A (in)comunicação dos mortos – parte 2

A (IN)COMUNICAÇÃO DOS MORTOS — PARTE 2
APRENDENDO COM O NOVO TESTAMENTO

(Preparado para ser pregado na Igreja Batista Itacuruca, em 8.6.2008, manhã)

Todas estas convicções não parecem resistir a dois textos bíblicos, em que os mortos desempenham papéis ativos.
Referimo-nos a 1Samuel 28.3-25, que narra o encontro do rei Saul com uma médium, e Lucas 9.28-36, em que Jesus conversa com Moisés e Elias na presença de alguns dos seus discípulos.

ATENÇÕES PRELIMINARES
Antes de os comentarmos, lembremo-nos que, ao lermos um texto bíblico, precisamos, por uma questão de inteligência, não de fé, verificar se ele é informativo ou imperativo. O informativo nos informa, tanto negativa quanto positivamente; assim, a poligamia dos patriarcas não é um modelo, mas uma informação da qual tiramos lições, nunca autorizações para as nossas práticas.
Como escreveu F.F. Bruce, “a inspiração da Bíblia não implica que todas os acontecimentos relatados nela têm a aprovação divina ou que todas as palavras registradas têm uma divina autoridade. Não estamos obrigados a defender o engano de Jacó para com seu pai ou o pedido de Elias para que o fogo descesse dos céus ou a aceitar como provenientes do Altíssimo os argumentos dos amigos de Jó ou os elogios de Débora a Jael. Estas ações e palavras não são parte da revelação de Deus, mas são parte do contexto em que a revelação foi dada e foram registradas para nos advertir. O isolamento de partes da Bíblia tem feito grandes estragos. O Antigo  Testamento é para ser lido e compreendido à luz do Novo Testamento; os primeiros estágios da revelação aparecem na devida perspectiva quando vistos no contexto da revelação completa em Cristo”.
Quando estamos diante de textos imperativos, por tratarem de princípios universais, precisamos de fé e coragem para praticar o que ouvimos.
Em segundo lugar, esta coragem deve nos levar à coragem de aceitar o que o texto bíblico nos diz, em lugar de o levarmos a dizer o que nós aceitamos.
Uma terceira atenção é que a Bíblia conta histórias e não tira conclusões, deixando-as para o leitor. É assim na maioria dos casos, mesmo naqueles em que as personagens têm atitudes condenáveis. É como se o autor (inspirado por Deus, como cremos) pressupusesse que o leitor sabia que a prática narrada era condenável. Por essa razão, não acrescentava à narrativa uma “moral da da história”. Somos convidados a interpretar, mas, neste processo, contamos com outros textos, sobretudo do Novo Testamento, que nos elucidam as questões.

O ERRO DE SAUL (1Samuel 28.3-25)
Tentemos, então, compreender o que 1Samuel 28.3-25 conta.
Saul, desesperado e cansado, buscou a orientação para uma guerra próxima. Não conseguiu resposta alguma. Ele decidiu buscar a orientação do profeta Samuel, que o ungira, mas que tinha morrido há algum tempo.
Para não ser reconhecido como rei, o mesmo rei que tinha banido a prática da consulta aos mortos, Saul se disfarçou e, acompanhado de assessores, acessaram uma médium. Diante dela, o rei lhe pediu o profeta Samuel subisse do mundo dos mortos.
Começou a sessão, com a mulher invocando o profeta. Segundo ela, este apareceu. Travou-se, então, um diálogo entre Saul e Samuel. O rei, então, ouviu que o seu fim estava próximo e que morreria na batalha que se travaria a seguir.
A revelação deixou Saul e a médium atônitos. Saul ficou perturbado por causa a sua fraqueza, já que estava em jejum há 24 horas (verso 28), e em função do conteúdo da revelação. A médium anônima ficou estupefata porque tinha infringido a lei que proibia a necromancia, punida com a morte naquela época e lugar.
Por insistência da mulher, Saul se alimentou e partiu. Alguns dias depois, ferido na batalha, suicidou-se com sua própria espada (1 Samuel 31.1-6).
O que realmente aconteceu?

Há vários aspectos que podem ser levantados preliminarmente:

. É a descrição que a mulher faz do homem que leva Saul a concluir que era Samuel. Ela disse que vira um deus que subia da terra e que vestia capa. A descrição é genérica demais, propícia a uma mistificação. Eis o que o texto diz: “Entendendo Saul que era Samuel, inclinou-se com o rosto em terra e se prostrou” (verso 14). Fica claro, pelo texto (verso 13), que Saul não viu diretamente a Samuel. Ele o “viu” por intermédio da médium.

