Mateus 26.01, 02, 17: À MESA COM JESUS: TRADIÇÃO QUE SE RENOVA

À MESA COM JESUS: TRADIÇÃO QUE SE RENOVA

 Tendo dito essas coisas, disse Jesus aos seus discípulos:
— Como vocês sabem, estamos a dois dias da Páscoa, e o Filho do homem será entregue para ser crucificado.
No primeiro dia da festa dos pães sem fermento, os discípulos dirigiram-se a Jesus e lhe perguntaram: “Onde queres que preparemos a refeição da Páscoa?”

(Mateus 26.1-2, 17)

A pergunta dos discípulos (“Onde queres que preparemos a refeição da Páscoa?” – verso 17) mostra como eram comemoradas as festas judaicas anuais dos Pães Ázimos (ou Pão Sem Fermento) e da Páscoa. Ambas são celebradas integradamente, embora nem sempre tenha sido assim. Em certo sentido, a Festa dos Pães Ázimos passou a fazer parte da Festa da Páscoa, mesmo porque seus simbolismos são muito próximos.

A Páscoa é uma festa antiga, surgida no século 12 a.C., como o demonstram os textos que a instalam. Ela surge como uma celebração para recordar a saída do povo hebreu do Egito em direção a Canaã.

Vejamos estes textos:

[Êxodo 12.3-17 (Século 15 a.C.)]
Digam a toda a comunidade de Israel que no décimo dia deste mês todo homem deverá separar um cordeiro ou um cabrito, para a sua família, um para cada casa. Guardem-no até o décimo quarto dia do mês, quando toda a comunidade de Israel irá sacrificá-lo, ao pôr-do-sol.

Passem, então, um pouco do sangue nas laterais e nas vigas superiores das portas das casas nas quais vocês comerão o animal. Naquela mesma noite comerão a carne assada no fogo, com ervas amargas e pão sem fermento. Ao comerem, estejam prontos para sair: cinto no lugar, sandálias nos pés e cajado na mão. Comam apressadamente. Esta é a Páscoa do Senhor.

Naquela mesma noite passarei pelo Egito e matarei todos os primogênitos, tanto dos homens como dos animais, e executarei juízo sobre todos os deuses do Egito. Eu sou o Senhor!

O sangue será um sinal para indicar as casas em que vocês estiverem; quando eu vir o sangue, passarei adiante. A praga de destruição não os atingirá quando eu ferir o Egito.

Este dia será um memorial que vocês e todos os seus descendentes celebrarão como festa ao Senhor. Celebrem-no como decreto perpétuo.

Durante sete dias comam pão sem fermento. No primeiro dia tirem de casa o fermento, porque quem comer qualquer coisa fermentada, do primeiro ao sétimo dia, será eliminado de Israel.

Convoquem uma reunião santa no primeiro dia e outra no sétimo. Não façam nenhum trabalho nesses dias, exceto o da preparação da comida para todos. É só o que poderão fazer.

Celebrem a festa dos pães sem fermento, porque foi nesse mesmo dia que eu tirei os exércitos de vocês do Egito. Celebrem esse dia como decreto perpétuo por todas as suas gerações”.

[Levítico 23.6-8]
No décimo quinto dia daquele mês começa a festa do Senhor, a festa dos pães sem fermento; durante sete dias vocês comerão pães sem fermento.

No primeiro dia façam uma reunião sagrada e não realizem trabalho algum.

Durante sete dias apresentem ao Senhor ofertas preparadas no fogo. E no sétimo dia façam uma reunião sagrada e não realizem trabalho algum”.

 
[Números 9.1-2]
O Senhor falou com Moisés no deserto do Sinai, no primeiro mês do segundo ano depois que o povo saiu do Egito. Ele disse:
“Os israelitas devem celebrar a Páscoa na ocasião própria. Celebrem-na no tempo determinado, ao pôr-do-sol do décimo quarto dia deste mês, de acordo com todas as suas leis e ordenanças”.

[Números 28.16-25]
No décimo quarto dia do primeiro mês é a Páscoa do Senhor. No décimo quinto dia desse mês haverá uma festa; durante sete dias comam pão sem fermento.

