Alegria: Os novos libertos da criação

OS NOVOS LIBERTOS DA CRIAÇÃO

“E conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará” (João 8:32).

Conhecemos a Verdade que nos liberta. E sabemos que somos livres: da opressão do pecado, da tirania, da injustiça e do terror do juízo. Mas preferivelmente que libertos DE, somos libertos PARA.
Somos novas criações, nascemos de novo, somos o broto do novo rebento. Não somos velhas paredes pintadas de uma outra cor qualquer. A nova criação que brota da salvação não é uma velha criação restabelecida ou simplesmente reparada, mas uma nova criação em radical oposição à velha. Não foi o pecado que se retirou de nós, mas nós que nos libertamos do seu jugo, graças à mediação salvífica de Cristo. “Tudo se fez novo” (2Coríntios 5:17).
Como novas criações, vivemos uma alegria transbordante em Deus, graças a Quem podemos viver a nossa vida como um jogo livre de pensamentos, palavras, imagens e cânticos espirituais. A nossa boca está cheia de riso e a nossa língua entoa alegres cânticos porque o Senhor já nos trouxe do cativeiro e nos encontramos agora como que sonhando (Salmo 126).
O nosso louvor pela libertação, porém, é um negócio (não-ócio) que aponta para a sua realização, através de uma atitude perante a vida que inclua:
Reverência profunda, operada no amor;
Uma jubilante celebração, manifestada num espírito festivo;
Uma admiração pelo belo que nos permite sentir o sorriso da graça divina.

A REVERÊNCIA PELA VIDA, ATRAVÉS DO AMOR. O GRITO DO SILÊNCIO

Da declaração de Nietzsche, há um século de que “Deus será morto” para a de Michel Foucauld, em nosso século, de que também o homem está morto, e que hoje “não se pode mais pensar senão no vazio do homem desaparecido”, não vai muita distância.
Não obstante à agonia niilista em que está mergulhada a nossa sociedade tecnológica, continua muito viva em nosso coração a Palavra de Cristo: “Eu estou convosco todos os dias” (Mateus 28.29, porque Ele, sendo Deus, esvaziou-se de si mesmo (Filipenses 2.5-8), para nos dar vida e “vida em abundância” (João 10.10).
Esta vida é a vida em liberdade para reverenciar a criação de Deus, o que será possível depois que compreendermos o outro (humano) como santo, quando, então, conscientes do nosso papel a exercer nesta época, nos engravidarmos da esperança, que nos dará a certeza de não ser vã a nossa fé nem digna de lástima a nossa existência (1Coríntios 15.17-19).

A SANTIDADE DO OUTRO. O ONTEM PRESENTE

Qual é o homem? Melhor dizendo: Quem é o homem?
Quando contemplamos o homem diante de nós, contemplamos o passado que se torna presente, porque o homem que é hoje, é, o é, porque ontem foi. Mas, respondamos diretamente a indagação. Quem é o homem?

O poema começado

Heidegger respondeu que ele é apenas um poema começado de Deus. Mas o salmista conta que embora sejam admiráveis as obras de Deus, Ele fez o homem um pouco menor do que si mesmo, dando-lhe domínio sobre todas estas obras gloriosas (Salmo 8). O homem é o pequeno Deus que representa o Grande Deus.
Assim, ser imagem e semelhança de Deus, conforme mostra uma exegese de Gênesis 1.26, é ser o seu representante e vice-regente aqui na terra.

