Mateus 10.8a: A GENEROSIDADE COMO SABEDORIA

DITOS DE SABEDORIA DE JESUS, 2
Mt 10.8a: A generosidade como sabedoria

“Vocês receberam de graça; dêem também de graça” (Mt 10.8a)..
Jesus está falando de generosidade, para nos ensinar que o melhor da vida não pode ser comprado porque não é vendido. A mensagem de Jesus é sempre sábia.

Aí pelo início de novembro, somos lembrados que o natal está chegando. O comércio assesta contra nós suas armas de venda. Começo por ler alguns trechos de uma reportagem típica dessa época, cujo titulo, bastante sugestivo, é “Vamos vender”:

“Vocês estão na loja para que?”, pergunta o sujeito à platéia, que grita: “Vender”. “Quando?”, continua. “Sempre”, berra a platéia, formada por vendedores de shoppings. (…)
É nesse clima de programa de auditório que se desenvolve a palestra motivacional “Show de Natal”, voltada a vendedores do varejo. (…) O consultor (…) diz que vendedores precisam ser artistas e que a venda é um show (…).Em tom emocionado, o publicitário (…) declara à platéia de vendedores: “Você ganha a vida ajudando as pessoas a serem felizes. Quem pretendia comprar um presente acaba levando outros porque você fez com que essa pessoa lembrasse que é Natal”. (Cf. Folha de S. Paulo, 1/12/2007, cad Vitrine.)
Essa sessão de treinamento revela um pouco do espírito de nosso tempo, presente em todas as épocas certamente, com variações.
Comparemos este curso com o que Jesus ofereceu aos seus primeiros apóstolos:

“Por onde forem, preguem esta mensagem: O Reino dos céus está próximo. Curem os enfermos, ressuscitem os mortos, purifiquem os leprosos, expulsem os demônios. Vocês receberam de graça; dêem também de graça. Não levem nem ouro, nem prata, nem cobre em seus cintos; não levem nenhum saco de viagem, nem túnica extra, nem sandálias, nem bordão; pois o trabalhador é digno do seu sustento” (Mateus 10.7-10a).

Os pregadores enviados por Jesus (e isto se aplica a qualquer seguidor-enviado de/por Jesus) deviam viver os valores do Reino que pregavam, travando internamente uma luta contra os valores dos reinos por onde circulavam.
Ao longo de suas vidas, alguns certamente seriam procurados e elogiados, conhecendo a fama. Não deviam tirar proveito disto (seja em forma de dinheiro ou poder) porque tinham recebido graciosamente o poder de Deus em suas vidas para abençoar outras vidas..
Quando circulassem pelas cidades, conheceriam o sistema, em que o que conta é o dinheiro, mas deveriam se contentar apenas com seus salários e nada mais cobiçarem. Não deveriam confiar na auto-suficiência que seus recursos traziam, mas tão somente viver na dependência de Deus.
Focados na sua missão, podiam se esquecer que, antes da salvação recebida, estavam espiritualmente mortos. A vida viva que agora tinham lhes foi dada como presente. Ah se também nos lembrássemos que fomos salvos pela graça e que nada fizemos para merecê-la! Olharíamos as pessoas em geral com mais humildade… Contemplaríamos com compaixão aqueles que andam desgarrados pelo mundo…
Antes do ensino recebido dos lábios de Jesus, nada sabiam. O que agora sabiam foi recebido de graça, não tendo que pagar pela educação recebida.
No mundo sem os valores de Deus, nada é de graça. No Reino de Deus, tudo é de graça.
Jesus, então, diz: não vivam os valores dos sem-Deus, mas vivam os valores do Reino da graça de Deus. Quem vive no Reino da graça consome, mas não acha que consumir é ser feliz; consumir é apenas consumir; não vale mais que isto.
No mundo sem os valores de Deus, o mais importante é cada um acumular o quanto puder, tirar dos outros tudo o que puder, proteger-se dos outros o mais que puder, evitar todos os contatos humanos que puder.
Jesus mostra a seus seguidores (daquele tempo e do nosso) que não devem ter como metas de suas vidas acumular por acumular, porque quem age assim é louco ao ponto de trocar sua alma por coisas acumuladas que a traça consome.
Jesus mostra a seus seguidores (daquele tempo e do nosso) que não devem usar os outros para beneficio próprio, seja sua companhia (usada e descartada), seja seu dinheiro ou seu poder (que traz uma boa sombra).
Jesus mostra a seus seguidores (daquele tempo e do nosso) que não devem se distanciar das pessoas, não devem se tornar indiferentes às pessoas, não devem ficar desinteressados das pessoas, não devem achar que sua posição era mais importante que as pessoas. Se passam a agir assim, são iguais às pessoas a quem são enviadas para anunciar o Reino de Deus. Até hoje a maior tragédia dos que crêem em Deus é viver igualzinho aos que não crêem em Deus.