. “Samuel era conhecidíssimo em Israel. Não seria difícil à médium, passado o susto inicial, atribuir à sua visão uma descrição que se encaixasse à pessoa de Samuel. (…) Naquela época quase todas as pessoas usavam capa, (…) uma peça comum no vestuário dos povos do Oriente Médio (cf. Gn.9:23; 39:12; Js.7:21; Rt.3:15; I Sm.15:27; 18:4; 19:13; I Rs.11:29; 19:13; 19:19)”.  [Instituto de Pesquisas Teológicas. Procurando compreender I Samuel 28. Disponível em <http://www.ipet.hpg.ig.com.br/espiritismo/esp_001.html#topo>.]

. A revelação sobre o futuro de Saul não foi rigorosa, mas uma meia-verdade. Ele não morreu na guerra, mas ferido, tendo cometido suicídio pouco depois. De igual modo, nem todos os seus filhos morreram (verso 29); Is-Bosete, Armoni e Mefibosete lhe sobreviveu. A morte de Saul não se deu no dia seguinte, mas 18 dias depois.

No entanto, dois coisas importam: 1. Samuel se comunicou com os vivos, Saul ou a pitonisa? 2. Uma pessoa pode consultar os mortos?
Para a primeira pergunta, podem ser formuladas quatro hipóteses. (Reescrevo aqui o que anotei em 1999, do púlpito da Igreja Batista Itacuruçá.)

QUATRO HIPÓTESES EM BUSCA DE UMA RESPOSTA
Hipótese 1: A necromante operou um milagre, em conluio com o reino das trevas, e trouxe Samuel de volta.
Não dá para aceitar esta idéia, porque a Bíblia diz que a morte é o fim (Hebreus  9.27), fim que só pode ser suspenso pela ressurreição (que não houve, neste caso).

Hipótese 2: Deus usou aquela circunstância para repreender Saul. Ele pode agir por formas estranhas, como fez com Balaão.
Não dá para aceitar esta idéia, porque seria Deus dar crédito à necromancia. Pelo contrário, ele a condenou.

Hipótese 3: A necromante cometeu uma fraude. Há vários indícios disto. Saul não viu Samuel. Foi a necromante. Samuel “estava” sob uma capa. Foi Saul que “entendeu” que era Samuel que lhe dirigia a palavra.
Não dá para aceitar a sugestão no seu todo, pois há evidências no texto que sugerem que houve mais que uma fraude.

Hipótese 4: A necromante contou com o apoio da força das trevas, a quem invocava, para enganar a Saul com elementos de magia, que é sempre falsa, e com elementos reais, operados pelo poder das trevas, como o reconhecimento de Saul (verso 14) e a predição da morte do rei (verso 19). Saiu estava enfraquecido, moral, psicológica, espiritual e fisicamente e caiu na fraude com facilidade. Deus permitiu que tudo acontecesse, para que as pessoas aprendessem Quem Ele é. Não foi Samuel mas um espírito enganador (um anjo de luz) que apareceu.
Muito (ou praticamente tudo) do que a cartomante falou era de domínio público. Ela disse que seu reino que lhe fora tirado; todo mundo sabia disso em Israel e ela também; por isso mesmo fora lhe consultar.
Estamos diante do paradigma do engano, que até hoje é o mesmo. É preciso, nesta hipótese que parece a mais próxima do texto bíblico, tomar-se cuidado para não dar aos poderes do mal uma força maior do que a que têm.