O ser em relação

Mas para o homem exercer o seu ministério de co-senhor do mundo, Deus viu que lhe era necessário outro ser com quem pudesse entrar em relação responsável. E por isso criou uma companheira idônea (Gênesis 2.18-19), porque o homem não se bastava a si mesmo.
Descarte fundamentalmente o homem é um ser-em-comunicação, em diálogo, e é muito mais relação do que ser. Nele residem a abertura e a possibilidade de encontro e enriquecimento.
Na obra de Hermann Hesse, romancista alemão deste século, encontramos a vivência clara desta realidade, a de o homem necessitar do outro, como fator de equilíbrio, Em todos os seus romances, as personagens só encontram a sentindo da vida, mesmo que seja o sentindo do não sentido, através de relações muito íntimas. È assim que temos os encontros da Siddarta e Govinda, por exemplo. Em nossa literatura e em nosso tempo, temos Clarice Lispector com sua “Aprendizagem”, que é a história que é a busca do, pela descoberta do outro.
Aliás, já Scheleiermacher almeja que sempre à experiência interior se seguisse a partilha com outros: “Solidão, as fontes de minha alma se esgotam e se detém o curso de meus pensamentos”. Também Bachelard disse que “um homem só é a pior companhia”.
Jacob Levy Moreno descreveu este encontro: “Olho a olho, face a face. E quando você estiver próximo, arrancarei seus olhos e os colocarei no lugar dos meus; você arrancará meus olhos e os colocará em lugares seus; então olharei para você, com seus olhos, e você, com seus olhos, e você olhará para mim com os meus”.
O fundamento deste encontro, deste conhecer, isto é, nascer com, deve ser o amor, o mesmo amor que levou Deus a encontrar-se com os homens, para nascer com ele e transformá-lo.

O Misterium Fascinosum

É preciso que, como Moisés, consideremos o outro como terra santa. Quando o quisermos tocar, devemos tirar os nossos sapatos (os sapatos pré-conceito). Não será este um dos sentidos que quer Paulo que descubramos quando nos aconselha a considerar os outros superiores a nós mesmos, uma vez que toda glória do homem está escondida em Cristo? (Colossenses 3.1-17).
O outro é terra santa. Certamente que não é o misterium tremendum, mas deve ser o misterium fascinosum, isto é, o mistério que está sempre diante de nossa face. E que mistério? De cada perspectiva que olhemos uma mesma face descobriremos um novo sentido.
Também João nos fala da necessidade do cuidado pelo outro, numa vida em comunhão, onde mais brilhe a luz de Cristo (João 1.2).
Acima de tudo, é preciso que ouçamos o outro, remetendo-nos para ele. Nós somos serviçais e súditos uns dos outros, pregou Lutero.
O nosso trajeto pelo caminho da descoberta do outro, para a reverência da vida, deve ser feito de mãos dadas, no exercício da diaconia da concórdia, em que a palavra fundamental não é eu mas tu.
Sartre disse que o outro é o inferno, pois que ele revela as nossas matérias. Não, nós não já fomos livres da miséria tremenda, para viver na dialógica da comunicação.
É na eternidade do silêncio que fala, cujo símbolo (respeito pelo outro) e dia-bolo (solidão do outro), que reside o sentido deste encontro, no qual se pode contar:

Você é meu claro enigma
Que me não custou a vida.
Você é o meu espelho côncavo
Onde me vejo em profundidade
E me posso conhecer
Não pelo que sou
Mas pelo que é você,
Não porque o nosso corpo seja um
Mas porque até o nosso espírito se funde no olhar
E contemplar do existir que parece
Estar fora.

Aconsciência da época. O hoje atual

Somos novas criações, somos os únicos neste mundo que podemos realizar este mistério de estar diante dos homens. E para amar os homens, é preciso conhecer os homens. E só entendendo o passado poderemos com-preender o presente. O homem é o nosso sujeito. Não podemos conhecê-lo se o queremos fazê-lo de costas para ele, como podemos conhece-lo de costas para ele, como se fôssemos, como denunciou um ex-marxista (Garaudy), uma “confraria de ausentes”.
Compreendamos o nosso tempo.
Digamos sim ou não ao nosso tempo, mas respondamos, que o nosso tempo anseia por respostas e somos nós os únicos que temos estas respostas.

