Efésios 6.5-9: ESCRAVOS MODERNOS

(Da série PRINCÍPIOS BÍBLICOS PARA A VIDA PROFISSIONAL)

Este texto poderia ser descartado, uma vez que não temos mais escravidão no Brasil.

Na verdade, os fatos não são bem estes. Vejamos os fatos.
O governo brasileiro tem (2008) um programa para a erradicação do trabalho escravo no Brasil. A página eletrônica de abertura do programa começa assim: “Passados mais de 100 anos da assinatura da Lei Áurea e o nosso País ainda convive com as marcas deixadas pela exploração da mão-de-obra escrava. No Brasil, a escravidão contemporânea manifesta-se na clandestinidade e é marcada pelo autoritarismo, corrupção, segregação social, racismo, clientelismo e desrespeito aos direitos humanos. Segundo cálculos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), existem no Brasil 25 mil pessoas submetidas às condições análogas ao trabalho escravo. Os dados constituem uma realidade de grave violação aos direitos humanos, que envergonham não somente os brasileiros, mas toda a comunidade internacional”. (Cf. Plano nacional para a erradicação do trabalho escravo. Disponível em <http://www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/iniciativas/plano_nacional.pdf>)

Os dados são aterradores porque mostram condições ainda degradantes de trabalho, tanto no campo (como o mostram as ações do Ministério do Trabalho — cf. podemos ver em <http://www.youtube.com/watch?v=D33wuIMxah4>) como na cidade (sobretudo com migrantes na região metropolitana de São Paulo — como está reportado em < http://www.youtube.com/watch?v=6PJtLvl0w0Q&feature=related>.

Alguns dirão: estas realidades não nos alcançam.
Então, vejamos esta outra realidade, atestada direta ou indiretamente.
No Rio Grande do Norte, a empresa Ambev, do ramo da produção e comercialização de bebidas, foi condenada, em primeira instância, a pagar uma multa de um milhão de reais e a veicular na imprensa do Estado uma campanha contra a prática do assédio moral no trabalho. Segundo o Ministério Público do Trabalho, que moveu a ação, empregados que não cumpriam as metas eram obrigados a assistir em pé às reuniões ou a fazer uma espécie de dança da garrafa. (cf. “Condenação faz Ambev promover campanha contra assédio moral”. Disponível em <http://noticias.uol.com.br/empregos/ultnot/2008/08/08/ult880u7209.jhtm>.) Em outro processo, a mesma empresa foi condenada a pagar uma indenização de R$ 50 mil reais a um ex-funcionário que “era obrigado a fazer flexões diante dos colegas quando não alcançava a meta de vendas” (cf. “Ex-funcionário da Ambev obrigado a fazer flexões receberá R$ 50 mil”. Disponível em <http://ultimainstancia.uol.com.br/noticia/36894.shtml>.
Estes são apenas dois exemplos da realidade que certamente não é só brasileira.
Na Roma paulina, o sistema escravagista estava no seu apogeu. De certo modo, as atividades essenciais da agricultura, da indústria, do comércio e da construção civil, entre outras, dependiam do trabalho escravo.
Num determinado da vida na Grécia, por exemplo, estimadamente 85% da população eram de escravos. Os historiados estimam que a época de Jesus e Paulo, 30% da população eram constituídos de escravos. No texto de Efésios, sem se aprofundar na questão (como faz em Filemon), o apóstolo Paulo apresenta uma ética libertaria, ao lembrar que Deus não faz diferença entre senhor e escravo, numa sociedade profundamente desigual, como a nossa.
Em nosso contexto, em que a nomenclatura é outra, podemos aplicar os mesmos princípios à relação entre patrões e empregados, entre chefes e subordinados. Esta é a lógica aqui, mas ela vai desaparecer. O apóstolo Paulo não sacraliza a escravidão. Toma-a como é. De igual modo, não precisamos sacralizar as relações injustas no trabalho em nosso país, mas precisamos partir sempre da realidade como ela é, para que venha a ser como deve ser.
Paulo, portanto, não legitima a escravidão, mas leva-a em consideração como parte do mundo real.
Precisamos aprender a viver no mundo real. O nosso, por exemplo, é um mundo em que o trabalho é central. As relações não são muito diferentes de uma escravidão.

