metros.
Deus é um tesouro em que só consigo tocar as alças.
A Bíblia é um mistério em que só alcanço desvendar a superfície.
Esta ignorância, positiva e não apenas metafórica, reduz meu índice de auto-engano. Como é bom saber que eu não sei praticamente nada da vida, de Deus e da Sua palavra.
Por isto, como Jó posso estar seguro que meu Redentor vive. Os que me cercam podem me questionar em busca de respostas que não tem e que eu não tenho, mas todos podemos celebrar nossa própria ignorância e nossa crença nAquele que tudo sabe porque tudo sabe (Jó 19.25)
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UM PRESSUPOSTO
Não sei porque Deus nos fez livres, mas sei que no uso desta liberdade, precisamos reconectar doutrina e vida, que não podem se excluir mutuamente. A doutrina é fonte de vitalidade individual e comunitária. Ela, sem vida (isto é, sem o coração abrasado, na expressão de Wesley) é vaidade.
(Como escrevi em outro lugar) A falta de uma teologia tem resultados desastrosos na vida da igreja, como, para exemplos, a falta de identidade (leia-se: unidade) denominacional; carência de compreensão dos meios e estratégias de ações; desconhecimento do campo em que se atua; indigência no conteúdo da pregação e da educação.
Essa teologia (ou doutrina) precisa entender que seu conhecimento não abarca as ciências, com quem deve aprender e a quem deve ensinar (se, para tal, estiver preparada). A boa teologia, portanto, é humilde, por saber que está sempre em construção e por compreender que as experiências religiosas não são universalizáveis.
Toda doutrina deve derivar da Bíblia Sagrada, para ser legítima. No entanto, se é fato que ela é e contém a verdade, que é imutável, também o é que sua interpretação acerca desta verdade não é imutável.
A fé cristã deve aceitar, e mesmo se rejubilar com elas, diante das descobertas das ciências, que jamais são uma ameaça à verdade. Fé e ciência são, como ensina Allan Richardson (“Apologética Cristã”), dois trilhos de uma linha de trem. Como as retas paralelas, jamais se encontram. Se se aproximarem ou se afastarem, além dos limites, o trem descarrila.
O Espírito que habita no crente não apenas o regenera, mas também o move em direção à maturidade. Há (ou pelo menos deveria haver) uma clara conexão entre o longo processo de santificação e a árdua tarefa do desenvolvimento teológico. Quando Espírito habita em nós com toda a plenitude, ele nos conduz a uma clara compreensão da teologia, a qual nos habilita a confrontar o espírito de nossa época.
O dilema entre doutrina vida ou razão e emoção é, portanto, falso. A afirmação da sua existência não interessa ao cristianismo. O desequilíbrio entre conhecimento e graça, entre intelecto e sentimento, é uma tendência que os que têm fé no Senhor da emoção e da razão devem rejeitar.
A verdadeira teologia é a teologia cativa de Cristo, no qual está a verdade. Por isto, é necessário reafirmar a singularidade de Jesus, lembrando que, se tudo é verdade, então nada é verdade. Ou mais que isto: “Para mim a verdade é Cristo; se eu algum dia descobrir que Cristo não é a verdade, eu deixo a verdade e ficou com Cristo” (Dostoiewski, citado ad tempora)
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A BÍBLIA
Não sei como Deus ajuntou tantos cacos, feitos de tradições diferentes, em épocas diferentes e por autores diferentes, para formar um livro tão divino e tão humano, tão profundo e tão concreto, tão clássico e tão contemporâneo, tão multiforme e tão coeso, tão penetrante e tão verdadeiro, enfim, tão único como a Bíblia.
Sei, no entanto, que a Bíblia é o fundamento de toda verdadeira sabedoria, tanto científica quanto existencial, Bíblia que é o princípio de toda disciplina e de todo despertamento, Bíblia que é a fonte para o conhecimento da soberania e da economia de Deus.
Sei que preciso lê-la para entender e viver: lê-la a meu favor, para me confortar, e contra mim, para me ensinar.
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A PARCERIA
Não sei porque Deus não desiste de nós. Sei, contudo, que o modo da produção da Bíblia no passado e o modo da sua leitura no presente são a melhor indicação de como Deus age na história em geral e na história de cada um de nós em particular.
O Totalmente Outro dispensou-se da tarefa de construir sozinho a história e nos chamou para operar junto com Ele. O mundo só tem sentido (não foi o homem que deu nome às coisas? — Gn 2.20) porque o homem é parte dele.
