A (in)comunicação dos mortos – parte 1

A (IN)COMUNICAÇÃO DOS MORTOS, 1

Gêmea da idéia da reencarnação é a crença que os espíritos dos mortos se comunicam com os vivos através de um intermediário.
É benfazeja a proposta segundo a qual podemos ser consolados por pessoas queridas que partiram. É confortador acreditar que aquele ou aquela que viveu conosco tanto tempo continua conosco e até pode falar conosco.

CENTRALIZANDO A BÍBLIA
Por isto, é muito comum, por exemplo, a crença de que os mortos têm consciência e vêem o que acontece no mundo dos vivos. Crêem alguns que não só vêem como podem interagir. É comum um atleta, após uma conquista, dedicar ao pai a sua vitória, nos seguintes termos:
— Pai, obrigado pela força que você me deu. Eu senti você ao meu lado o tempo todo.
Ou:
— Eu tenho orgulho do meu pai. Eu sei que ele está me vendo agora.
Há, portanto, uma religião popular (desenvolvida ao longo dos tempos, à margem das religiões) e mediática (vivida e ensinada por pessoas com espaço nos meios de comunicação de massa, como artistas e atletas), que transforma desejos pessoais em expressões de fé.
No entanto, só é válida a religião baseada na revelação divina. Em outras palavras, só é legítima a doutrina religiosa organizada a partir das páginas da Bíblia, interpretada de modo sistemático e respeitoso.
Desde o primeiro século após ser escrita a última de suas linhas (Apocalipse 22.21 — “A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja com todos vós. Amém”.) a Bíblia vem sendo lida e interpretada. Esta interpretação visa nos ajuda a entender o sentido original do texto, para que possamos aplicá-la nos nossos dias. Esta interpretação tem que ter apoio interno, isto é, apoio de outros textos bíblicos, tomados como expressões da revelação divina, isto é, expressões da comunicação de Deus para com os homens. A argumentação, por isto, não pode ser desenvolvida fora do texto bíblico, porque, neste caso, vai surgir outra pretensa revelação. Sem estes pressupostos (a Bíblia é o veículo por excelência da revelação divina e a interpretação de um texto bíblico tem que ser demonstrada por outros textos bíblicos), os ensinos decorrentes se constituirão em outras revelações, mesmo que apresentados sob a capa de interpretações. Estão neste caso os ensinos sobre a reencarnação e sobre a comunicação dos mortos.

RESPEITAR É PRECISO
Por outro lado, aqueles que procuram seguir as páginas da Bíblia, mediante leitura séria e interpretação séria, devem ser respeitosos com aqueles que têm expressões de fé não-pautadas na Bíblia. O fato de discordarem de suas crenças e até de suas interpretações da Bíblia não lhes autoriza a tratar de modo desdenhoso os adeptos de outras confissões. Mais uma vez, o ensino de Jesus é uma advertência: “E como vós quereis que os homens vos façam, da mesma maneira lhes fazei vós, também” (Lucas 6.31). Quem quer ser respeitado deve respeitar.
Os cristãos centrados na Bíblia devem respeitar as pessoas que não lêem a Bíblia ou a lêem de modo diverso, ao ponto de desenvolverem ensinos como este, de que os vivos podem e devem consultar os espíritos dos mortos, para receber consolo ou instrução ou previsão.

