RECORDANDO A REFORMA PROTESTANTE DO SÉCULO 16

RECORDANDO A REFORMA PROTESTANTE DO SÉCULO 16

Aquilo que nós cremos é primeiro um conjunto cristão de doutrinas. Os católicos romanos (fora e dentro do Brasil), os católicos ortodoxos (russos, gregos, árabes e outros) e os protestantes históricos (luteranos, episcopais, presbiterianos, congregacionais, batistas, metodistas, e os neoprotestantes (pentescostais, como a Assembléia de Deus,  e neopentecostais, como a Universal do Reino de Deus) temos mais muitos em comuns do que imaginamos.

NA GÊNESE DOS TEMPOS MODERNOS
Uma pergunta que os historiadores do pensamento se têm feito é se o protestantismo pode ser considerado um fenômeno moderno ou ainda medieval. Em outras palavras, seu ideário diz respeito a perguntas modernas ou antigas? A pergunta se aplica à própria natureza do humanismo/renascentismo, cuja discussão na história do pensamento precisa ser recordada, mesmo que em linhas gerais.
Uma primeira resposta exige uma outra pergunta: há ruptura em história? Aceito o pressuposto diltheyano de que “uma das leis da história da religião” é que “somente na continuidade histórica e na comunidade religiosa a fé humana tem uma vida forte e um desenvolvimento contínuo”, [DILTHEY, Wilhelm. Teoria de la concepcion del mundo. Trad. Eugenio Ímaz. México: Fondo de Cultura Econômica, 1978, p. 17.] a pergunta acerca da modernidade ou medievalidade da proposta humanista-protestante perde sua razão de ser.
Neste sentido, a crítica de Ernst Troeltsch e Rubem Alves, de que a preocupação última do protestantismo é responder a uma pergunta medieval (é possível a certeza da salvação?), torna-se vazia. A proposta da Reforma teria que necessariamente estar próxima da pergunta medieval, pelo simples fato de suas raízes estarem fincadas na Idade Média. No protestantismo e no humanismo, ainda estão presentes e convivem com visões medievais.
Descartado o estabelecimento de uma relação do tipo causa e efeito, fica evidente que os corolários básicos da fé protestante (solus Christus, sola fide, sola Scriptura são uma espécie de atualização do espírito humanista. No entanto, resta saber se a prática destes princípios resultou completamente reformada, vale dizer, revolucionária em relação ao período histórico anterior.
Há alguns pontos de aproximação. Não há dúvida de que o protestantismo é humanista no sentido de que representou uma volta a uma fonte clássica, no caso, a Bíblia. Há até uma certa radicalidade nesta escolha: os protestantes têm uma incontida preferência pelos livros do Antigo Testamento, inconscientemente considerado a fonte das fontes. A opção se demonstra até pelos nomes dados aos filhos, a maioria tirada da personália veterotestamentária.
Há também pontos que os afastam. Um deles: o humanismo é radicalmente otimista em relação ao homem, enquanto a visão reformada (batista, inclusive) é fundamentalmente pessimista. [NIEBUHR, Reinhold. The nature and destiny of man; a christian interpretation. New York: Charles Scribner’s Sons, 1951, v. 2, p. 150.] O agostinianismo radical não dá espaço para o desenvolvimento de qualquer tipo de pelagianismo. Posteriormente, no protestantismo de princípios (em oposição ao de doutrinas) a perspectiva de Pelágio foi ganhando corpo.
É sob este pano de fundo teológico que deve ser compreendido o problema da certeza da salvação. A preocupação estava no cerne da meditação de Lutero e de Calvino, mas por caminhos diferentes. A irrupção da graça em Lutero era de tal forma que não sobrou qualquer lugar para o mérito humano. Em Calvino, a doutrina da predestinação, conquanto radical e garantidora da certeza da salvação, oferecia um espaço para algum tipo de especulação: de que modo o crente pode saber que foi eleito para ser salvo? A prova era a vida da pessoa posterior à sua conversão.
