Leiamos o Salmo 42
(1) Como a corça anseia por águas correntes, a minha alma anseia por ti, oh Deus. (2) A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo. Quando poderei entrar para apresentar-me a Deus?
O cervo é um mamífero ruminante, de cor amarronzada. Ele tem vários chifres, patas de quatro dedos, pernas longas e cauda curta. Ele anseia por águas correntes e profundas tanto para bebê-las e saciar sua sede quanto para escapar dos cães que o perseguem.
O poeta estava distante de Jerusalém e queria voltar para lá e cultuar a Deus.
(3) Minhas lágrimas têm sido o meu alimento de dia e de noite, pois me perguntam o tempo todo: “Onde está o seu Deus?” (4) Quando me lembro destas coisas, choro angustiado, pois eu costumava ir com a multidão, conduzindo a procissão à casa de Deus, com cantos de alegria e de ação de graças entre a multidão que festejava.
O poeta, de tão triste, só sabia chorar. Já não se alimentava mais. Seu pão eram suas lágrimas. Seus amigos não sabiam mais o que fazer.
(5) Por que você está assim tão triste, oh minha alma? Por que está assim tão perturbada dentro de mim? Ponha a sua esperança em Deus! Pois ainda o louvarei; ele é o meu Salvador e (6) o meu Deus. A minha alma está profundamente triste; por isso de ti me lembro desde a terra do Jordão, das alturas do Hermom, desde o monte Mizar. (7) Abismo chama abismo ao rugir das tuas cachoeiras; todas as tuas ondas e vagalhões se abateram sobre mim.
O poeta continua reclamando de estar distante do lugar onde poderia cultuar coletivamente a Deus. Estava na floresta montanhosa do Hermon, num dos seus picos (o Mizar, ainda não identificado). Dali, onde nascia o rio Jordao, ouvia o som das cachoeiras. Sua vida estava sufocada por aquele barulho, antes tão agradável, agora tão aterrorizador.
(8) Conceda-me o Senhor o seu fiel amor de dia; de noite esteja comigo a sua canção. É a minha oração ao Deus que me dá vida.
O poeta queria voltara cantar.
(9) Direi a Deus, minha Rocha: Por que te esqueceste de mim? Por que devo sair vagueando e pranteando, oprimido pelo inimigo?
(10) Até os meus ossos sofrem agonia mortal quando os meus adversários zombam de mim, perguntando-me o tempo todo: “Onde está o seu Deus?”
Só havia uma explicação para aquela condição: Deus o abandonara.
(11) Por que você está assim tão triste, oh minha alma? Por que está assim tão perturbada dentro de mim? Ponha a sua esperança em Deus! Pois ainda o louvarei; ele é o meu Salvador e o meu Deus.
O poeta repete para si mesmo sua confissão de esperança (que aparece também no salmo seguinte, salmo 43).
A tristeza é uma condição humana antiga. Os salmos estão cheios de lamentos tristes. Num deles o poeta chora: “Eu, porém, estou aflito e triste; a tua salvação, oh Deus, me ponha num alto retiro” (Salmo 69.29). No outro o lamento tem o mesmo tom: “A minha alma se consome de tristeza; fortalece-me conforme a tua promessa” (Salmo 119.28). Jesus mesmo experimentou muitos momentos de tristeza em sua jornada conosco.
Cada época lida com ela ao seu modo. Na nossa, em que é repelida como uma desgraça, os remédios são receitados e usados como se fossem capazes de produzir alegria. Conheci um homem muito triste, mas raramente o via triste, porque, tão logo acordava, punha um copo de uísque ao seu alcance e dele tomava ao longo do dia e se tornava alegre.
Nossa vida é feita de projetos. Quando eles se realizam, dizemo-nos felizes. Quando não se realizam, ficamos tristes.
No entanto, é bom distinguir tristeza de tristeza, tristeza temporária e tristeza permanente, tristeza como uma circunstância e tristeza como uma condição. É claro que ficamos tristes quando não somos bem tratados numa loja ou numa igreja. Ficamos tristes quando não conseguimos comprar um produto que tanto almejávamos ou, quando o recebemos, notamos que não tudo o que desejamos que tivesse. Ficamos tristes quando perdemos uma pessoa querida, por morte ou por separação. Ficamos tristes quando somos obrigados a ficar em casa, embora quiséssemos estar em outro. Ficamos tristes quando alguém a quem amamos está sofrendo. Ficamos tristes quando somos confrontados com a miséria social de nosso mundo. Ficamos tristes quando estamos cansados física, emocional ou espiritualmente.
Para cada uma destas expressões da tristeza, há um caminho a ser percorrido.
No entanto, estou me referindo a outra forma de tristeza, aquela que não é devida a algum fato que interveio em nossa jornada. Não são as circunstâncias que a produzem, embora a agravem. Estou, portanto, pensando na tristeza sem uma causa aparente, mas que é capaz de levar à angústia.
Este é o caso do poeta do salmo 42. Não conhecemos as circustancias da sua vida, mas ficamos sabendo, por seu relato, da sua tristeza. A sua experiência é útil porque nos ajuda a enfrentar nossas próprias tristezas.
Lendo o texto, notei que o poeta descreve a sua tristeza como a presença de sentimentos diversos, como pode acontecer também conosco.
1. O poeta tinha uma sede não saciada de Deus. Ele se compara a uma terra árida, ressecada pelo sol, ávida por chuva. Ao tempo do salmista, havia muitos cervos nos desertos de seu país; perseguidos pelos cães, encontravam salvação nos riachos profundos, nos quais mergulhavam e não podiam ser alcançados. A água, para eles, era a salvação.