No primeiro dia convoquem uma santa assembléia e não façam trabalho algum.

Apresentem ao Senhor uma oferta preparada no fogo, um holocausto de dois novilhos, um carneiro e sete cordeiros de um ano, todos sem defeito. Para cada novilho preparem uma oferta de cereal de três jarros da melhor farinha amassada com óleo; para o carneiro, dois jarros; e para cada cordeiro, um jarro.

Ofereçam um bode como sacrifício pela culpa, para fazer propiciação por vocês.

Apresentem essas ofertas além do holocausto diário oferecido pela manhã.

Façam assim diariamente, durante sete dias: apresentem a comida para a oferta preparada no fogo, de aroma agradável ao Senhor; isso será feito além do holocausto diário e da sua oferta derramada.
No sétimo dia convoquem uma santa reunião e não façam trabalho algum”.

 

[Deuteronônio 16.1-8]
“Observem o mês de abibe e celebrem a Páscoa do Senhor, o seu Deus, pois no mês de abibe, de noite, ele os tirou do Egito.

Ofereçam como sacrifício da Páscoa ao Senhor, o seu Deus, um animal dos rebanhos de bois ou de ovelhas, no local que o Senhor escolher para habitação do seu Nome.

Não o comam com pão fermentado, mas durante sete dias comam pães sem fermento, o pão da aflição, pois foi às pressas que vocês saíram do Egito, para que todos os dias da sua vida vocês se lembrem da época em que saíram do Egito.

Durante sete dias não permitam que seja encontrado fermento com vocês em toda a sua terra. Tampouco permitam que alguma carne sacrificada à tarde do primeiro dia permaneça até a manhã seguinte.

Não ofereçam o sacrifício da Páscoa em nenhuma das cidades que o Senhor, o seu Deus, lhes der; sacrifiquem-na apenas no local que ele escolher para habitação do seu Nome. Ali vocês oferecerão o sacrifício da Páscoa à tarde, ao pôr-do-sol, na data http:/da sua partida do Egito.

Vocês cozinharão a carne do animal e a comerão no local que o Senhor, o seu Deus, escolher. E, pela manhã, cada um de vocês voltará para a sua tenda.

Durante seis dias comam pão sem fermento, e no sétimo dia façam uma assembléia em honra ao Senhor, o seu Deus; não façam trabalho algum”.

 

A prescrição e a história se encontram, como lemos.

 

[Êxodo 12.31-32, 50-52]

Naquela mesma noite o faraó mandou chamar Moisés e Arão e lhes disse: “Saiam imediatamente do meio do meu povo, vocês e os israelitas! Vão prestar culto ao Senhor, como vocês pediram. Levem os seus rebanhos, como tinham dito, e abençoem a mim também”.
Todos os israelitas fizeram como o Senhor tinha ordenado a Moisés e a Arão. No mesmo dia o Senhor tirou os israelitas do Egito, organizados segundo as suas divisões.

 

[Números 9.4-5, 33.3]

Então Moisés ordenou aos israelitas que celebrassem a Páscoa; eles a celebraram no deserto do Sinai, ao pôr-do-sol do décimo quarto dia do primeiro mês.

Os israelitas fizeram tudo conforme o Senhor tinha ordenado a Moisés.

Os israelitas partiram de Ramessés no décimo quinto dia do primeiro mês, no dia seguinte ao da Páscoa. Saíram, marchando desafiadoramente à vista de todos os egípcios,

 

[Hebreus 11.28]

Pela fé [Moisés] celebrou a Páscoa e fez a aspersão do sangue, para que o destruidor não tocasse nos filhos mais velhos dos israelitas.

 

Josué (Século 15-14 a.C.) liderou s primeira Páscoa já na terra prometida e recebida.

 

[Josué 5 .10-11
Na tarde do décimo quarto dia do mês, enquanto estavam acampados em Gilgal, na planície de Jericó, os israelitas celebraram a Páscoa.

No dia seguinte ao da Páscoa, nesse mesmo dia, eles comeram pães sem fermento e grãos de trigo tostados, produtos daquela terra.

 

A despeito das advertências, a Páscoa ficou esquecida, sendo retomada no tempo do rei Ezequias  (Século 8-7 a.C.).

