O jornalista inglês Matthew Parris, colunista do Times, de Londres, no final de 2008 voltou à África, onde passara parte de sua infância. Na volta, escreveu o artigo abaixo
Embora ateu, acredito realmente que a África precisa de Deus
Matthew Parris
Após passados 45 anos, retornei ao país que eu conhecia como “Nyasaland”. Hoje, ele se chama Malawi e o apelo natalino do jornal The Times (The Times Christmas Appeal) inclui um pequeno trabalho de caridade por lá. A Pump Aid [organização criada com o intuito de levar água limpa e saneamento básico sociedades agrícolas] ajuda as comunidades rurais a instalar bombas simples de água, permitindo às pessoas manterem os poços de seu vilarejo vedados e limpos. Fui conhecer este trabalho.
Ele me inspirou, dando nova vida a minha hesitante fé nas obras sociais para o desenvolvimento. Com efeito, viajar por Malawi renovou outra crença, a qual venho tentando suprimir por toda minha vida, mas que tenho sido incapaz de afastar desde a minha infância africana. Ela confunde minhas convicções ideológicas e, desobedientemente, recusa-se a se enquadrar em minha visão de mundo, dificultando minha crescente crença de que Deus não existe.
Agora, um ateu declarado, estou convencido da enorme contribuição que o evangelismo cristão tem na África, nitidamente distinta daquela proporcionada pelas ONGs seculares, pelos projetos governamentais e pelos demais esforços. Somente isto não é o suficiente. Educação e treinamento apenas não são suficientes. Na África, o Cristianismo transforma o coração das pessoas; ele traz mudança espiritual. O renascimento é real. A mudança é para melhor.
Eu evitava esta verdade aplaudindo – na medida do possível – o trabalho prático das igrejas missionárias na África. É uma pena, eu dizia, que a salvação seja parte do “pacote”, mas os cristãos que trabalham na África, brancos e negros, realmente curam os enfermos, ensinam as pessoas a ler e escrever. Só o mais inflexível dos secularistas poderia ver um hospital ou uma escola de missão e dizer que o mundo estaria melhor sem eles. Eu concordava que a fé é necessária para motivar missionários a ajudar, apenas isto; entretanto, o que conta é a ajuda, não a fé.
Não obstante, isto não se encaixa nos fatos. A fé faz mais que apenas dar apoio ao missionário; ela também é transferida para sua congregação. Este é o efeito que realmente importa e não posso deixar de observar.
Primeiro, então, uma observação. Tínhamos amigos missionários e, quando criança, eu freqüentemente passava algum tempo com eles. Meu irmão e eu também ficávamos em um tradicional vilarejo rural africano. Na cidade, existiam alguns africanos que trabalhavam para nós e que haviam se convertido e eram crentes perseverantes. Os cristãos eram sempre diferentes. Longe de terem se amedrontado ou ficado limitado por suas conversões, sua fé parecia que os libertara e tranquilizara. Havia uma vivacidade, uma curiosidade, um compromisso com o mundo – uma integridade de caráter em seus relacionamentos com os outros – que parecia faltar na tradicional vida africana. Eles se sobressaiam.
Aos 24, uma viagem por terra através do continente reforçou esta opinião. Desde a Argélia até o Níger, Nigéria, República dos Camarões, República Centro-Africana, e depois direto pelo Congo, Ruanda, Tanzânia e Quênia, quatro amigos estudantes e eu dirigimos nosso velho Land Rover até Nairóbi.
Dormíamos sob as estrelas e, por isso, era importante que, ao chegarmos às partes mais populosas e sem lei do sub-Saara, encontrássemos, todos os dias, algum lugar seguro ao anoitecer. Geralmente, próximo a uma missão.
Nas vezes em que entramos em territórios missionários, tínhamos que reconhecer que algo havia mudado nos semblantes das pessoas pelas quais passamos e com quem conversamos: alguma coisa em seus olhos, a maneira como se aproximavam diretamente, face a face, sem olhar para baixo ou desviar os olhos. Eles não haviam se tornado mais respeitosos em relação aos estranhos – em algumas maneiras, menos ainda – mas estavam mais abertos.