A não-resposta. A resposta pela omissão

Durante 50 anos os cristãos portugueses disseram sim pelo silêncio ou pelo aplauso não contido, à ditadura salazarista. Enquanto Hitler massacrava os judeus aos milhões como ratos reles, os cristãos da Alemanha, inclusive batistas se fecharam nos tempos, ou mesmo cooperam como nazismo.
E o preço está sendo pago muito raro: como hoje se hoje que esta Europa vive já numa era-pós cristã, com tempos, com capacidade para um milhar de pessoas, recebendo dominicalmente não mais uma de dúzia de anciãos. Embora esteja nascendo um movimento Jovem, dinâmico, dentro e fora da igreja, tem-se, na sua maioria, a igreja como um simples estabelecimento para manter o status quo. E, então, esta igreja não serve. E o que não serve, em nossa sociedade, deve ser jogado fora.

O modelo de resposta. Os profetas de Israel

É preciso que os cristãos recobrem, neste tempo, a sua consciência profética. e o modelo certamente se encontra nos velhos e talvez abandonados profetas de Israel.
Num Jeremias, que, por estar com o rosto virado para a sua gente e no meio dela, pôde dizer: “Eu sou o homem que viu a aflição causada pela vara do furor de Deus. Ele me guiou e me fez andar em trevas e não na luz” (Lamentações 3.1-2). Mas, que por isto mesmo, pôde clamar: “Lembre-te, Senhor, do que nos tem sucedido; considera e olha para o nosso próprio opróbrio. A nossa herdade passou a estrangeiros. Órfãos somos sem pai, nossas mães são viúvas. A nossa água por dinheiro a bebemos, por preço vem a nossa lenha” (5.1-4). Tudo porque “caiu a coroa da nossa cabeça; ai de nós porque pecamos” (v.16).
Ou num Isaías, da segunda parte do livro que toma este nome, que, com o seu rosto diante do povo pode ver a agonia em que ele se encontrava e quando é chegado alívio pode gritar com voz forte a Jerusalém, “que já a sua milícia é acabada, que a sua iniqüidade está expiada e que já recebeu em dobro da mão do Senhor, por todos os seus pecados (Isaías 40.2). Ele pode antever, então, para o seu povo, um novo reino, sob o cetro do pastor que “apascentará o seu rebanho; entre os seus braços recolherá os cordeirinhos e os levará no seu regaço; as que amamentam ele as guiará mansamente” (40.12).
E é nesta trilha que seguiu Dietrich Bonhoeffer, na Alemanha, durante a ditadura nazi; enquanto seus irmãos silenciavam, ele preferiu a morte à omissão, mesmo sabendo que ele viria, como de fato aconteceu poucos dias antes da queda do III Reich. E na prisão assim mesmo, pode ele escrever: “não desejaria viver em outra época a não ser a nossa, ainda que me escute a felicidade”.
Onde estamos nós no cone do tempo? Isto sabendo poderemos amar os nossos semelhantes, ter um encontro com ele e lhes falar adequadamente num a linguagem que use um sinal audível, o sinal do testemunho.