 

[2Crônicas 30.1-27]
Ezequias enviou uma mensagem a todo o Israel e Judá e também escreveu cartas a Efraim e a Manassés, convidando-os para virem ao templo do Senhor em Jerusalém e celebrarem a Páscoa do Senhor, o Deus de Israel.

O rei, seus oficiais e toda a comunidade de Jerusalém decidiram celebrar a Páscoa no segundo mês. Não tinha sido possível celebrá-la na data prescrita, pois não havia número suficiente de sacerdotes consagrados, e o povo não estava reunido em Jerusalém. A idéia pareceu boa tanto ao rei quanto a toda a assembléia.

Então decidiram fazer uma proclamação em todo o Israel, desde Berseba até Dã, convocando o povo a Jerusalém para celebrar a Páscoa do Senhor, o Deus de Israel. Pois muitos não a celebravam segundo o que estava escrito.

Por ordem do rei, mensageiros percorreram Israel e Judá com cartas assinadas pelo rei e pelos seus oficiais, com a seguinte mensagem: “Israelitas, voltem para o Senhor, o Deus de Abraão, de Isaque e de Israel, para que ele se volte para vocês que restaram e escaparam das mãos dos reis da Assíria. Não sejam como seus pais e seus irmãos, que foram infiéis ao Senhor, o Deus dos seus antepassados, de maneira que ele os deixou em ruínas, conforme vocês vêem. Portanto, não sejam obstinados como os seus antepassados; submetam-se ao Senhor. Venham ao santuário que ele consagrou para sempre. Sirvam ao Senhor, o seu Deus, para que o fogo da sua ira se desvie de vocês. Se vocês voltarem para o Senhor, os que capturaram os seus irmãos e os seus filhos terão misericórdia deles, e eles voltarão a esta terra, pois o Senhor, o seu Deus, é bondoso e compassivo. Ele não os rejeitará, se vocês se voltarem para ele”.

Os mensageiros foram de cidade em cidade, em Efraim e em Manassés, e até em Zebulom, mas o povo zombou deles e os expôs ao ridículo.

No entanto, alguns homens de Aser, de Manassés e de Zebulom humilharam-se e foram para Jerusalém.

Já em Judá a mão de Deus esteve sobre o povo dando-lhes unidade de pensamento para executarem o que o rei e os seus oficiais haviam ordenado, conforme a palavra do Senhor.

Uma imensa multidão reuniu-se em Jerusalém no segundo mês, para celebrar a festa dos pães sem fermento.

Eles retiraram os altares que havia em Jerusalém e se desfizeram de todos os altares de incensohttp://, atirando-os no vale de Cedrom.

Abateram o cordeiro da Páscoa no décimo quarto dia do segundo mês. Os sacerdotes e os levitas, envergonhados, consagraram-se e trouxeram holocaustos ao templo do Senhor.

E assumiram seus postos, conforme prescrito na Lei de Moisés, homem de Deus. Os sacerdotes aspergiram o sangue que os levitas lhes entregaram.

Os israelitas presentes em Jerusalém celebraram com muita alegria a festa dos pães sem fermento durante sete dias. Diariamente os levitas e os sacerdotes cantavam louvores ao Senhor, ao som dos instrumentos ressonantes do Senhor.

 

Ezequias dirigiu palavras animadoras a todos os levitas que mostraram boa disposição para com o serviço do Senhor. Durante os sete dias eles comeram suas porções das ofertas, apresentaram sacrifícios de comunhão e louvaram o Senhor, o Deus dos seus antepassados.

E toda a assembléia decidiu prolongar a festa por mais sete dias, e a celebraram com alegria. E toda a assembléia de Judá se regozijava, com os sacerdotes, com os levitas e com todos os que se haviam reunido, vindos de Israel, inclusive os estrangeiros que viviam em Israel e em Judá.

Houve grande alegria em Jerusalém, pois desde os dias de Salomão, filho de Davi, rei de Israel, não havia acontecido algo assim na cidade.

Os sacerdotes e os levitas levantaram-se para abençoar o povo, e Deus os ouviu; a oração deles chegou aos céus, sua santa habitação.