2. O poeta tinha saudade de um tempo em que podia ir ao templo adorar. Ele estava num lugar em que isto era impossível, embora o fizesse antes, como líder entre seu povo. É provável que estivesse temporariamente residindo longe de Jerusalém, cidade em que liderava a procissão daqueles que iam ao templo entoando canções como esta: “Alegrei-me, quando me disseram: `Vamos à casa do Senhor'” (Salmo 122.1).
3. O poeta estava sem esperança de que a sua vida fosse mudar, de modo que sua perturbação desaparecesse. Na verdade, nada parecia apontar uma luz no final do túnel. Seus problemas continuavam a desafiá-lo e a incomodá-lo.
4. O poeta estava envergonhado. Seus problemas não tinham solução. Assim mesmo, para espanto dos seus conhecidos que não temiam a Deus, ele continuava temente a Deus, enquanto seus amigos duvidavam de que sua fé valesse alguma coisa. Talvez fosse alvo do deboche dentro de sua própria casa. Talvez fosse chamado de fanático pelos seus colegas.
Nossas prioridades não podem ser as mesmas do salmista, mas somos tomados por idênticos sentimentos, especialmente em nossa época, em que a felicidade se tornou uma religião. Apesar das diferenças culturais, prendemos com a experiência do salmista.
Também experimentamos solidão e decepção. Também sofremos de doenças, algumas companheiras permanentes, sejam físicas ou psíquicas. Também enfrentamos situações nas quais esperamos que Deus intervenha, e nada parece acontecer.
Este salmo está na Palavra de Deus porque Ele quer nos ajudar a tratar deste problema. Trago algumas lições que minha leitura me trouxe.
1. Tenha uma visão adequada do que seja a tristeza. Não confunda momentos tristes com tristeza, que é um sentimento profundo, doloroso e intenso. Não pense que a vida seja só festa, porque não é e não pode ser. A semana tem sete dias e não apenas fim de semana.
2. Se você tem andado triste, faça uma auto-análise, para descobrir quando o seu bom-humor mudou. Você se tornou triste desde quando perdeu uma pessoa muito amada? Sua tristeza tem toda a razão para existir, mas nenhuma razão para continuar indefinidamente. Quando perdeu seu amigo Lázaro, Jesus chorou; depois agiu e parou de chorar. Você é triste porque todos os seus planos não dão certo? Você tem razão, mas persista nos seus planos ou mude de planos. Alguns são irrealizáveis por natureza. Conheço uma pessoa que não gosto de acordar às cinco e meia da manhã de domingo, mas ele me levanto, lava o rosto preguiçosamente, toma banho intensamente e sai cantando para o dia que o quer.
Seja qual for o problema que lhe trouxe tristeza, pense naquele momento em que as coisas mudaram; veja o que você ainda pode mudar e toque a sua vida. Se você errou, está diante da boa tristeza, aquela que produz arrependimento e não remorso, pois é “a tristeza segundo Deus”, aquela que “leva à salvação”, diferentemente da “tristeza segundo o mundo” que “produz morte” (2Coríntios 7.10). É por isto que outro poeta, o sábio de Eclesiastes, vaticina que “a tristeza é melhor do que o riso, porque o rosto triste melhora o coração”. A tristeza melhora o coração quando nos leva a refletir sobre nossos atos e mudar para melhor.
3. Em todas as situações, não lance mão de recursos ilegítimos para pôr fim à tristeza. Tome-a como um convite à reflexão, sozinho ou com a ajuda de um profissional, para encontrar as suas causas e, logo, os caminhos a serem tomados. Não lance mão do álcool e ou de qualquer outra droga proibida. Não basta dizer: “Tristeza, por favor, vá embora”, como no samba clássico, que diz:
“Tristeza, por favor vá embora
Minha alma que chora está vendo o meu fim
(…) Fez do meu coração a sua moradia
Já é demais o meu penar.
Quero voltar àquela vida de alegria
Quero de novo cantar”.
Desculpe, Niltinho Tristeza, não basta pedir para que tristeza vá. Ela não irá, até porque não tem asas próprias. Não use medicamentos sem orientação segura para enviar para longe sua tristeza; ela voltará. A cura para a tristeza não está em contemplar a própria tristeza, mas em contemplar Deus.
4. Persista na esperança. gosto de como o salmista enfrenta a sua tristeza: em meio à descrição mais dramática de sua dor, o poeta grita: “Ainda o louvarei”. Para o salmista, tristeza não é o contrário de alegria, mas é sinônimo de falta de louvor. Há louvor quando há esperança. O poeta propõe a esperança (verso 11), isto é, a certeza de que Deus vai agir e cessará a tristeza, a partir de suas causas e não apenas dos sintomas. A esperança, então, produz o louvor, que o contrário de tristeza. Como a corça, saiba que alegria verdadeira só vem de Deus.
5. Prossiga participando dos cultos da sua igreja, onde Deus é festejado. Deixar de vir a igreja pode conter a seguinte mensagem: meus irmãos são os culpados de minha dor ou, pior, Deus é o culpado de minha tristeza. O poeta sinonimizava presença no templo com presença de Deus. Jesus já nos ensinou que Deus não mora em templo algum. Numa enquete de uma página cristã da internet, depois de enumerar várias atividades, pergunta-se pela que mais dá prazer. A resposta mais votada, com 44% é ir à igreja, seguida de ler um livro, que tem 24% das preferências, todas anônimas, num resultado surpreendente, uma vez que ver televisão está entre as práticas menos preferidas. (Cf. www.prazerdapalavra.com.br). As respostas revelam que as pessoas têm sede de Deus.
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Com ou sem tristeza, tenha sede de Deus.
ISRAEL BELO DE AZEVEDO