Desta vez no Malawi foi a mesma coisa. Você não encontra missionários nos saguões de hotéis caros discutindo o desenvolvimento de documentos estratégicos, como é possível se verificar nas grandes ONGs. Em vez disso, notei que vários dos mais notáveis membros africanos da equipe da Pump Aid (grande parte deles provenientes do Zimbábue) eram, pessoalmente, cristão fervorosos. “Pessoalmente” porque caridade é completamente secular e eu nunca ouvi nenhum deles ao menos mencionar religião enquanto trabalhavam nos vilarejos. Identifiquei, contudo, referências cristãs em nossas conversas. Um deles eu vi estudando um livro de devocionais no carro. Outro, num domingo, foi a uma igreja, pela manhã, participar de um culto que durou duas horas.
Seria normal que eu acreditasse que a honestidade, a diligência e o otimismo que eles empregavam em seu trabalho fossem divorciados de sua fé pessoal. Contudo, seu trabalho, apesar de secular, era certamente afetado por ela. O que eles eram era, na verdade, influenciado por uma concepção do lugar do homem no universo como ensinado pelo Cristianismo.
Há uma tendência entre os sociólogos do ocidente em situar os sistemas de valores tribais em um grupo separado, fora das críticas fundadas em nossa própria cultura; logo, “eles” sabem o que é melhor para eles, que são autentica e intrinsecamente iguais a nós.
Não acredito nisto. Vejo que as crenças tribais não são tão pacíficas quanto as nossas e que elas reprimem a individualidade. As pessoas pensam coletivamente, primeiramente em termos de comunidade, da qual fazem parte a família e a tribo. Este raciocínio alimenta a política do “chefe” e dos gângsteres das cidades africanas, gerando o respeito exagerado por um líder arrogante e pela (literal) inabilidade de entender a idéia de oposição leal.
A ansiedade – medo de espíritos maus, de ancestrais, da natureza e dos animais, da hierarquia tribal, de coisas cotidianas – atinge profundamente toda a estrutura do pensamento rural africano. Todo homem tem seu lugar e, quer você chame isto de medo ou respeito, um grande peso oprime o espírito individual, impedindo a curiosidade. As pessoas não tomam iniciativa, não vão à luta.
Como posso eu, como alguém com um pé em ambos os campos, explicar? Quando o turista filosófico muda de uma visão de mundo para outra, percebe – no momento da passagem para o novo – que fica sem palavras para descrever a paisagem antiga. Vou dar um exemplo: a resposta dada por Sir Edmund Hillary à questão “Por que escalar uma montanha?” foi: “Porque ela está aqui”.
Para a mente rural africana, esta é uma explicação para alguém não escalar a montanha. Ela está… ali. Bem ali. Por que interferir? Nada pode ser feito. A explicação seguinte de Hillary, de que ninguém mais havia escalado a tal montanha, seria um segundo motivo para a passividade.
O Cristianismo pós-Reforma e pós-Lutero, com seu ensino direto e pessoal acerca de uma conexão imediata entre o indivíduo e Deus, não mediado pelo coletivo e nem subordinado a qualquer ser humano, esmagou diretamente a estrutura filosófica/espiritual que acabei de descrever. Ele oferece algo para sustentar aqueles que estão ansiosos para abandonar o esmagador pensamento coletivo tribal. É isto que liberta.
Aqueles que desejam que a África se sobressaia na competição global do século 21 não devem se enganar acreditando que o fornecimento de recursos materiais ou até o conhecimento técnico que acompanha o que podemos chamar desenvolvimento irá fazer a diferença. Um sistema inteiro de crenças deve ser, antes, suplantado. Tenho medo de que ele seja suplantado por outro. A retirada do evangelismo cristão desta equação pode deixar o continente à mercê da maligna fusão entre a Nike, o doutor bruxo, o telefone celular e a machete. (Tradução de Jamile Soares Matos de Menezes)
Fonte: jornal The Times, de Londres.
Para ler no original CLIQUE AQUI.