A plenitude da esperança. Aurora nascente

A três coisas que permanecem, diz Paulo: a fé, o amor e a esperança. (1Coríntios 13.13). Pela fé, somos feitos novas criações. Pelo amor, vivemos e nos movemos dentre os homens. E será pela esperança que o nosso amor se susterá.
Ernest Bloch diz que o princípio da esperança é patrimônio universal de todos os povos. Mas a nossa esperança é coisa concreta, é uma ex-utopia que se tornou topia em Jesus de Nazaré.
Não nos deve interessar uma escatologia como doutrina das últimas coisas, mas sim uma escatologia de primeiras coisas, que nos fala do novo escaton que Jesus inaugurou com sua vida e com sua mensagem.
A nossa fé deve ser compreendida autenticamente como início de uma liberdade que o mundo antes não conhecia. A nova criação se realiza no horizonte da esperança, na dimensão de um futuro concreto, que nos liberta da escravidão do pecado. Quando falarmos em Deus devemos falar de um Deus do futuro, cuja vinda criadora traz a liberdade universal a despeito da miséria atual do ser humano (Garaudy).
Nesta perspectiva poderemos seguir para o alvo, esquecendo as coisas que para trás ficam (Filipenses 3.14). Engravidados do futuro, como possibilidade possível, com os pés fincados no alicerce da fé, poderemos realizar a missão para que somos vocacionados, a de anunciar que Reino de Deus está entre nós, portanto, arrependamos e creiamos nessa nossa boa nova (Marcos 1.15).
Não alvoroçaremos o mundo (Atos 17.6), com técnicas de evangelização. Não seremos instrumentos de transformação do mundo com métodos de terapia. Ao contrário, o mundo só sentirá o impacto da mensagem de Cristo quando nós, os pés e as mãos do seu Espírito, anunciarmos com o nosso testemunho que Ele é a liberdade que liberta; isto é: quando nós nos propusermos a bradar com coragem que o nosso senhor não é um Senhor morto, mas que Ele pode transformar os homens em vidas transbordantes (João 10.10).
Este mistério certamente se evidenciará quando, conscientes da santidade do outro e ouvidas as suas pró-postas às vezes desesperados, quais profetas autênticos, nos fizermos grávidos da esperança que nos sustentará o testemunho em verdade, que Cristo é a res-posta, e esperarmos que nEle reside a perfeita liberdade, e que, portanto, nEle a celebração da vida pela festividade, também é possível.
E cada um poderá cantar assim:

E eu estou indo ao encontro daquele que vem.
Ainda visto as roupas de sempre.
Ainda olho para as mesmas direções,
ainda piso nos mesmos caminhos,
ainda toco os mesmos corpos,
ainda digo as mesma palavras que os homens
mas eu espero ag/hora
o instante do encontro
para um abraço muito longo.
E o meu rosto será outro.
E o meu verbo será outro.
E o eu corpo será outro.
Pode ser que eu chegue primeiro
Que eu tenho muita pressa de chegar?

CELEBRAR A VIDA PELA FESTIVIDADE. O CÂNTICO DA ALEGRIA

A lei última do ser não é a razão, mas o amor. No mundo de hoje, Parmênides foi invertido: o não ser também pode ser, e o ser pode não ser. O espírito de Nietzshe paira sobre a cultura ocidental. Dele que ouvimos a frase tresloucada, ouvimos também em sua outra vertente “ser alegre é poder dizer bem-vindas todas as coisas”.
O mundo de hoje estará procurando redescobrir o sentido da festividade em sua vida. Assim é que em uma de suas músicas Jorge Mautner nada faz o tempo todo do que imitar gostosamente o bem-te-vi. Numa peça de teatro, GRUTA, tudo se passa num circo e o autor/diretor comentou:
— Olha, eu gosto do circo, ele representa a vida inteira em todas as suas faces.
Até Jesus Cristo começou a ser ré-interpretado. Assim temos um Jesus palhaço, do Godspell. E até um teólogo (Harvey Cox) propôs, num livro publicado em 1969 (no Brasil em 1975), uma nova imagem para o Filho do Homem, a do Cristo Arlequim.
Como o mundo está descobrindo o sobrenatural, está buscando também – e por que caminhos? – a alegria. Será que não estamos pregando um Cristo infeliz, do tipo Superstar, lânguido e efeminado, como no filme?
Nós somos criações e nós, efetivamente, podemos cantar ao Senhor mesmo em terra estranha (Salmo 126). Nós podemos exercitar em nossas vidas a totalidade da criação. A vida abundante que vivemos deve ser uma vida de alegria transbordante, em que o nosso ser baile nos caminhos de deus, dizendo, ao contrário de Françoise Sagan: “Bom dia, alegria”, vamos brincar