 

Pouco depois, a celebração caiu em desuso, retornando com a reforma religiosa ao tempo do rei Josias (640-609 a.C.).

 

[2Reis 23.21-22]
Então o rei [Josias] deu a seguinte ordem a todo o povo: “Celebrem a Páscoa ao Senhor, o seu Deus, conforme está escrito neste Livro da Aliança”.

Nem nos dias dos juízes que lideraram Israel, nem durante todos os dias dos reis de Israel e dos reis de Judá, foi celebrada uma Páscoa como esta.

 

[2Crônicas 35.1-18]
Josias celebrou a Páscoa do Senhor em Jerusalém, e o cordeiro da Páscoa foi abatido no décimo quarto dia do primeiro mês.

Ele nomeou os sacerdotes para as suas responsabilidades e os encorajou a se dedicarem ao serviço no templo do Senhor.

Ele disse aos levitas que instruíam todo o Israel e haviam sido consagrados ao Senhor: “Ponham a arca sagrada no templo construído por Salomão, filho de Davi, rei de Israel. Vocês não precisam mais levá-la de um lado para outro sobre os ombros. Agora sirvam ao Senhor, o seu Deus, e a Israel, o povo dele. Preparem-se por famílias, em suas divisões, de acordo com a orientação escrita por Davi, rei de Israel, e por seu filho Salomão. Fiquem no Lugar Santo com um grupo de levitas para cada subdivisão das famílias do povo. Abatam os cordeiros da Páscoa, consagrem-se e preparem os cordeiros para os seus irmãos israelitas, fazendo o que o Senhor ordenou por meio de Moisés”.

 

O serviço foi organizado e os sacerdotes assumiram os seus lugares com os levitas em seus turnos, conforme o rei ordenara. Os cordeiros da Páscoa foram abatidos, e os sacerdotes aspergiram o sangue que lhes fora entregue, enquanto os levitas tiravam a pele dos animais.

Eles separaram também os holocaustos para dá-los aos grupos das famílias do povo, para que elas os oferecessem ao Senhor, conforme está escrito no Livro de Moisés; e fizeram o mesmo com os bois.”

Assaram os animais da Páscoa sobre o fogo, conforme prescrito, cozinharam as ofertas sagradas em potes, caldeirões e panelas, e serviram rapidamente todo o povo.

Os israelitas que estavam presentes celebraram a Páscoa naquele dia e durante sete dias celebraram a festa dos pães sem fermento.
A Páscoa não havia sido celebrada dessa maneira em Israel desde os dias do profeta Samuel; e nenhum dos reis de Israel havia celebrado uma Páscoa como esta, como o fez Josias, com os sacerdotes, os levitas e todo o Judá e Israel que estavam ali com o povo de Jerusalém.”

 

Então, veio o exílio e chegou depois restauração (século 5 a.C.), com a volta de muitos judeus a Jerusalém.

 

[Esdras 6.19-22]

No décimo quarto dia do primeiro mês, os exilados celebraram a Páscoa.

Os sacerdotes e os levitas tinham se purificado; estavam todos cerimonialmente puros. Os levitas sacrificaram o cordeiro da Páscoa por todos os exilados, por seus colegas sacerdotes e por eles mesmos.

Assim, os israelitas que tinham voltado do exílio comeram do cordeiro, participando com eles todos os que se haviam separado das práticas impuras dos seus vizinhos gentios para buscarem o Senhor, o Deus de Israel.

Durante sete dias eles celebraram com alegria a festa dos pães sem fermento, pois o Senhor os enchera de alegria ao mudar o coração do rei da Assíria, levando-o a dar-lhes força para realizarem a obra de reconstrução do templo de Deus, o Deus de Israel.

 

A PRIMEIRA CELEBRAÇÃO DA CEIA DO SENHOR

Estas leituras (longas e necessárias) nos mostram claramente o lugar que a Páscoa ocupava na vida religiosa dos hebreus. 1 Pelo que lemos no Antigo Testamento, ficamos sabendo que, junto com as Festas dos Tabernáculos (Cabanas) ou e do Pentecoste, a Páscoa é uma das três principais festas dos hebreus. É para ser celebrada no dia 15 do mês Nisan ou Abib (dia da lua cheia), o primeiro do calendário hebraico. Era compulsório para todo judeu que morasse a morasse a 25km da cidade visitasse Jerusalém. Ao tempo de Jesus, entre 100 mil e 250 mil peregrinos, próximos e distantes, agrupados em chegavam à cidade, onde se hospedavam sobretudo na casa parentes ou acampavam nas colinas ao redor.