CRISTIANISMO POPULAR
Como é notório, mesmo no interior do Cristianismo, há o ensino que os mortos, especialmente os que levaram vidas virtuosas aqui ou foram martirizados por sua fé, podem interceder no céu diante de Deus pelos que se encontram vivos. Estamos falando da doutrina da intercessão dos santos. Embora não encontremos nenhum versículo bíblico que nos autorize a crer que uma pessoa morta, recentemente ou há muitos séculos, possa pedir algo pelos vivos, há muitos que estão certos disso. A esses intercessores são atribuídos milagres e outros favores. Estamos, na verdade bíblica, diante de um tipo de politeísmo, em que certas pessoas, por suas qualidades na terra, são elevadas à categoria de deuses no céu. À margem da Bíblia e contra a sua orientação, a crença se desenvolve. A Bíblia nos instrui a orar ao Pai em nome do Filho, mas há pessoas que pedem que um determinado homem já falecido ou uma determinada mulher já falecida peça a Deus por elas, como nossos intermediários. Quem procede assim entende — ou foi ensinado a entender — que a resposta de Deus depende dos méritos de quem pede; daí o apelo a este ou esta de quem se imagina ter um cacife de méritos suficientes para ter o seu pedido considerado. É a idéia de que alguém mais influente pode dar um jeito na situação. O clientelismo, tão abjeto aqui na terra, foi transportado para o céu, como se Deus se comportasse como os reis e presidentes humanos que só favorecem os que lhe estão próximos. Então — eis a arraigada crença, mesmo que antibíblica — se queremos algo de Deus, apelemos aos anjos ou aos santos que estão ao seu lado… Não temos valor suficiente para ir direto a Ele.
Aliás, mesmo entre os evangélicos a crença popular deixa seus vestígios. Quando um crente confia na oração do seu pastor mais do que na sua própria, está desviando o foco. No fundo, pensam alguns que os pastores, por supostamente estarem mais perto de Deus, são mais ouvidos do que as pessoas comuns. Quem pensa assim precisa voltar à Palavra de Deus. Aprendemos na Bíblia que todos somos sacerdotes: isto é: todos podemos e devemos levar nossas alegrias e angústias ao nosso Senhor. São bem-vindas todas as orações em nosso favor, inclusive as dos pastores. Um pastor é mais um orando. Ele não tem nenhum mérito para ser ouvido. Ele não tem a chave para abrir o coração de Deus. Na verdade, o coração de Deus está sempre aberto, esperando que o busquemos de todo o coração. Sua resposta é filha da misericórdia dEle para conosco; jamais de nosso mérito.

A PROIBIÇÃO
Essa autocrítica nos ajuda na aproximação ao ensino da comunicação mediúnica, isto é, o ensino de que os mortos podem se comunicar através de um médium.
De fato, é muito duro ver partir uma pessoa querida e imaginar que um abismo intransponível há entre vivos e mortos. Neste sentido, um ensino que os aproxime, diminuindo o abismo, atrai muitas pessoas. A idéia, portanto, de que os mortos podem se comunicar com os vivos nasce do desejo do reencontro, de preferência imediato.
O problema é que, se seguimos a Bíblia, a legitimidade da comunicação entre mortos e vivos fica ao desamparo. Por mais que os proponentes desta idéia se esforcem para encaixá-la na Bíblia, não há como fazê-lo.
Para a Bíblia, não deve haver comunicação dos mortos com os vivos. Na verdade, esta possibilidade é expressamente proibida. Os textos imperativos mais incisivos são Levítico 20.27, Deuteronômio 18.9-14 e Isaías 8.19.
Em Levitico 20.27, a instrução é a seguinte: “Quando, pois, algum homem ou mulher em si tiver um espírito de necromancia ou espírito de adivinhação, certamente morrerá; serão apedrejados; o seu sangue será sobre eles”.
Deuteronômio 9.9-14 é mais amplo: “Quando entrares na terra que o Senhor teu Deus te der, não aprenderás a fazer conforme as abominações daquelas nações. Entre ti não se achará quem faça passar pelo fogo a seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro; nem encantador, nem quem consulte a um espírito adivinhador, nem mágico, nem quem consulte os mortos; pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao Senhor; e por estas abominações o Senhor teu Deus os lança fora de diante de ti. Perfeito serás, como o Senhor teu Deus. Porque estas nações, que hás de possuir, ouvem os prognosticadores e os adivinhadores; porém a ti o Senhor teu Deus não permitiu tal coisa”.
O profeta Isaías (8.19) usa outro tipo de recurso literário, mas a condenação à consulta aos mortos é clara: “Quando, pois, vos disserem: Consultai os que têm espíritos familiares e os adivinhos, que chilreiam e murmuram: Porventura não consultará o povo a seu Deus? A favor dos vivos consultar-se-á aos mortos?”