1. Devemos ver o trabalho como uma dimensão inevitável, indispensável e desejável para nossas vidas.
Nem sempre se trabalha no que se gosta. Nem sempre se faz o que se sabe. Nem sempre o trabalho tem a ver com a sua vida. Gosto sempre de recordar uma entrevista televisiva, feita com um jovem. A repórter mostra o rapaz em seu ambiente de trabalho, uma loja de venda de discos. Ele passa o dia ouvindo discos, classificando discos, tocando-os para os interessados. A repórter, então, lhe pergunta sobre o que faz em noite em casa e nos finais de semana. Ele responde:
— Eu ouço disco.
Para ele, trabalho e lazer são a mesma coisa. A maioria dos trabalhadores, no entanto, não têm este privilégio, no seu mundo real. Se qual for a condição do trabalho, ele é inevitável, indispensável e desejável.
Na condição atual, moldada pelo capitalismo, o trabalho é uma força que se vende. É algo alienado, no sentido que não tem nada a ver a vida da pessoa.
Por isto, saber que esta condição é interina, porque esta nossa vida é interina, como peregrinos que somos, nos anima e nos estimula. Relativizando o trabalho, nós vivemos como devemos viver. Absolutizar o trabalho nos faz enfermos. Absolutizar a preguiça (o não-trabalho) também nos faz enfermos.
O trabalho, portanto, é inevitável, indispensável, desejável, mas transitório.

2. Devemos estar atentos aos tremendos desafios advindos do mundo do trabalho.
Cada um de nós tem exemplos de quão fortes são estes desafios.
Eis alguns exemplos:
. Um irmão trabalha como porteiro e é obrigado a mentir dizendo que este morador ou aquele não está, porque recebeu esta ordem, embora esteja em casa.
. Um irmão nosso cuidava o serviço reprografico de uma empresa. A ordem era que ele não poderia fazer cópias pessoais, só as ligadas ao trabalho. Seu chefe era presbiteriano e o diretor era batista. O diretor, então, lhe trazia livros para serem copiados para os seus  filhos. O empregado, nosso irmão, olhava para o chefe e fazia as cópias. Tinha que obedecer, mesmo que a ordem tivesse partido de quem a deu.
. Um irmão me disse que seus colegas de trabalho, casados, todos traem suas esposas. É neste ambiente que ele trabalha.
. Um irmão, proprietário de uma empresa de serviços, foi convertido ao Evangelho por um empregado que trabalhou com ele até se aposentar, com 30 anos de serviço.
Os exemplos poderiam se multiplicar, mostrando devemos estar atentos aos tremendos desafios advindos do mundo do trabalho.
Sobretudo para os jovens, o grande desafio é obter um emprego.
Para quem está empregado, o grande desafio é permanecer no emprego. O estresse é intenso. Há metas imbatíveis; quando são batidas, são aumentadas no mês seguinte. Também por isto, muitas vezes a ética vai para o espaço e as relações pessoais se estraçalham. Há outras práticas intranqüilizadoras. Empregados são demitidos e obrigados a abrir cooperativas ou empresas, para que se evitem os chamados encargos trabalhistas. A ameaça para os mais experientes é maior, por causa de seus salários melhores.
Para todos, o desafio é crescer no e com o trabalho, não importam muito as condições.

2.1. A obtenção de um emprego requer percepção, pertencimento, preparo e perseverança, atitudes que sobretudo os jovens precisam perseguir.
Primeiramente, devemos <IS=SL>perceber<FS> as oportunidades imediatas e no médio prazo. Para onde está indo o trabalho é para lá que devemos ir, em termos de áreas de atuação e até de lugares. O mundo será cada vez mais dependente das tecnologias de informação, com os computadores ocupando lugar cada vez mais central. Quando me aposentar, é para lá que eu estou indo, se Deus me permitir.
Ao escolher uma profissão, em busca de um emprego, devemos visar aquela que nos faz <IS=SL>pertencer<FS>, já que a realidade é tão alienadora. O sentimento de percepção tem a ver com gosto pessoal e experiências pessoais. Possivelmente, por exemplo, uma pessoa que desmaie vendo uma porção de sangue não deva escolher campos profissionais ligados à saúde e à manipulação com o corpo humano. Uma pessoa que detesta se relacionar provavelmente não será um bom vendedor sem sofrimento. Devemos, por exemplo, escolher algo que tenha a ver conosco. Eu me lembro que vendia verduras lá de casa e meu pai me propôs mudar de ramo, pedindo-me para cobrar os que deviam pelos serviços que lhes prestara. Eu até ia à casa da pessoa, rodeava, mas não tinha coragem para cobrar. Fracassei e voltei para o ramo de vendas, oferecendo doces e depois picolés na rua. Nisto eu tinha prazer, mas em fazer cobrança… de jeito nenhum.
Em terceiro lugar, devemos nos <IS=SL>preparar<FS>. Só há lugar, tanta é a disputa, para os melhores. Ser o melhor implica ler, estudar formal e informalmente, interessar-se por aquela área. Tive uma colega no curso de jornalismo que não gostava de ler; imagine se tornou jornalista. Não. Quem quer ser advogado não pode perder os programas da TV Justiça, por exemplo.
Todo este processo demanda <IS=SL>perseverança<FS>. As coisas não acontecem de uma hora para a outra. Quem tem um sonho só vai realiza-lo se perseverar. O mundo descarta quem não persevera.
O mundo do trabalho é um mundo em que Deus não conta. No entanto, quem é de Deus conta com Ele no seu mundo de trabalho. Podemos e devemos pedir que Ele nos oriente diante das oportunidades. Devemos orar para que Ele nos crie oportunidades. Devemos nos manter firmes como Ele para não cairmos nas ciladas, profissionais ou morais.