Não surpreende, portanto, que Jesus tenha participado de várias delas. Durante sua infância, sua família o levava à festa. Numa delas, estava com 12 anos (Lucas 2.41). Em outra, estava no início do seu ministério (João 2.13). Deve ter participado de outra (João 6.4), antes da última.

Ao tempo de Jesus,  a festa dos pães ázimos era parte da Páscoa, uma refeição a partir do pôr-do- sol da quinta-feira (já considerada sexta-feira no modo hebreu de marcar o dia).  Era uma festa familiar, em que não podiam faltar os seguintes ingredientes:

. Um cordeiro, o último “prato” que os hebreus comeram antes de deixar o Egito;

. Pães ázimos (não levedados ou não fermentados) , para lembrar a pressa com que saíram do Egito;

. Água salgada, para lembrar as lágrimas vertidas ao tempo da escravidão sob os egípcios;

. Ervas amargas, para lembrar o sofrimento da escravidão e o hissopo usado para borrifar o sangue do cordeiro sobre os portais das casas ;

. Uma pasta doce de maçãs, tâmaras, romãs e nozes com canela, para lembrar o barro e a palha utilizados no Egito para a preparação de tijolos no tempo da escravidão.

. Vinho para lembrar as promessas de Deus (Êxodo 6.6-8).

O que aconteceu naquela Pascoa, com Jesus e seus discípulos seguia uma prescrição de muitos seculos.

Para os judeus religiosos, a Páscoa é celebrada de modo a lembrar a saída do povo hebreu do Egito. Leio a narrativa em que uma judia brasileira (Dalva Agne Lynch, a quem agradeço) conta a celebração da Páscoa nos dias de hoje em uma das tradições (porque há outras):

A comemoração mesma, o Seder, é muito linda, e dura no mínimo três horas, mas o normal é sete. É a única celebração que segue um ritual bem rígido, e dele participam todos os membros da família, amigos, etc. O livro do ritual se chama Hagadah, e desde a posição da comida na mesa, o tipo de comida, e a fala de cada pessoa, está descrita ali. Conta-se toda a história da saída do povo, as pragas do Egito, etc. (…) Na semana anterior, a família inteira limpa a casa toda. (…) Durante a semana toda, nada que contenha fermento entrará na casa, porque Israel teve que fugir às pressas, e seu pão não teve tempo de fermentar – e por 40 anos comeram pão sem fermento. (…) Todos os homens têm a cabeça coberta por um kippah, chapeuzinho que cobre a cabeça. As mulheres usam véu. Todos vestem-se com suas roupas mais bonitas. A mesa é coberta de branco, assim como todos os guardanapos que cobrem a comida. Os castiçais, a baixela, os pratos de servir, as bandejas – são todos de prata, representando a prata que os egípcios deram a eles quando eles partiram. Tudo isto, e mais os pratos de comer, são guardados o ano inteiro, e usados durante somente esta semana. (…)
No banquete, comem-se ervas amargas (Maror), para lembrar a amargura do deserto. E ovo (Betsah), que representa o sacrifício e o renascer de Israel (daí o ovo de páscoa). Come-se salsa (Karpas), representando a fartura da Terra Prometida. Come-se uma mistura de nozes, vinho, canela e maçã (…) (Charosset), que representa o barro com o qual os escravos israelitas faziam tijolos. Há também um recipiente com água salgada, não só representando o mar, mas também para mergulhar o Maror. E também há um osso de cordeiro no centro do prato do Seder (Zeroah), que representa o cordeiro sacrificado, cujo sangue foi colocado na soleira da porta, para que o Anjo da Morte não entre naquela casa, quando passar para matar os primogênitos do Egito. (…)
A cerimônia em si começa com a mulher mais velha acendendo as velas, anunciando a chegada de Pessah. Daí o patriarca diz o Kiddush (a bênção sobre o vinho). Cada pessoa beberá quatro copos de vinho durante a celebração, cada um correspondendo a uma das promessas do Eterno para seu povo. E a pessoa se reclina para a esquerda, simbolizando o descanso do povo depois da fuga do Egito.
Mas a festa começa mesmo quando a criança mais jovem se aproxima do patriarca, e pergunta:

  • Por que esta noite é diferente de todas as outras noites?