UMA SENTENÇA DE MORTE
Retomemos, então, a segunda pergunta: pode uma pessoa consultar os mortos?
A proibição à comunicação com os mortos é clara. No entanto, há quem pondere que a condenação é ao uso que se faz da necromancia, não à necromancia em si mesma. Sugerem estes que o que Moisés condena é a prática dos feiticeiros antigos, que evocavam os espíritos para obterem revelações ilícitas, para delas tirarem benefícios pessoais. Se, no entanto, os espíritos dos mortos oferecem conselhos e proporcionam alívio aos que sofrem, suas ações são válidas e devem ser buscadas.
Além disso, se o ´problema fosse “apenas” o abuso, como alegam alguns, Deus não condenaria tão frontalmente à prática: “Entre ti não se achará quem faça passar pelo fogo a seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro; nem encantador, nem quem consulte a um espírito adivinhador, nem mágico, nem quem consulte os mortos; pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao Senhor” (Deuteronômio 18.10-12a).
O que fez Saul senão buscar revelações ilícitas (já que não as conseguira comDeus, por causa do seu pecado) com uma necromante visando benefícios pessoais?
Ademais: que preço pagou? A própria Bíblia no-lo informa, pelo que devemos ter em mente ainda que, à luz de todo ensino bíblico sobre a comunicação com os mortos, Saul morreu pelo pecado de ter consultado uma necromante: “Assim, morreu Saul por causa da sua transgressão cometida contra o Senhor, por causa da palavra do Senhor, que ele não guardara; e também porque interrogara e consultara uma necromante” (1Crônicas 10.13).
Assim, o texto em que Saul consulta uma médium deve ser entendido como uma informação. Sua prática lhe custou caro.
A história não está ali como um modelo, mas como uma informação que explica o seu fracasso como homem de Deus e político dos homens.
A atitude de Saul nos ensina negativamente. Saul tentou ouvir a Deus, lançando mão de todos os recursos. Ele não queria, na verdade, ouvir a Deus. Ele queria a bênção de Deus, mas não desejava ter um relacionamento com Deus. Saul queria um deus manipulável, mas Deus não se deixa manipular. Na verdade, queria apenas uma bênção para a guerra próxima.
Saul não tomou as dificuldades em sua comunhão com Deus como um convite a um relacionamento de compromisso com Ele. Antes, pretendeu um Deus de conveniência, que lhe servisse. Como Deus não se deixou manipular, Saul buscou a sua solução, no caso, a necromancia. Ele apelou, dispondo-se até a pagar qualquer preço por uma revelação, que lhe desse tranqüilidade. Teve oportunidades de rever suas atitudes, mas escolheu afundar-se ainda mais, com um gesto que era contrário aos seus princípios, agora esquecidos. O desespero pode nos fazer quebrar princípios. Eis o que Saul nos ensina. Que o que ocorreu com ele depois também esteja no nosso horizonte, para não cairmos como ele caiu.

A TRANSFIGURAÇÃO DE JESUS (Lucas 9.28-36)
Outro texto é o de Lucas 9.28-36, em que Jesus conversa com os profetas Moisés e Elias, na presença de três discípulos. (O mesmo episódio está relatado também em Mateus 17.1-5 e Marcos 2.2-5).
A pergunta central, em torno desta experiência, é se Moisés e Elias realmente estiveram no monte da Transfiguração.

1. Para alguns, a experiência da transfiguração mostra é possível a comunicação dos vivos com os mortos. Segundo um autor, ela “não só é possível como será perfeitamente normal e sem nada de errado aos olhos de Deus, pois, caso contrário, Jesus não o teria feito”. [Cf. Comunicações com espíritos. Disponível em <http://blog-espiritismo.blogspot.com/2007/05/comunicaes-com-espritos.html>.]

2. Para outros, Moisés e Elias “realmente apareceram e falaram com Jesus”. O que aconteceu foi “uma experiência de origem divina, uma revelação dada aos apóstolos sobre a glória do reino futuro que terá Jesus como seu Rei”. Neste caso, a transfiguração foi algo completamente diferente e não guarda qualquer semelhança como sessões de comunicação mediúnica, onde há o consulente, o médium e o suposto espírito do morto. A tarefa do médium é servir de meio (como intermediário) para que o consulente ouça algo daquele a quem quer ouvir. Moisés e Elias nada disseram aos apóstolos e nem sobre os apóstolos. Falaram só a Jesus. Na verdade, “não houve consulta, da parte dos apóstolos, aos mortos”. Alén disso, “Jesus não foi nenhum médium entre os vivos e os mortos, pois não houve nenhuma mensagem entregue aos apóstolos por parte de Moisés ou Elias”. [MARTINEZ, João Flávio. Na transfiguração, Elias e Moisés falaram realmente com Jesus?  Disponível em <http://www.cacp.org.br/espiritismo/artigo.aspx?lng=PT-BR&article=1437&menu=5&submenu=1>]

