Caro Ronaldo Luís Nazário de Lima:
Começo por lhe pedir desculpas por me dirigir a você publicamente, mas, anônimo admirador do seu extraordinário talento, não tenho como chegar a você. Resta-me este recurso, na expectativa que você me leia.
Escrevo-lhe por amizade, porque há amizades anônimas, sempre sinceras porque incorrespondidas por definição, uma vez que o alvo da amizade sequer conhece esse seu amigo e admirador. Há amizades conhecidas sinceras e, como você deve saber mais que eu, há amizades conhecidas oportunistas. Não sei se você viu a entrevista do Denilson, em que ele disse que tinha um monte de amigos, mas, depois que sua carreira enfrentou dificuldades, não sobraram dez. E eu acho que ele foi otimista. Também não sei se assistiu à entrevista do Jardel, em que ele fala do mal que lhe fizeram algumas de suas “amizades” (e as aspas são por minha conta e risco).
Escrevo-lhe, então, repito, por amizade. Acompanho — e que brasileiro não o acompanha? — sua carreira, que é um fenômeno mundial. Estive na China há alguns poucos anos e o pessoal lá não sabia pronunciar o nome do Brasil, mas o seu (com L no lugar do R, é verdade), todos sabiam. E quando pronunciavam seu nome, suas pernas se moviam como se quisessem imitar você. Quantos grandes jogadores não têm surgido e ainda vão surgir inspirados na sua habilidade com a bola.
Vivemos num mundo, Ronaldo, bastante estranho. Você é cercado, eu também o sou, pela idéia que cada um de nós tem o direito de ser feliz, o que, acho, está correto. O problema é que, junto vem outra idéia: vale tudo na conquista desta felicidade, confundida apenas com prazer. Ser feliz, então, é se sentir bem, e se alguma coisa não vai bem, podemos fazer o que for possível, para que as coisas estejam bem. Não há limites: o prazer é o limite. Você não acha estranha esta idéia, se o nosso próprio corpo tem limites? Por que não haveria de ter limite o prazer? Acontece que, embalados por essa ideologia, vamos estendendo este limite, até sermos parados por algum acontecimento dramático. Precisamos compreender que a felicidade inclui o prazer, mas não se restringe a ela.
Vivemos num mundo estranho mesmo, que nos diz que precisamos ter sucesso sempre, que temos que bater sempre as metas, que precisamos acumular mais, seja dinheiro, poder ou honra. Não dá para termos sucesso sempre. Sucesso é competição e, em toda a competição, há vitoriosos, no que você é magnífico, e há perdedores. Logo, não há como haver apenas quem vence. Precisamos resistir a essa ideologia do sucesso que, se nos faz vencedores, também nos derrota, quando não conseguimos alcançar padrões que nos impõem. Quando alcançamos muito sucesso, mesmo que com muito esforço, como é o seu caso, Ronaldo, e ele se ameaçado, somos cobrados, cobramo-nos a nós mesmos, e nosso equilíbrio fica manco.
Vivemos num mundo, e nisso não há novidade (o mundo sempre foi assim desde que o mundo é mundo), que não suporta o fato de o sofrimento é uma realidade que pode acometer a todos. Toda vez que eu ou você experimentamos a dor, seja ela física ou emocional, certamente nos perguntamos: por que? por que comigo? Cada um de nós, e eu me incluo nesse grupo de tolos, tende a achar que é especial, no sentido de que coisas ruins não nos podem acontecer. Essa é uma tentativa de prolongar aquele tempo gostoso, totalmente protegido, que passávamos nos ventres que se abriram para nos dar à luz. Viver, mesmo que fora desta automática proteção, também é muito bom, e isso inclui receber sol e chuva, caminhar na luz e na sombra, rodar por avenidas e por becos, correr ou manquejar, voar ou e se arrastar.