“Vocês receberam de graça; dêem também de graça” (Mt 10.8a)..
Jesus está falando de generosidade, para nos ensinar que o melhor da vida não pode ser comprado porque não é vendido.
Mais que advertir contra o espírito da época, Jesua adverte contra a permanente natureza humana.
A generosidade não é natural. Li uma entrevista do economista político José Luís Fiori, da UFRJ, em que ele analisa a condição do mundo contemporâneo (mas poderia ser de qualquer época) nos seguintes termos: o sistema mundial “se parece com um universo em expansão contínua, movido pela luta das grandes potências pelo poder global e que por isso estão sempre criando, ao mesmo tempo, ordem e desordem, paz e guerra. O que ordena e estabiliza esse sistema, por mais doloroso que seja reconhecê-lo (…) [é] a existência de `eixos conflitivos crônicos’ e a possibilidade permanente de guerra. O sistema não acumula poder e riqueza sem a competição das nações e não se estabiliza sem as guerras” (Cf. Folha de S.Paulo, 1.12.2007, p. E-10).
Na contramão de Jesus, a economia das nações precisa do conflito, vale dizer, da negação do outro, como forma de afirmação.
Na contramão de Jesus, a ordem mundial precisa das guerras para se estabilizar. Esta é a paz do mundo, feita de guerras, medos e perturbações. Não é assim a paz de Jesus, que disse: “Deixo-lhes a paz; a minha paz lhes dou. Não a dou como o mundo a dá. Não se perturbe o seu coração, nem tenham medo” (João 14.27).
Deixemos as nações e falemos de nossos corações.
Como acontecem com nações e empresas, é de nossa natureza a expansão, seja do nosso conhecimento, seja do nosso dinheiro. O que fazemos do nosso conhecimento? Dominamos os outros ou ousamos para que eles também cresçam? O que fazemos do nosso dinheiro? Nós o usamos para ganhar ainda mais dinheiro e o tornamos uma fonte de prazer ou o empregamos para financiar o anúncio do Reino de Deus? Nosso conhecimento e nosso dinheiro podem ser usados como o empregam os que não crêem em Deus, mas é uma tragédia quem crê viver igualzinho a quem não crê.
Como acontecem com nações e empresas, é de nossa natureza a ostentação. E nada mais antigenerosidade do que a ostentação. Muitos têm e não gostam de mostrar, mas muitos têm e gostam de mostrar. Essas pessoas olham para o que têm e sentem prazer por terem. Ostentar é um valor tão forte neste mundo que se tornou um estilo de vida. Um artista do carnaval carioca chegou a afirmar que até os pobres gostam de luxo. Ostentação produz imitação. Tem gente que imita jóias, roupas e casas de personagens de novelas. Vendedoras mencionam que tal roupa ou estilo é a da novela como argumento de venda… E as pessoas compram.
Há igrejas que constroem seus templos com luxo para que seus freqüentadores vejam a riqueza da igreja e se sintam bem. Cheguei a ouvir de líderes de uma determinada denominação que ostentavam roupas e jóias porque os membros de sua igreja se sentiam bem com isto; eles gostam de nos ver ricos, sinalizando que podem ser ricos também.

Como acontece com nações e empresas, é de nossa natureza tratar o outro como inimigo, como se não fôssemos todos irmãos, mas lobos de lobos. E vem Jesus e diz que devemos nos tratar como irmãos e que devemos compartilhar uns com os outros aquilo que temos. Será que Jesus não conhece a natureza humana? Será que ele não sabe que é de nossa natureza receber, não oferecer? No Natal, chegamos a reclamar que não recebemos nenhum cartão. Mas quantos mandamos? E se mandamos para receber, teremos sido generosos?

“Vocês receberam de graça; dêem também de graça” (Mt 10.8a)..
Jesus está falando de generosidade, para nos ensinar que o melhor da vida não pode ser comprado porque não é vendido. No natal tudo se compra, porque tudo se vende, mas o Natal de Jesus Cristo é de graça.
Jesus conhece a natureza humana, tal como ela é, mas quer produzir uma  natureza humana tal como dever ser. À natureza Jesus opõe o espírito.
O verdadeiro “espírito natalino” não é feito com decoração, por bonita que seja; é feito com corações que, tendo recebido a graça, dão de graça.
No natal ficamos mais dispostos à generosidade, mas deve ser algo permanente esta disposição.
Generosidade é não e é sim.