E ele responde:

  • Porque nesta noite, criança, o Anjo da Morte passou sobre nós, mas o Sangue do Cordeiro nos protegeu (passou sobre nós: pass over, daí o Passover, que veio até nós [em inglês).A criança, então, fará três perguntas.
    (…) Por que todas as noites mergulhamos as ervas apenas uma vez, mas hoje mergulhamos duas vezes em água salgada?
    (…) Por que todas as noites comemos pão, mas hoje apenas Matzah?
    (…) Por que comemos sentados todas as noites, mas hoje nos reclinamos em almofadas?

    Ao responder estas perguntas, o homem conta toda a história de Israel. (…) Daí come-se o banquete. (…) Depois da refeição, as crianças repetem em coro dez versos sobre a Pessah, e cantam a canção do Cordeirinho (Haggadiah). Daí todos se sentam, e cantam canções antigas (zigunim) juntos, os homens e meninos se movimentando suavemente para frente e para trás.

    Daí todos se levantam, ajudam a limpar a mesa, e vão dormir. No dia seguinte a festa continua.

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Ao tempo de Jesus, a Páscoa era uma cerimônia do Templo mas também das famílias. Possivelmente, os discípulos prepararam a refeição pascal com estes ingredientes. Pode ter havido algumas diferenças entre este cerimonial e o de Jesus. Naquela a família era espiritual (Jesus e seus discípulos) e não de parentesco. As narrativas daquela noite não detalham a ingestão de cada um deles, que parece pressuposta, mas estão narrados os momentos do pão e do vinho, possivelmente pela relação com a Ceia em memória de Jesus Cristo.

Uma pergunta é: devemos ter estes elementos em nossa Ceia do Senhor? Penso que um cristão de origem judaica ou de nacionalidade israelense deve incluir estes elementos na Ceia cristã. Ao mesmo tempo, um cristão gentio (no sentido, de não-judeu) não deve incluir estes ingredientes na sua Ceia porque não fazem parte da sua cultura. Se um cristão decidir fazê-lo por algum momento no culto de Ceia, deve fazê-lo para fins didáticos, para demonstrar como foi o Êxodo e como era o Antigo Pacto. O Novo Pacto deixa claro que um não-judeu não precisa se tornar judeu para ser cristão. O Novo Testamento quando ritualiza a Ceia do Senhor só inclui o pão e o vinho. Os cristãos não passaram pelo Egito. O decreto perpétuo de celebração da Páscoa não lhe é um compromisso.

O que tem a ver, então, a celebração da Ceia do Senhor com a Páscoa?

 

O QUE OS CRISTÃOS COMEMORAM?

A Páscoa era uma festa para o povo ser recordado do Êxodo, de que foi retirado miraculosamente da escravidão para a liberdade. A celebração da páscoa era para acontecer sobretudo na ambiente da família, o berço da educação religiosa, realidade que nenhum cristão deve esquecer, embora seja mais fácil terceirizá-la para a igreja.

Como cristão sabemos pouco sobre a última semana de Jesus na terra, por exemplo. Temos contar mais a história da redenção. Nossas crianças precisam ouvir a história do Natal e a história da Redenção e isto deve começar em casa. A comemoração judaica da Páscoa pode ser vista como um convite em nossas celebrações do sacrifício de Jesus Cristo. Esta história jamais poderá ser esquecida.

Ao participarmos da celebração da Ceia de Jesus, precisamos ter em mente que, se a Páscoa hebraica é a recordação da travessia do povo do medo para a liberdade, da deserto para a terra fértil, a Páscoa cristã (com seus três elementos: paixão, morte e ressurreição) também recorda a nossa travessia da escravidão ao pecado à liberdade na graça, da insegurança no deserto para a segurança no colo de Deus. A Páscoa judaica é o poder de Deus em ação para libertar um povo. A Páscoa cristã é o poder de Deus em ação para libertar todos os que creem em Jesus como o Messias que veio para salvar.