Vivemos num mundo, e nisto também não há novidade, em que os bons heróis são os transgressores, que não vivem segundo as regras dos outros, mas as suas próprias. Concorda comigo que isto não passa de uma bobagem? Sempre sigamos regras. Mesmo quando achamos que estamos sendo autênticos, estamos seguindo alguém. Não somos tão criativos assim. Quando decido que vou transgredir, só mudo de lado, mas sigo um lado. Há um ideário, primeiramente entre artistas e agora entre esportistas, segundo o qual as pessoas devem ser julgadas por suas obras, não por suas vidas. Só que isto não é verdade, nem para a obra nem para a vida, porque, quando uma vida é destruída a obra acaba. Quantos gols (e não é o gol que importa?) deixaram de ser marcados por noites não dormidas? Quantas copas foram perdidas porque alguns jogadores transgrediram as regras postas para o bem comum? Tenho ouvido muitos elogios à transgressão pela transgressão. Fiquei chocado quando o colunista José Geraldo Couto, na Folha de São Paulo (COUTO, José Geraldo. Jesus, amor etc. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/esporte/fk2212200710.htm>, escreveu que prefere o exemplo do jogador Adriano, por exemplo, do que o de Kaká para a juventude. Segundo esta lógica, quem se destrói, ao ponto de perder o título de “imperador”, é um exemplo; quem mantém se mantém no topo mas é careta não é exemplo. Aí, botafoguense (ninguém é perfeito!), eu me lembrei do inultrapassado Garrincha, com sua carreira abreviada por suas próprias transgressões e pelas transgressões dos outros (e eu me refiro às infiltrações no joelho). Ele, e tantos outros, foram vítimas dramáticas deste ideário, que é bom só para quem os promove, nunca para quem os vive. Esse ideário tritura quem os vive, para diversão de quem os promove. Quantos anos nos roubaram da genialidade do camisa 7 do Botafogo? E eu ainda queria ver Cazuza ou Renato Russo compondo novas canções e não ter que ficar fruindo as velhas. Quem ganhou com o caminho que lhes abreviou a vida e a obra? Vivemos, portanto, num mundo em que muitos rejeitam a idéia de que o certo é o certo e o errado é o errado. No entanto, um sinal vermelho não é um sinal verde; duzentos quilômetros por hora não são cento e vinte. Esperar o sinal se abrir não é notícia, mas não produz morte. Respeitar os limites de velocidade pode não ser uma aventura, mas reduz o número de vidas e carreiras encurtadas.
E, aqui, parece que vou me contradizer, mas vou dizer que todos nós fomos criados para a felicidade. E fomos também criados com o fantástico dom da liberdade. Nossa liberdade bagunçou nossa felicidade. Ser feliz é ser livre. E Deus nos deu um conjunto de regras, não para Ele ser feliz mas para que nós fôssemos felizes. Confundimos as bolas e começamos a jogar com bolas fora das regras em campos com gramas ruins. O resultado você conhece.
Nós somos imperfeitos. E aqui vou falar coisas que você também certamente já ouviu e vou me servir das minhas observações e da leitura da Bíblia, que você deve ter em casa, porque deve ter ganho várias. Minha imperfeição é muito antigo. Eu me lembro que sou imperfeito desde quando, bem novinho, por prazer de transgedir cortei escondido dos meus pais o cabelo de minha irmã ou quando a irritava dizendo que meu bife era maior que o dela. Eu me lembro que sou imperfeito desde quando, durante o intervalo da aula, punha o pézinho para que meu colega tropeçasse para que muitos ríssemos. Como eu fui capaz de fazer isto! Mas eu fiz uma bobagem desta e muitas outras até hoje.
Como aprendemos na Bíblia, nos demos e damos as costas para Deus, achando que sabemos o que é melhor para nós. No fundo, achamos que nos conhecemos melhor que o nosso criador. No fundo, achamos que Ele está muito distante para ver as oportunidades que temos. No fundo, achamos que somos especialistas em viver. De costas para Deus, como um atacante olhando para o gol da sua própria equipe, pomos todos os nossos esforços no lado errado do campo.
De costas para Deus, não aceitamos ser contrariados por pessoas ou por situações. Então, guerreamos. Queremos o que achamos que é nosso, mesmo que não seja. Então, mentimos, trapaceamos, enganamos, fingimos, manipulamos, roubamos, matamos, usamos o dinheiro para comprar o que não é comprável. Amamos o outro se for bom para nós. Esta é a história do mundo em que vivemos e que nós construímos, embora achemos que sejam os outros que o fazem.
Vou usar a palavra, horrorizada, abominada, interdita: nós somos pecadores. A notícia não é boa, mas é melhor uma notícia, mesmo que ruim, do que notícia nenhuma. A notícia não é boa mas nos ajuda a entender porque as coisas são como são.
Lá no fundo os homens sabem que são pecadores e alguns até gostam de o ser, até é claro, esse pecado fizer deles suas próprias vítimas.
Lá no fundo também os homens acham que podem se livrar dos seus pecados. Sempre achamos — o que é muito bom — que podemos nos superar. Muitos esforços são feitos. Um deles é aprender que ninguém precisa se preocupar por ser pecador; pode haver pecado, mas não há culpa, pensam alguns. São as circunstâncias ou a condição humana, argumentam outros.