3. Nossa perspectiva é outra. Entendemos que:
. O rosto de Jesus se transfigurou, tomando talvez uma forma resplandecente, como aconteceu a Moisés no Monte Sinai.
. Em meio a esta transformação, os discípulos tiveram uma visão: a de contemplar Moisés e Elias conversando com Jesus. O aparecimento dessas duas personagens centrais do Antigo Testamento foi uma visão. A Bíblia condena a consulta aos mortos (Levítico 20.27), prática que custou caro ao rei Saul. Para confirmar a divindade do Seu Filho, Deus não lançaria mão de um recurso que Ele mesmo condena. Pelo contrário, a experiência da visão é uma forma usada por Deus para se comunicar com os homens, sempre carecidos de experiências concretas.
. Os discípulos demonstraram fé suficiente para ver a glória de Deus e, ao mesmo tempo, egoísmo bastante para prolongar aquela maravilhosa experiência. Eles não tinham ainda entendido que a graça de Deus não é apenas para alguns, mas para todos.

ATITUDES QUE PRODUZEM VIDA
Aqueles que procuram ler a Bíblia e fazer dela seu guia para pensar e agir não podem se esquecer que nenhuma convicção teológica deve se sobrepor ao amor, a lei maior. O amor à verdade não é maior que a verdade do amor.
Ataque a uma religião, denominação ou doutrina diferente da nossa é inadmissível, indefensável e injustificável. Mesmo o debate, quando necessário, deve ser feito de maneira respeitosa, caridosa e generosa. Se, para vencer, é preciso desrespeitar, é melhor perder, mas este não é caso.

No caso específico da defesa da possibilidade de algo como comunicação com os mortos, alguns a postulam com base em raciocínios próprios, sem apelo à Bíblia, enquanto outros buscam o apoio da Bíblia para evidenciar suas posturas.
Reafirmamos que não há base na Bíblia para se defender a comunicação mediúnica. A única vez em que há um relato de experiência de comunicação mediúnica, que foi a consulta feita pelo rei Saul à pitonisa de En-dor, vem junto uma vigorosa condenação à prática. A necromancia é amplamente apresentada como uma abominação, isto é, como algo totalmente condenado por Deus. São abundantes as instruções bíblicas diretas sobre o assunto. Não tem fundamento hermenêutico a explicação de que a condenação divina não é a comunicação mediúnica mas ao uso indevido feito dela.
Todos precisamos ler a Bíblia respeitosamente, de modo a ler o que ela diz, não o que queremos que ela diga. Por mais que nos fascinem novas leituras da Bíblia, devemos respeitar os seus autores, sempre considerando o contexto de sua produção e a sua intenção. Todo o esforço da pesquisa bíblica é para chegar cada vez mais perto deste contexto e desta intenção, para que nossa leitura seja mais rica.
A história da transfiguração de Jesus ilustra como devemos considerar a intenção dos autores. Os evangelistas têm um interesse: mostrar que Jesus tinha a aprovação dos patriarcas do Antigo Testamento, comprovada com a palavra vinda de Deus, falando do Seu prazer em te-lo como filho. Nenhum evangelista estava interessado em mostrar que alguém sai do mundo dos mortos para se comunicar com os vivos. Tanto é verdade que, logo em seguida à experiência, entra em discussão o tema da ressurreição, já que a idéia da reencarnação é totalmente estranha à Bíblia.

Se devemos priorizar a pesquisa bíblica, devemos também cuidar para não transformar nossas eventuais experiências religiosas em revelações, revelações que substituem a revelação divina, dada na Bíblia. Nossas experiências, para não nos levarem ao engano, devem estar submissas à Palavra de Deus.

O perigo da entronização das experiências se potencializa quando entra em cena o sofrimento humano. Como dizer a alguém que perdeu uma pessoa querida que ela não deve participar de uma reunião em que se diz que ela pode travar contato com aquele ou aquela que partiu? Devemos respeitar os que sofrem. Não devemos feri-las em nome da verdade.
Para quem o luto é uma dor difícil de ser suportada, a mensagem bíblica é a da esperança, esperança do consolo e do reencontro. Gosto de ler a promessa divina de que Deus enxugar as lágrimas dos olhos dos enlutados (“Deus enxugará dos seus olhos toda lágrima, e não haverá mais morte, nem haverá mais pranto, nem lamento, nem dor, porque já as primeiras coisas são passadas” — Apocalipse 1.4).
É a esperança que nos fortalece para, fragilizados, não cairmos na armadilha que sugou Saul.

ISRAEL BELO DE AZEVEDO