 

ONDE QUERES?

Termino como nossa história começa, quando os discípulos perguntam a Jesus: “Onde queres que preparemos a refeição da Páscoa?

Considero esta pergunta surpreendente.

1.     Aqueles judeus estavam acostumados a celebrar a Páscoa. Certamente já tinham participado de dezenas delas. Eles sabiam como fazer. Estavam acostumados a fazer. No entanto, mesmo talvez imaginando uma resposta tradicional (“façam como sempre fizeram”), eles perguntaram. Quando perguntaram, foram surpreendidos. Jesus celebrou a Páscoa, inaugurando a Ceia em memória dEle. É por isto que hoje ainda a celebramos. Quando ouvimos de Deus o que fazer, o novo nasce. Não precisamos ficar agarrados a tradição, fazendo a mesma coisa, mesmo que não tenhamos nela mais prazer. Penso nisto no contexto da Ceia. “Senhor, como (e não “onde”, já que temos o lugar) queres que celebremos a Ceia?” A pergunta deve nos acompanhar em tudo o que fazemos na vida.

2.      A pergunta indica como os discípulos tratavam a Jesus, a partir do que pensavam de si mesmos e de como consideravam a Jesus.

Os discípulos pensavam a si mesmo como discípulos. Eles são os que aprendem, porque sabem muito pouco e o que aprenderam foi porque Ele lhes ensinou. Jesus é o Mestre por excelência, desde que os discípulos queiram aprender. Os discípulos são aqueles que se assentam ao pés do mestre para aprender, para ouvir suas histórias, para serem penetrados por seu ensino.  

Estamos matriculados na academia de Jesus? Quem nos tem ensinado a amar? Quem nos tem ensinado a trabalhar? Quem nos ensinado a ganhar dinheiro? Quem nos tem ensinado a estudar. Quem nos tem ensinado a viver? Achamos que precisamos aprender? Ou já estamos na condição de ensinar

3.      Os discípulos olhavam para Jesus como Senhor. Embora Jesus os considerasse como amigos, eles, mesmo sabendo que eram considerados com seus amigos, relacionavam-se com Ele como servos. “Onde queres?” Talvez quisessem tomar a Páscoa também, mas se Jesus não quisesse, não tomariam. Talvez tivesse opiniões próprias sobre o local da Páscoa. Talvez alguns quisessem oferecer suas casas. Talvez achassem que Jesus não devesse ir à Páscoa, para evitar riscos maiores. Certamente pensavam alguma coisa, mas queriam saber o que Jesus pensava. Certamente desejavam alguma coisa, mas lhes importava primeiramente saber o que Jesus queria. No entanto, como servos, perguntaram: “O que queres, Senhor?”

Temos recebido ordens de Jesus ou temos tentado dar ordens a Ele? Deus lhe tem impedido de realizar alguma coisa? Paulo tentou avançar na obra missionária, mas Deus lhe impediu. Paulo notou que Deus o estava impedindo porque estava atento às ordens de Deus. Se somos donos de nossos próprios narizes, não ouviremos Deus nos indicando para uma direção ou desviando de outra. Ah se perguntássemos: “O que queres, Senhor”?

Dependendo de onde estamos e como estamos, a pergunta pode variar, permanecendo a sua essência. Pode ser “onde queres?”. Pode ser “o que queres?”. Pode ser “como queres?”

O importante é conhecemos a vontade de Deus para nós.

Ao participarmos da celebração da Ceia de Jesus, precisamos nos perguntar se temos feito ao Senhor essas perguntas essenciais. Essas são perguntas que homens e mulheres de Deus precisam fazer todos os dias.

ISRAEL BELO DE AZEVEDO

1 Para uma história das mudanças litúrgicas, veja-se SIQUEIRA, Tércio Machado. Um estudo sobre a origem da Páscoa.

2 LYNCH, Dalva Agne. Pessah.