Não há melhor palavra para definir este modus operandi do que “pacto”, pacto que é uma carência humana, que Deus supre e não visa o Seu bem estar, mas o nosso.
Na pré-história, Deus fez um pacto com um casal, que o quebrou, ao escolher outro senhor.
Na história vetero-testamentária, Deus fez um pacto com um povo, que o quebrou, por preferir a fluidez das paixões. Estes pactos fariam com que os homens pudessem ser parceiros de sua própria felicidade e da alegria da criação.
Na encarnação, o Afavelmente Outro fez um pacto, de cuja fidelidade a história não depende para se realizar. Ao celebrarmos com Ele este pacto, encontramos a felicidade.
Este novo pacto só foi possível porque Ele mesmo se deu, ao montar Seu tabernáculo entre nós e ao cancelar nosso débito, escarnecido e cravado na louca cruz.
Na verdade, Ele nos escolheu. Ao aceitamos Sua escolha, predestinamo-nos para a proximidade com Ele. Os que o recusam predestinam-se para a distância. Ao aceitarmos Sua escolha, damos adeus à nossa disponibilidade e entramos na suavidade do seu jugo.
A história é, portanto, o resultado de uma relação entre o Absoluto divino e o relativo humano. De um lado, ela será um Triunfo, quando pender para o divino, e um fracasso, quando depender do humano. Há, no entanto, a garantia que, no final, quando se esgotar o nosso tempo, o Reino se consumará com a nossa parceria ou sem ela. É melhor ser parte dela. Afinal, a vida só tem sentido na missão.
Como aprendemos na oração que Jesus ensinou, a oração é o espaço por excelência da atualização do pacto, porque feito de adoração, desejo, confissão e submissão. Na oração, o Absoluto e o relativo entram em relação, que a bênção maior que um cristão pode almejar.
Fiel é o Pai de toda paz, que proclama
seu desejo de nos ver em integridade,
livres do medo e assim longe da ansiedade,
porque firmados em sua fidelidade.
Fiel é o Cristo da paz, que a cada um ama
pra manter inabalado na sua Vinda
na comunhão do seu Reino incompleto ainda
aqui, no presente, e quando a vida for finda.
Fiel é o Espírito da paz, que nos chama,
para a santificação total nos pro-voca,
para a mútua fidelidade nos convoca.
Fiel é o Deus da plena paz, que derrama
sobre nós sua presença consoladora
na certeza de sua graça abençoadora.
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O REINO DE DEUS
Não sei quando Jesus Cristo voltará para consumar o Reino. Todavia, sei que nossa proclamação deve começar como Jesus começou a sua: é chegado o Reino de Deus (Mc 1.15).
O Reino de Deus nos impõe dois paradoxos:
1. O paradoxo cullmanniano do “já” e do “ainda não”. Toda a nossa teologia é uma teologia do ínterim. A ética pode ser radical, porque ética do compromisso com o Senhor do Reino e seus valores.
2. O paradoxo do “anúncio” e da “espera” da consumação do Reino. Toda a nossa ação é uma ação inútil, como a do servo da parábola. Os liberais, os revolucionários e os conservadores de todos os tempos concordam num ponto: eles acham que podem construir o Reino de Deus. Aqueles pensam, como John Wick Bowman, por exemplo, que pode elidir a parousia pela evolução proporcionada pela ciência e pela educação. Estes entendem que podem apressar a volta de Jesus pela proclamação do Evangelho. Ambos se arvoram em senhores da História, ignorantes que aquela hora só o Pai sabe, isto é, só o Pai determina.
Cabe-nos, portanto, esperar o Reino, proclamar o Reino, orar para que o Reino se consuma (Mt 6.10). Esta visão é incômoda e pode se aproximar dos opositores das missões modernas, para os quais Deus não precisaria da participação humana para a proclamação do Seu amor em terras distantes…
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A IGREJA
Não conheço toda a metodologia de Deus, mas sei que a igreja é um espaço por excelência da comunhão do homem, com Deus, com o próximo e consigo mesmo. Não há há outro espaço como a igreja, ela que é (como disse William Temple) a única organização sobre a face da terra cuja finalidade não é o bem-estar dos seus associados, mas dos seus não associados.