2.2. A permanência no trabalho requer os mesmos cuidados e a mesma atenção aos recursos que Deus põe diante de nós.
Temos que fazer com capricho o que fazemos, mesmo que o chefe não esteja vendo. O conselho paulino é certeiro: “Obedeçam-lhes [ao senhores, aos chefes], não apenas para agradá-los quando eles os observam, mas como escravos de Cristo, fazendo de coração a vontade de Deus” (verso 6). Enquanto estamos ali, é ali que estamos. Louvado seja Deus, Senhor de nossas vidas.
Com isto em mente, usaremos as nossas armas, mas armas abençoadas por Deus, não as armas das trevas, que dão resultado no curto prazo, não no longo, além de desagradar a Deus. O sucesso não pode ser obtido a qualquer preço.
É preciso investimento na própria carreira. Temos que estar continuamente aprendendo. Mesmo que reclamemos das injustiças e das precariedades, enquanto estamos ali, devemos nos empenhar para ser os melhores.  Temos que estar continuamente nos educando. Só temos uma escolha ser excelentes profissionais.
Precisamos ter a coragem de ousar no trabalho, com os pés firmes no chão, o que pode implicar em mudanças. Um emprego ruim deve ser trocado para um emprego melhor. A decisão exige cuidado, oração, estudo e ousadia.

3. Devemos ver o trabalho como o lugar em que vivemos os valores nos quais cremos.
Passamos a maior parte de nosso tempo útil no emprego. Do nosso tempo acordado, passamos mais tempo no trabalho do que em casa. Esse lugar deve ser visto como o lugar  em que Deus vive conosco. É lá que temos que ser homens e mulheres de Deus. Depois e antes do trabalho também, mas sobretudo durante o trabalho. Nosso trabalho não é um intervalo da vida; é a nossa vida.
Em meio à competição, que avilta as pessoas, somos vis ou somos vistos como homens e mulheres de Deus? Diante das regras brutas, embrutecemo-nos também?
Somos excelentes na verdade?
Somos excelentes na sinceridade? (verso 5).
Somos excelentes no companheirismo?
Somos excelentes na competência?
Nas rodas, nosso papo é excelente na fluência e também nos valores nele embutidos?
Somos pessoas com que a empresa pode contar, mesmo que ninguém nos esteja vigiando, sempre cumprindo nossos compromissos, chegando à hora e saindo à hora, sem embromar, ou fazemos de conta que trabalhamos?
Vivemos de modo que as pessoas percebem que temos um Senhor sobre as nossas vidas ou nos misturamos na multidão anonimamente?  Aquela pergunta que o dirigente máximo do Egito fez, referindo-se a José num contexto profissional, deve ser um objeto de desejo para nós: “O faraó lhes perguntou: “Será que vamos achar alguém como este homem, em quem está o espírito de Deus?” (Genesis 41.38).
O nosso trabalho deve ser desenvolvido com um sentido de santidade e de missão. O que fazemos fazemos para Deus (verso 5), de Quem vem a recompensa que importa (verso 8). Certamente queremos ser canais de transformação em/de nosso ambiente de trabalho, mas isto começa com nossas vidas, com vidas coerentes com o Evangelho. O mundo tem sede de cristãos coerentes com a graça de Deus.
Nosso lugar de trabalho é o nosso lugar proclamação do Evangelho. E isso não dispensa palavras e não dispensa vidas coerentes, em que as pessoas se espelhem.

ISRAEL BELO DE AZEVEDO