O jogo do ser. O Homo Ludens

O jogo é o símbolo do mundo, disse Heráclito. È a fascinação suprema. Assim, o logos é visto como uma dinâmica de jogo: livre, sem leis nem regras. A temporalidade do logos é uma criança deslocando pedrinhas para lá e para cá: a vida da criança.
Johan Huizinga vê o “homo faber” deslocando para o “homo ludens”. Para além do racional e do irracional, da lucidez e da loucura, as funções lúdicas instauram o mito e a poesia, enfim, o jogo criador mesmo.
Mas nós precisamos dizer ao mundo que o jogo que ele joga é um jogo que ilude e esconde o ser. Só as novas criações podem realmente jogar. Nós podemos brincar.
Adão foi supremo jogador, antes da queda. E cada um de nós não é o novo Adão?
Mas o que o mundo tem visto em nós são velhos Adões, porque nossos rostos se confundem com os seus desesperados a nos agarramos a ideologia, seja capitalismos ou comunismos, humanismos ou anti-humanismos, como se elas nos bastassem.
Nós podemos jogar. Enquanto o mundo trabalha (e trabalho vem do latim “trepalium” – instrumento de tortura) e chora nós praticamos obras livres e cantamos. Façamos como Davi que dançava com todas as suas forças diante do Senhor (2Samuel 6.14).
Deixem que digam que a nossa religião é o ópio do povo. Cantemos mais forte, que verão que temos a “Alegria dos homens”. Nós fomos atingidos pela graça de Deus.

A fantasia do ser. O Homo Phantasia

E por isto até fantasiar podemos. Fantasia é a faculdade de criar novas situações de vida radicalmente alternativas, como numa forma lúdica de alargar as fronteiras do futuro. Pela fantasia, podemos ir além do aqui e do agora, para refazer o passado e criar, antecipadamente, futuros totalmente novos, com Deus.
A fantasia suprema tornou-se em realidade suprema; para loucura dos sábios e escândalo dos religiosos, o Homem de Nazaré ressuscitou dentre os mortos. Aleluia.
Na literatura a fantasia está presente. Temos um Guimarães Rosa que recria todo o sertão dos “gerais” de Minas. Em Suassuna, temos toda uma história, a história do povo nordestino, recriada pelo vigor e pelo jogo da fantasia liberadora.
E até Apocalipse, de João, podemos ver a história como uma estrutura fantástica, uma abóbada fechada, em que a fantasia própria é a chave que a abre.
Que a nossa vida seja um trampolim de fantasia,

Porque o real habita
Num vasto mar de sonho
E emerge a cada instante
para escolher os próprios caminhos.

O baile do ser. O Homo Festivus

Brincar é entregar-se a uma espécie de fantasia, encenando para si o totalmente outro, é antecipar o futuro, é chamar de mentiroso o abominável mundo dos fatos que quer nos oprimir. No brinquedo, as realidades terrenas tornam-se assuntos passageiros, que logo sepultamos. No brinquedo nosso espírito novo se prepara para aceitar o inimaginado e inacreditável, onde a festa jamais acaba. È contemplar a realidade e ver, além dela, “o jogo maravilhosamente imaginado do amor eterno, jogo tão variado e cuidadosamente imaginado, como só o amor pode criar”.
Antecipamos a eternidade. Na alegria; a eternidade lampeja. “A eternidade se experimenta na alegria, já que a mais alta experiência temporal da alegria é a sua própria intensidade. A eternidade é in-finita nesta experiência, pois na alegria não se sabe “encontrar o fim”, pois se retira os ponteiros do tempo e se dá ao homem a possibilidade de viver o tempo mítico da permanente presença da reconciliação de tudo com todos.
Muitos, há, porém, que preferem a mordomia da tristeza, à mordomia do prazer. Muito de nós se fôssemos contemporâneos de Cristo, o chamaríamos também de beberrão e comilão (Mateus 11.19) e nos escandalizaríamos se ele, numa festa, transformasse água em vinho. (João 2.1-12).
Vivemos em comunidade em que somos convidados constantemente viver segundo a dimensão do prazer, que nos faça romper a estrutura monótona do dia-a-dia. Mas às vezes nos perdemos e nosso jogo, nossa brincadeira, não passa de uma forma de grosseira e desrespeito para com o outro.
Somos novas criações, fomos atingidos pela graça que nos salvou da tristeza da morte. Somos o homo ludens o homo phantasia, o homo festivus que a humanidade quer ver. Vamos reverenciar a vida celebrando-a festivamente, para que por estes sentimentos, nos antecipemos na arte do belo, no sublime jogo que nos faça conhecer a beleza de Deus.