Da igreja posso parafrasear o que Churchill disse da democracia: “é uma porcaria, mas não inventaram coisa melhor”. Ou na linguagem bíblica, a Igreja é uma prostituta casta
Quanto mais o tempo passa, mais se evidencia que as portas do inferno não podem triunfar sobre ela. A promessa paradoxal de Jesus em Mateus (Mt 16.18) dá a dimensão divino-humana dela: a Igreja foi edificada e se edifica. Foi edificada sobre o fundamento cristológico total e é edificada por aqueles que confessam o senhorio de Jesus Cristo. Os que confessam a Jesus também confessam a César. Essa é a graça e a desgraça da Igreja.
O culto é um conjunto de momentos feitos para incomodar os acomodados e consolar os incomodados. O culto é a hora da elevação dos humildes e da humilhação dos soberbos.
A Igreja cumprirá sua missão se ouvir o Espírito e se ouvir o mundo, que é a fórmula stottiana para “o cristão é aquele que tem a Bíblia numa mão e um jornal na outra” (frase atribuída ora a Spurgeon ora a Moody, citado ad tempora)
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UMA QUESTÃO DIFÍCIL
Uma das questões mais difíceis da teologia, especialmente por sua relação com a vida, é a da Trindade, esse insondável mistério.
Tomando-a como emblemática, gosto de pensar nela assim:
. A bênção de Deus sobre nós é uma ação da trindade divina.
A Trindade divina é o resultado da união de três pessoas para o projeto de plenificar o ser humano. No entanto, se nada soubermos sobre este mistério (e nada sabemos mesmo!), basta-nos tão somente saber que podemos sentir os frutos da atuação desta Trindade.
Nossas necessidades podem ser pensadas como trinitárias também (três em uma). Precisamos de graça, amor e comunhão. No plano físico, nossas necessidades básicas são: segurança, alimento e casa. Essas necessidades correspondem no plano espiritual à salvação, ao cuidado e à comunidade. A salvação é pela graça de Jesus; o cuidado vem do amor de Deus; a comunidade vem da comunhão do Espírito Santo.
Além de graça, amor e paz, de que mais precisa uma pessoa?
. A bênção da paz é um dom do Pai para conosco.
Deus nos deu seu próprio (e único!) Filho para nos reconciliar com Ele e uns com os outros (Jo 3.16; 1Jo 4.7-19). A iniciativa de nos amar é de Deus. Esta é uma das características essenciais do ser divino. Nós, no máximo retribuímos; nunca tomamos a iniciativa do amor puro, aquele que não busca a recompensa.
O amor, para com Ele e para com os outros, é a porta de acesso a Ele (I Jo 4.8: 8 — Aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor.)
Deus expressa seu amor para conosco (segundo Charles Stanley),
. criando-nos
. dando-nos liberdade para escolher (até mesmo contra Ele mesmo)
. colocando-nos em família
. enviando-nos o Espírito Santo para habitar conosco
. provendo condições para nosso bem e sua glória
. chamando-nos para amá-lo.
. A bênção da comunhão é um dom do Espírito para nós
O Espírito Santo partilha sua divindade conosco.
Nós formamos a igreja do Espírito, que é diferente da igreja da carne. A igreja do Espírito não tem nada a ver com a igreja do eu, mas tudo a ver com a igreja do nós.
A igreja do Espírito é aquela que não o apaga, com a falta de comunhão, com o desvio da “panela”, que é natural, mas não espiritual. Só o Espírito Santo nos pode fazer a igreja-comunidade, contra a igreja das individualidades
O Espírito habita em nós; Ele se faz comunhão conosco. Sua comunhão nos santifica. A comunhão dEle com o Pai nos permite ter comunhão com o Pai também, já que ele interpreta diante do Pai as nossas petições. O Espírito Santo participa de nossas vidas.
DOXOLOGIA 2
(2Ts 2.16-17)
Que o Pai, que desde a eternidade nos olhou
com o afeto de quem queria nos salvar,
venha sua terna vocação confirmar
para conosco, filhos queridos, que amou,
Que o Filho, que nos braços da cruz nos chamou
para aquela glória que bem vale alcançar
e nos convida a seu leve jugo aceitar
porque toda a nossa culpa Ele já anulou,
Que o Espírito, que está pronto a transformar
hoje em sorriso aquilo que ontem era choro,
para cumprir seu ministério de consolo,
possam, de modo firme e longo, ministrar
a esperança boa que seja clara voz
a verter a Graça sobre cada um de nós.
Israel Belo de Azevedo