Generosidade é não.
Generosidade é frear a natureza humana e parar de julgar o outro, deixando a tarefa para o perfeito Juiz.
Generosidade é frear a natureza e não esperar receber para então dar. Quem retribui é menos generoso do quem toma a iniciativa.
Generosidade é frear a natureza e não distribuir apenas o que sobra ou o que está estragado ou o que deveria ir para o lixo e não para o bazar de doações.
Generosidade é frear a natureza e não buscar apenas os amigos e irmãos para compartilhar aquilo que recebeu de Deus.
Generosidade é frear a natureza e não fazer da acumulação, da retenção e da ostentação um jeito de ser.
Generosidade é frear a natureza e não abusar da bondade dos amigos e irmãos, o que desestimula a gestação de gestos de bondade.
Generosidade é frear e natureza e evitar palavras que ferem. Por que as brincadeiras têm que ser depreciativas? Por que as caricaturas têm que destacar o tamanho do nariz ou da barriga de uma pessoa?

Generosidade é sim.
Generosidade é olhar o outro como o outro gostaria de ser olhado.
Generosidade é deixar de olhar apenas para si é olhar para os lados e para cima.
Generosidade é tomar a iniciativa de fazer o bem, de começar uma conversa, de oferecer um braço amigo.
Generosidade é dividir o que tem, mesmo que vá lhe faltar.
Generosidade é retribuir, mas também oferecer sem esperar retribuição.
Generosidade é inspecionar o que vai doar para ver se vai fazer mesmo bem.
Generosidade é mandar levar e não pedir para buscar.
Generosidade é procurar palavras que levantem o desanimado, alegrem o triste e fortalecem o enfraquecido.
Generosidade é telefonar para dizer “bom dia” ou para oferecer os préstimos.
Generosidade é ceder a vez, mesmo que tenha chegado primeiro.
Generosidade é estudar com o colega a matéria que já sabe.
Generosidade é telefonar para casa para saber se está faltando alguma coisa.
(A propósito, tenho uma pergunta: Será que generosidade é algo feminino? Uma colega de trabalho me disse recentemente assim, referindo-se ao seu ex-namorado: ele não era capaz de perguntar de eu estava precisando de alguma coisa; ele era como todos os homens. Eu fiquei chocado: será que eu também sou assim? Homens, sejamos generosos.)
Generosidade é pôr a mesa quando o outro não está esperando.
Generosidade é arrumar a cama de manhã, para que o outro não se atrase.
Generosidade é preparar o café, de surpresa.
Generosidade é levar o cachorro para passear, mesmo que não seja sua obrigação.
Generosidade é pôr no carrinho de comprar aquilo que o outro gosta.

Generoso é quem faz além do que se espera dele, ele inclusive.
Generoso é quem não depende da reciprocidade. Sua bondade é unilateral.
Generoso é quem não é dono da verdade. Sua humildade é natural.
Generoso é quem não tem a última palavra, tendo sempre razão. Ele não  tem dificuldade em reconhecer que está errado.
Generoso é quem não tem a cara amarrada, pronta para a briga, mesmo aquela que jamais acontecerá. O generoso não briga.
Generoso é quem, embora tendo todas as razões, não é amargo.
Generoso é quem trata a todos como irmãos, mesmo que desconhecidos.
Generoso é quem não ostenta.
Generoso é quem alimenta o gosto do outro.
Generoso é quem sabe que o melhor da vida não se compra; recebe-se. E só se  recebe quando alguém dá.
Generoso é quem sabe que tem o que tem porque recebeu de graça.

***
Generosidade não é gesto especificamente cristão, mas o cristianismo é sobretudo generosidade. Não há cristianismo sem generosidade. O Natal é Deus se doando. A cruz é Deus se doando. Por desconhecidos.
O Natal, completado na cruz, pode ser sintetizado numa história de doação, com Jesus nos dizendo: “Já não os chamo servos, porque o servo não sabe o que o seu senhor faz. Em vez disso, eu os tenho chamado amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai eu lhes tornei conhecido. Vocês não me escolheram, mas eu os escolhi para irem e darem fruto, fruto que permaneça, a fim de que o Pai lhes conceda o que pedirem em meu nome” (João 15.15-16)..
Recebemos Jesus, no Natal, de graça. Vamos levá-lo a outros?
ISRAEL BELO DE AZEVEDO