EPISÓDIOS DA VIDA DE MARIA, 6: “FILHOS DO CORAÇÃO”
(Marcos 3.31-35)
(31) Então, chegaram a mãe e os irmãos de Jesus. Ficando do lado de fora, mandaram alguém chamá-lo.
(32) Havia muita gente assentada ao seu redor; e lhe disseram:
— Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e te procuram.
(33) — Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? –, perguntou ele.
(34) Então olhou para os que estavam assentados ao seu redor e disse:
— Aqui estão minha mãe e meus irmãos! (35) Quem faz a vontade de Deus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe.
Jesus foi um incompreendido, o que incluía, por vezes, sua própria família e até mesmo sua mãe. Eles não entendiam que Jesus tinha pressa e que a proclamação do Reino de Deus era prioridade do curto ministério, de menos de dois anos. Tão intensa era esta prioridade que Jesus não constituiu família própria, o que não nos deve servir de modelo, porque isto é para poucos. O celibato não é dom que Deus peça; é uma oferta que alguns homens e mulheres especiais podem fazer e mesmo assim não deveria ser para sempre, já que a família é um projeto de Deus para todos os seres humanos.
Na história que lemos em Marcos 3.31-35 (narrada também em Mateus 12.46-50 e Lucas 8.19-21), Jesus foi procurado por toda a sua família. Sua mãe (seu pai já devia ter falecido) e seus irmãos (talvez os quatro homens — Tiago, José, Simão e Judas — e alguma irmã, cujos nomes não sabemos — Cf. Mateus 13.55-56) o encontraram pregando numa casa e desejaram que ele interrompesse seu trabalho.
O que queriam? Estariam Maria e seus irmãos preocupados com o excesso de trabalho de Jesus? Se fosse isto, talvez a resposta fosse outra.
Sabemos que os irmãos de Jesus não criam nEle como Messias. O evangelista João nos diz que “nem os seus irmãos criam nEle” (João 7.5). Eles só creriam depois, tanto que, após a morte de Jesus, se reuniam com os outros discípulos, entre os quais estava Maria, sua mãe (como lemos em Atos 1.14: “Todos eles se reuniam sempre em oração, com as mulheres, inclusive Maria, a mãe de Jesus, e com os irmãos dele”).
Além da incredulidade, havia uma diferença de atitude. Mesmo sem crer, seus irmãos queriam que Jesus se apresentasse logo com o Messias (João 7.2-10). O calendário de Jesus era outro e isto trouxe conflito.
E episódio nos mostra situações comuns em nossas famílias.
Nem sempre nossa fé em Cristo é aceita por outros membros de nossa família. Às vezes, as dificuldades são imensas. Num contexto (ainda) machista como o nosso, há maridos que proíbem suas esposas de serem seguidoras de Jesus Cristo, criando obstáculos por vezes intransponíveis. Há pais que proíbem que seus filhos sejam batizados, o que gera tensões tremendas em casa.
Nem sempre nossa dedicação ao Reino de Deus é bem-recebida. Muitas vezes somos questionados e postos contra a parede para fazermos uma escolha desnecessária porque Deus ama a família, um projeto dEle. Jesus mesmo diz que há um preço no discipulado: “Se alguém vem a mim e ama o seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos e irmãs, e até sua própria vida mais do que a mim, não pode ser meu discípulo. E aquele que não carrega sua cruz e não me segue não pode ser meu discípulo” (Lucas 14.26-27).
Quando prosseguimos na leitura do Evangelho, notamos que Jesus não deprecia os laços familiares; antes, valoriza-os, embora mostre que nem sempre é fácil ser discípulo dEle pelas implicações advindas da oposição e da força dos interesses pessoais.
Nos evangelhos vemos que Jesus era conhecido como alguém que vivia em família. Como a sua família era pobre, ele foi objeto de desdém (Mateus 13.53-56). Em alguns momentos cruciais, foram vistos juntos (João 2.12). Ao final de sua vida, na cruz, preocupou-se com o destino de sua mãe e pediu a seu discípulo João que a recebesse como se fosse sua própria mãe (João 19.26).
Em sua pregação, mesmo tendo irmãos incrédulos, não os depreciou, ao ponto de chamar os seus discípulos de “irmãos”, termos que seria amplamente usada para designar um novo tipo de família, a família da fé ou a família de Deus.
A expressão “família da fé” (Gálatas 6.10) ou “família de Deus” (Efésios 2.19) designa um relacionamento de irmãos espirituais na igreja. Somos filhos que se relacionam com um Pai (Deus). Logo somos irmãos, espiritualmente falando. Jesus chama aos seus discípulos de irmãos, com um Pai (Deus) comum (João 17.22-24). Os apóstolos se tratavam como irmãos. Em suas epístolas, todos os membros da igreja que recebiam a correspondência eram chamados de irmãos.
O que estes textos nos devem fazer?
1. A incredulidade em família (por cônjuges ou irmãos) é uma possibilidade real. Jesus mesmo previu esta realidade, quando disse que traria a divisão, a divisão advinda das decisões de alguns na família ao recusarem o Evangelho (Lucas 12.51-53).
Muitos de nossos parentes fazem parte da nossa família, mas não fazem parte da família de Deus. Eles são responsáveis por suas escolhas. E nós devemos nos perguntar se não temos parte nesta incredulidade, seja agindo (com vidas indignas do Evangelho), seja nos omitindo (não lhes anunciando Jesus). Cada um de nós, nesta condição, precisa pensar nisto. Pensar e orar. Pensar e agir. Pensar e viver de tal modo que vejam Jesus em nós, conosco e através de nós. Pensar e esperar, sem jamais desistir de aquele nosso familiar um dia integrará também a família de Deus.
