Conto da noite

No meu turno de vigia, cantávamos um salmo antigo. “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos”. Não era o caso. Tínhamos que vigiar. Para atenuar a força do frio, acendíamos um fogo e conversamos em volta. Por aquela imensa campina, eram várias rodas de fogo.
Nem por isto eu não estava com sono. Estava com muito sono. Uma escala de 24 horas é muita pesada, ainda mais quando se tem uma criança doente em casa. Era uma segunda noite sem dormir. Eu olhava para o rebanho, mas meu pensamento estava longe, na minha Rute, lá em casa. Será que ela estava melhor? Tossia menos agora? Ainda tinha que esperar a manhã para saber.
Nem por isto eu não estava com sono.
Até que vi o que vi. Aí o sono se foi, de vez.
Um clarão se fez no meio daquela noite longa. Não vinha das fogueiras dos pastores no pasto. Não vinha de baixo. Vinha de cima.
Não tive medo, embora os relâmpagos me incomodem.
O clarão não era forte, mas tinha música. Não ouvi salmos de ritmos mornos. Ouvi uma saudação colorosa. Devíamos ir a Belém, seis quilômetros além, para ver o Salvador do mundo envolvido em trapos. Soou estranho, mas meus colegas disseram que eram anjos cantando. Só ouvi a música. Não vi ninguém.
— Vamos já até Belém — gritou um dos nossos.
Reorganizamos os grupos de vigia e fomos. O coração na boca. O ar faltava.
Chegamos. Cortamos o quintal. Lá no fundo estavam um casal e um bebê deitado numa manjedoura. Fizemos barulho, mas o nenê não acordou.
Eu guardei aquilo tudo no meu coração.
Até hoje, quando daqui de Jerusalém, olho para fora da cidade e vejo no Gólgota três cruzes fincadas, guardo no meu coração aquela experiência.
Estou cansado, mas não ao ponto de não saber que um dos três da cruz é o Messias. Aquele que por pouco não vi nascer em Belém.

ISRAEL BELO DE AZEVEDO