ADMIRAR A VIDA, PELO BELO. O SORRISO DA GRAÇA

Falamos muito de ética, como que se dá a mensagem de cristo só restassem – como concluiu Albert Schweitzer no século passado – os seus ensinos morais. Estamos muito preocupados em forjar uma imagem do ser, certamente opaca e sem brilho ao invés de deixarmos o ser ser a imagem própria do ser.
Talvez seja por isto que nos amarramos tanto aos anacronismos, tornando essenciais os aspectos acidentais, com um medo terrível do novo, como se o novo fosse, em sua essência, subvertedor.

A totalidade do homem. O espelho estilhaçado

Como seres livres, nossa vida não pode ser regida pelos padrões, mas, ao contrário, reger os próprios padrões. Ou não somos os co-senhores do mundo?
Nós só podemos nos realizar no jogo criador, na admiração criadora da criação. Nisto está a verdade. E é nela que ética e estética se harmonizam.
Se concebermos a história da salvação como um jogo criativo da insondável e inescrutável sabedoria de Deus e se nos movermos no mundo como se nos movêssemos no pátio do recreio onde a glória do Senhor Altíssimo acontece, o sentido da vida em abundância se aclararia.
A ciência nos deu um mundo caduco. A arte em liberdade e verdade, pode torná-lo belo.
Entretanto, ainda hoje a arte cristã, infelizmente, não passa de uma apologética. Nossos artistas, nossos poetas, nossos escritores acabam por ser chafarizes de onde se abre uma torneira e se retira um programa para um dia especial.
A arte evangélica que se faz no Brasil hoje, talvez sem exceção, está, no mínimo, atrasada 55 anos.
A nossa arte não é a nomeação do real, não é a criação do irreal, é bula que prega, é quase sempre um sermão travestido. Não há experimentação. Só há lugar para a digestividade. E mesmo assim numa lentidão que mata. Três anos se gastam para se esgotar a tiragem de um bom livro de velhos poemas.
É tudo uma mensagem de uma graça sem graça.

A graça da salvação. A palavra sorridente

É preciso que escapemos de uma nova lei moral, perigo de que somos constantemente advertidos a que não caiamos pelo apóstolo Paulo.
A graça que nos atingiu, resgatou-nos para a capacidade de conquistar a cada dia o sorriso da paisagem, permitindo-nos entrar no jardim onde fomos um dia expulsos pela nossa dês-graça.
A misericórdia de Deus é a cor da alegria que nos tira da miséria e do domínio da tristeza. Fomos salvos depois de ouvirmos a Palavra sorridente: “Vinde a mim” (Mateus 11.28).
E o resultado deste encontro só pode ser beleza, a graciosidade, a bondade que se refletem em toda a criação.
A graça de Deus é a cor da sua graça de irromper na história, sem instaurar o caos e sem estar sob uma ordem, mesmo a sua ordem se Ele a tivesse.
Que cada um diga:

Não à graça que me torne escravo de uma
Nova lei moral
Não à graça que me constrange a amar.
Eu quero a graça de Deus
Que
Me torna livre para a liberdade
De sorrir
De ser capaz de ouvi-lo na viração do dia
Com toda a clareza
De amar até à morte
Para de novo co-nascer com ela
De cantar no crepúsculo, de chorar na manhã,
De gritar na noite que
A SUA GRAÇA ME TORNOU LIVRE!