Eu falo por mim: eu não consigo me livrar dos meus pecados. Consegui um pequeno avanço: sei que embora o pecado pareça bom, ele não é bom. Gosto de chocolate, mas preciso moderar no seu consumo, mesmo não sendo atleta. Há muitas coisas interessantes para eu fazer e que não são pecado. O que me fascina mais é aquilo que não devo. É por isto que não consigo me livrar dos meus pecados, porque a primeira coisa que faço é dizer a mim mesmo que o pecado não é pecado. É como se eu gostasse de ser enganado por mim mesmo ou pelos outros.
Eu sei de tudo isto, mas não consigo não pecar. E isto é duro. É como se minha natureza pendesse para o lado do pecado e levasse para a sua prática. Não é para ficar desesperado, Ronaldo?
Então, volto à Bíblia e leio que Deus, que me criou, continua me amando, apesar de eu lhe dar as costas. Só Deus pode amar assim. A gente ama quem não gosta da gente, mas depois desiste e cai em outros braços… Deus persiste. Cito-lhe um trecho de um entrevista do Bono, do U2. Disse ele: “É espantosa a idéia que o Deus que criou o universo procura por companhia. Meu entendimento da Bíblia é simplificado pela pessoa de Cristo. Cristo ensina que Deus é amor. E o que isto significa? Isto me leva ao estudo da vida de Cristo. (…) Sei o que Deus é. Deus é amor e o melhor que eu faço é me deixar ser transformado por este amor e agir neste amor. Esta é a minha religião. Quando as coisas se complicam para mim, trato logo de viver este amor, mas sei que não é fácil”. (Bono: Grace over Karma. Disponível em <http://www.christianitytoday.com/music/interviews/2005/bono-0805.html>)
Retorno à Bíblia e leio a história da crucificação de Jesus, uma história difícil de ser engolida. Como alguém pode me amar assim ao ponto de entregar o seu próprio filho para morrer em meu lugar, de modo que eu pudesse olhar Deus de frente outra vez! Sim, eu lhe dei as costas, mas Ele se manteve diante de mim. O pecado nos separava, mas Ele derrubou o abismo que nos separava.
A história da crucificação de Jesus Cristo há tantos séculos é a história do amor de Deus para comigo e eu posso universalizar este amor, para alcançar você também, mas falo da minha experiência. Por amor, Deus quer atacantes jogando para a meta que deve vencer. E o que Ele quer em troca? Apenas nossa amizade. Deus tem fome de nossa amizade, assim como devemos ter fome de sua amizade. Seu colo está aquecido para nos receber, mesmo quando escapamos por aí.
Quando reconheço que sou pecador e admito que não posso me livrar por mim mesmo do meu pecado, Deus fica livre para mostrar na prática o seu amor para comigo e me livrar do meu pecado, para que eu possa ser feliz. Quando peço perdão pelo meu pecado, sobretudo o pecado primeiro de dar as costas para Deus, eu sou perdoado. O peso da culpa — que existe e é real, mesmo que muitos digam o contrário — é tirado de minhas costas. Se a existência do pecado é uma péssima notícia, a possibilidade do perdão tira toda a sua força. Não há felicidade fora do amor de Deus para conosco. E Deus busca a nossa companhia, como disse o Bono.
Quero, Ronaldo, que você seja feliz, porque é o que Deus quer para você.
Quero que você aceite que é amado por Deus apesar dos seus pecados. É assim que a Bíblia diz que devemos nos sentir. É assim que me sinto, apesar de pecador: amado.
Quero que você deseje ser guiado por Deus, não por seus instintos (e como eles são fortes em você e em mim!), não por seus desejos (e como eles são poderosos em você e em mim!), não pela ideologia do prazer ou do sucesso (como ela é sedutora para você e para mim!)
Quero, se eu voltar à China, ver pessoas que admiram o seu futebol. Quero continuar apreciando o seu futebol por bons anos ainda, mesmo que não seja no Botafogo.
Quero que você continue sendo um exemplo de vida e de futebol para tantas pessoas no Brasil e no mundo. Precisamos de bons exemplos.
Ouso dizer que Deus quer o mesmo para você e que está com os abraços abertos para receber você e caminhar com você numa nova arrancada, rumo aos gols. No entanto, se os limites do corpo não puderem ser vencidos, o amor dEle para com você continuará o mesmo, porque Deus não se deixa contaminar pela doença da ideologia do sucesso. Ele também gosta de futebol, mas ama sobretudo o atleta, como quem deseja estabelecer um relacionamento de amigos.
Com admiração,
ISRAEL BELO DE AZEVEDO
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