A DEMARCAÇÃO DOS MUNDOS
Além da proibição, que não aparece explicitada noNovo Testamento, porque não havia esta prática na época dos apóstolos, Jesus Cristo parte do pressuposto que há um abismo intransponível entre o mundo dos mortos (no céu ou no inferno) e o mundo dos vivos. Uma de suas parábolas, sobre o sentido da vida, mostra a profundidade e a largura deste abismo.
Eis a parábola (Lucas 16.19-31).

[Lucas 16.19-31]
Ora, havia um homem rico, e vestia-se de púrpura e de linho finíssimo, e vivia todos os dias regalada e esplendidamente.
Havia também um certo mendigo, chamado Lázaro, que jazia cheio de chagas à porta daquele; e desejava alimentar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico; e os próprios cães vinham lamber-lhe as chagas.
E aconteceu que o mendigo morreu, e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; e morreu também o rico, e foi sepultado. E no inferno, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe Abraão, e Lázaro no seu seio. E, clamando, disse:
— Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e manda a Lázaro, que molhe na água a ponta do seu dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama.
Disse, porém, Abraão:
— Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro somente males; e agora este é consolado e tu atormentado. E, além disso, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem tampouco os de lá passar para cá.
E disse ele:
— Rogo-te, pois, o pai, que o mandes à casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos; para que lhes dê testemunho, a fim de que não venham também para este lugar de tormento.
Disse-lhe Abraão:
— Têm Moisés e os profetas; ouçam-nos.
E disse ele:
— Não, pai Abraão; mas, se algum dentre os mortos fosse ter com eles, arrepender-se-iam.
Porém, Abraão lhe disse:
— Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos ressuscite.

O homem rico, sem nome (embora em nossas histórias os pobres são que não têm nomes…), estava no inferno. Lá fez uma oração (verso 24) e nela pediu que Deus enviasse Lázaro, o mendigo, a quem distribuiu algumas migalhas e que estava no céu, à terra para que falasse aos seus irmãos ainda vivos e os advertisse do perigo que as suas vidas lhes representavam.
Observamos, primeiramente, que o homem rico não poderia vir à terra, por mais que desejasse. Vemos ainda que Lázaro também não poderia vir, caso desejasse. Em sua resposta, Deus deixou claro que há um abismo intransponível entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos (verso 26). Só haveria uma forma de os mortos voltarem à terra: por meio da ressurreição (verso 31), como aconteceu com Jesus e com Lázaro, irmão de Marta e Maria e não tem nada a ver com o mendigo da história.

PRIMEIRAS CONCLUSÕES
Precisamos (e ainda o faremos) analisar outros textos, especialmente dois: um do Novo Testamento, que narra a transfiguração de Jesus, em companhia dos falecidos Moisés e Elias (Lucas 9.28-36), e outro do Antigo Testamento, que traz o relato da consulta a uma necromante, no caso da experiência de Sauel com a pitonisa de En-dor (1Samuel 28.3-25).
Devemos ter em mente, então, que o que nós pensamos é o que nós pensamos. E o que nós pensamos não é suficiente para nos salvar, nem para nos permitir ter uma vida boa.
Nossas críticas precisam ser precedidas de autocríticas. O que cremos tem sólida base bíblica? Esta pergunta precisa nos acompanhar em tudo o que pensamos, cremos e fazemos.
Podemos e devemos discordar do outro, dando-lhe o direito de fazer o mesmo em relação ao que cremos. Devemos ser firmes, embora sempre humildes, contra aquilo que julgamos ser um erro, mas jamais devemos perder a capacidade amar aqueles que trafegam no que julgamos ser um erro.
A mensagem de Jesus não precisa de complemento. Os evangelhos segundo Mateus, Marcos, Lucas, João, Paulo, Tiago, Pedro, Judas e João são suficientes. Não precisamos de outros. Interpretações destes “velhos” evangelhos são bem-vindas. De novos evangelhos não precisamos.
As crenças que desenvolvemos, por mais lógica ou confortáveis que sejam, só tem legitimidade se forem solidamente bíblica.
Temos na Bíblia toda orientação e todo conforto que precisamos. Não precisamos que os nossos mortos queridos nos orientem e nos confortem. A vida se decide aqui.

CONTINUA

ISRAEL BELO DE AZEVEDO