2. A oposição à nossa fé em Jesus como Salvador e Senhor é uma possibilidade real. Uma família nunca deveria se opor à fé que alguém nela professa, mas infelizmente isto acontece. Aconteceu com Jesus, de certo modo. A família não deve ser um impedimento ao discipulado, mas às vezes o é.
Quem vive numa condição desta precisa ter sempre em mente que o nosso laço com Jesus é mais forte que o nosso laço familiar. Quando em nossa família, recebemos um conselho, segundo a carne (o jeito deste mundo em ver e fazer as coisas), precisamos ficar atentos ao conselho do Espírito Santo, que produz vida. (Cf. o comentário de Ray Stedman ao texto de Marcos 3.35, disponível em <http://www.raystedman.org/mark/3306.html>)
Devemos continuar com nossos laços de mutualidade (no caso de cônjuges) e de obediência (no caso dos filhos). Nossa fidelidade a Deus deve ser declarada, com amor. O exercício público (por meio da igreja) desta fidelidade demanda paciência. Ninguém, nem nós, nem nosso familiar, é dono do nosso coração: só o nosso Deus. Um cristão pode ser calado em sua fé, cerceado em sua liberdade e assim mesmo manter sua fé em Deus, num relacionamento que ninguém consegue bloquear.
Os laços devem ser mantidos, mesmo que nos impeçam de integrar a família institucional de Deus (que é a igreja), porque já integramos a família espiritual de Deus (por meio de um relacionamento de fé, mesmo que secreto).
Nosso cuidado deve permanecer. O apóstolo Paulo é contundente a este respeito: “Se alguém não cuida de seus parentes, e especialmente dos de sua própria família, negou a fé e é pior que um descrente” (1Timóteo 5.8). O apreço de Jesus por sua mãe deve ser um modelo para nós no relacionamento familiar.
(Devo dizer, no entanto, que há situações que ultrapassam os limites que Deus mesmo põe. Eu me refiro a famílias tocadas sob o tacão do terror, como nos lembra a história aterrorizante do pai austríaco que abusou da filha por anos seguidos. Filhos violentados sexualmente devem ser tirados da família para outro contexto. Os violentadores devem ser punidos na forma da lei. Pai que espancam seus filhos, descontando nele um ódio que carregam, devem ser afastados deles. Maridos que espancam contumazmente suas esposas devem ser denunciados à polícia e pagar por seu crime. Filhos que dominam seus pais, pela chantagem ou pela violência, devem ser disciplinados. A família de Deus tem uma responsabilidade para com as partes frágeis das famílias de sangue em situação de humilhação e violência. Infelizmente na família de Deus, como joio em meio ao trigo, há pais que espancam os filhos, há maridos que espancam suas mulheres, há filhos que chantageiam seus pais, há filhos que não cuidam de seus pais carentes. Quem age assim, diz Paulo, nega a fé e é pior que um incrédulo.)
3. Nós precisamos formar laços espirituais com aqueles que crêem no que nós cremos. Podemos na família de Deus desenvolver laços mais fortes que os familiares. Não há amigos mais chegados que irmãos? (Provérbios 18.24) Pode haver também uma fraternidade em Cristo superior à fraternidade de parentesco. Não é o ideal, mas é real. Foi real no caso de Jesus, cujos irmãos (naquele momento) não buscavam fazer a vontade de Deus, no que se aplicavam seus discípulos. Era grande, por isto, a sua afinidade com eles, uma afinidade de natureza espiritual, que pode e deve ser muito forte.
Quero, logo, advertir contra o exclusivismo. Fazer parte da família de Deus não significa negar a família de sangue. Também não quer dizer que só devemos nos relacionar com os familiares espirituais. No seu sermão final, Jesus chama de irmãos a todos os necessitados. Somos chamados a atender os pobres em suas necessidades porque eles também fazem de nossa mesma natureza na humanidade e efetivamente são tornados nossos irmãos para o fim de exercermos com ele concretamente o nosso amor (Mateus 25.40). O exclusivismo é uma negação do cristianismo.
O apóstolo Paulo põe as coisas nos seus devidos lugares, quando nos descreve assim: “Portanto, vocês já não são estrangeiros nem forasteiros, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, tendo Jesus Cristo como pedra angular, no qual todo o edifício é ajustado e cresce para tornar-se um santuário santo no Senhor. Nele vocês também estão sendo edificados juntos, para se tornarem morada de Deus por seu Espírito” (Efésios 2.19-22).
Não fazemos parte da família de Deus por sermos membros de uma igreja. Esta membresia institucional deve seguir uma membresia espiritual, a que chegamos quando edificamos nossas vidas sobre Jesus, a pedra angular; vivendo assim, somos o santuário de Deus. E isto acontece na comunhão uns dos outros.
Devemos nos chamar de irmãos, indicando que somos todos iguais, radicalmente iguais, sejam doutores ou analfabetos, tenhamos vários imóveis ou nenhum, tenhamos cargos na igreja ou não. O que nós somos é irmãos. As novas gerações têm dificuldade de chamar uns aos outros de irmãos, mas é o que somos e era assim que os apóstolos se chamavam a si mesmos (“irmãos”); é assim que Jesus nos chama (“irmãos”).
Devemos viver de modo que mereçamos chamar e ser chamados de irmãos. Devemos nos edificar uns aos outros. Devemos aceitar ser edificados uns pelos outros. Não nos reunimos apenas para cantar, assim como uma família não se reúne apenas para comer, mas para tomar decisões, para carregar os fardos uns dos outros, para aconselhar quem precisa. Nós nos reunimos para juntos sermos edificados pelo Espírito Santo que o faz através de pessoas de carne e osso. Nós nos reunirmos para interceder uns pelos outros, rir e chorar juntos, comer e trabalhar juntos. Esta é a finalidade da família de Deus.