 

A beleza de Deus. A glória dAquele que cria

Para falarmos numa graça bela, devemos primeiro falar num Deus belo. E esta, sem dúvida, não é uma forma tradicional de se falar do misterium tremendum et fascinosum.
A bíblia afirma que Deus é belo e constantemente os salmistas nos estão concitando à adoração do Senhor na beleza da sua santidade (1Crônicas 16.29; Salmo 27.9). E uma coisa pediu o salmista ao Senhor: que fosse morar na casa do Senhor todos os dias, “para contemplar a formosura do Senhor” (Salmo 27.4).
Moisés quis ver a glória de Deus e não pôde.
Nunca ninguém pôde contemplar a beleza de Deus. Moisés a viu pelas costas, isto é, viu parte da beleza, por trás das mãos do Senhor e escondido atrás de uma rocha ficou com a pelo do seu rosto resplandecendo e os filhos de Israel tiveram medo de se aproximar dele, ao ponto de necessitar de um véu para que o povo o pudesse ouvir. (Êxodo 33.18-23, 29.35).
Quando Deus criou o mundo, viu que toda a sua obra era muito bela (Gênesis 1). E em todo o Velho Testamento fala-se muito no KABOT de Iavé, ou seja, na sua glória terrível porque escreveu Rilke, o poeta, que “o belo não é outra coisa senão o começo do terrível”. E nós podemos inverter: “O terrível não é outra coisa senão o principio do belo”. Barth, o único teólogo a falar de Deus como belo, disse que “não podemos desconhecer que Deus é glorioso no modo como irradia alegria e que é tudo o que é exatamente em sua beleza”.
Da mesma maneira, temos no novo testamento o termo DOXA que significa também a glória divina, esplendor divino, poder divino e resplendor visível de Deus. Assim, a palavra é usada para expressar o modo divino de ser.
O mesmo termo é empregado pelos sinóticos para o Jesus ressuscitado. Deus mostra sua glória nos débeis, sua honra nos abatidos e seu esplendor no crucificado. No rosto do Mestre resplandece a glória de Deus.
Na vitória sobre a morte está a formosura de Cristo, a beleza de Deus. Em Cristo ressuscitado está a formosura do Filho e a beleza do Pai. Com esta vitória assegurou-se também a nossa. Com esta vitória planificou-se a nossa liberdade de rir da morte, como Paulo: “Onde está, oh morte a tua vitória? Onde está oh morte o teu aguilhão?” (1Coríntios 15.55).
A verdadeira glória de Deus é o seu caráter e se revela em Jesus Cristo: no Senhor de Belém, na sua presença criadora, renovadora, libertadora, reside a raiz de nosso ser e nele está a fonte de nossa liberdade.

CONCLUSÃO

Conhecemos a verdade que nos liberta e nos torna novas criações. Vivemos agora uma alegria transbordante em Deus. Podemos jogar. Podemos fantasiar. Podemos bailar. Podemos festejar. Mesmo que nossa celebração o seja em prolepse, isto é, em antecipação, daquela grande festa onde o vinho jamais acaba e onde gozamos sempre da presença do Senhor.
Conhecemos a verdade que nos liberta e nos torna novas criações. Vivemos agora uma luz que se irradia por todo nosso ser. Podemos reverenciar a vida e ver no outro a terra santa que não podemos tocar a não ser descalços. Podemos enxergar nas trevas e apontar a Luz ao mundo. Enquanto isso aguardamos aquele que vem ao nosso encontro para um abraço que durará por toda a eternidade.
Conhecemos a verdade que nos liberta e nos torna novas criações. Vivemos agora num reino instaurado pela graça divina. Podemos então criar, bailar, cantar, enfim viver a nova vida para a qual fomos chamados graças a uma graça de Palavra Sorridente que nos tornou verdadeiramente livres.
Sejamos homens à imagem e semelhança de Deus. Captemos sua formosura. Sintamos a sua cor. Experimentemos sempre a graça daquele que cria.

Oremos assim:
“Senhor, instaure em nós, novos libertos por uma graça criadora, a admiração pela sua beleza e que esta admiração fundamente a nossa reverência pelos seus filhos e impulsione a nossa celebração festiva de existência que tu tornaste livre. Em nome daquele com quem um dia cantaremos a nossa liberdade em pátria própria, oramos. Amém.”

ISRAEL BELO DE AZEVEDO
(Pregado na capela do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil, no início dos anos 70)