De qualquer modo, em relação ao período medieval, a formulação protestante é uma resposta não-sacramental, porque centrada na noção de dignidade pessoal do indivíduo. Nisto, a proposição é moderna.
A própria Renascença não teve a radicalidade que prometia. Ela navegou sem conflito pelas águas de um neoplatonismo difuso. Além disso, não teve pejo em reafirmar o idealismo, retomado visceralmente por Hegel, na mesma tradição.
Se por moderno se entende a passagem do homem para uma visão autônoma da história contra qualquer tipo de heterodeterminação, seja ela teonômica, eclesionômica ou hieronômica, a conclusão preliminar a que se pode chegar é que o protestantismo vive uma tensão.
A Renascença e a Reforma racharam a rocha. Depois disto, cada movimento seguiu seu próprio curso. O caminho da Reforma vem sendo plural. Os batistas são uma de suas singularidades.
Na Europa, houve muitas Reformas. A luterana passou ao largo, por razões teológicas e geográficas, do calvinismo. A influência só viria mais tarde, com a irrupção do movimento pietista. Por igual, a Reforma anabatista, que não gerou nenhuma grande denominação, porque acabou derrotada, também não bebeu de Calvino. A Reforma inglesa inicialmente não era propriamente uma Reforma, porque a teologia continuava mais católica do que protestante. Até hoje se discute se o anglicanismo é protestantismo ou um paracatolicismo. O desenvolvimento posterior do puritanismo, no entanto, foi uma construção mental do calvinismo, tanto na sua cosmologia quanto na sua teoria política. Quanto ao presbiterianismo, ele é a própria carne do calvinismo.
Os batistas são um caso especial, porque, herdeiros do puritanismo, tiveram pouco a ver com ele e muito menos ainda com o anglicanismo. No entanto, eles são o exemplo da tensão entre calvinismo e anticalvinismo vivida pelas diversas denominações. A dificuldade, na verdade, nunca foi resolvida. O calvinismo não afirmado foi sempre vivido na prática. Basta ler os manuais batistas de teologia.
Ainda na Europa, cedo se desenvolveu um outro tipo de protestantismo, mais interessado nos princípios protestantes e menos na expansão das igrejas. Se o protestantismo de doutrinas estava pouco interessado no método da correlação (no sentido tillichiano), o de princípios estava mais voltado para as implicações culturais da fé. Por isto, esses protestantes, teólogos e filósofos, queriam uma Reforma que fosse além e não se tornasse apenas uma contrafação do catolicismo.
Esta tendência permaneceu por entre as frestas das igrejas e do protestantismo de princípios. Na verdade, o protestantismo de princípios se desenvolveu no interior do protestantismo denominacional. O resultado do seu trabalho resultou numa espécie de reconciliação entre religião e ciência, entre religião e filosofia, entre religião e economia. Todo o movimento iluminista faz parte deste movimento.
O protestantismo de princípios se pretende uma crítica constante à Reforma do século 16. Paul Tillich a critica por ter traído o “princípio protestante”, entendido como “uma expressão da vitória sobre as ambigüidades da religião, sua profanização e demonização”. Só este princípio, que não se restringe a nenhuma igreja, pode enfrentar a “auto-elevação trágico-demoníaca da religião e liberta a religião de si mesma para as outras funções do espírito humano, ao mesmo tempo em que liberta essas funções de sua auto-reclusão contra as manifestações daquele que é último”. [TILLICH, Paul. Teologia sistemática…, p. 571.]
Na verdade, o que se pretende é uma religião emancipada tanto da autonomia quanto da heteronomia.
Os Estados Unidos foram um solo fértil para os dois tipos de protestantismo. Se o denominacionalismo praticamente aí se realizou como expressão, o princípio protestante foi transformado num novo tipo de religião civil. Nesse país, os dois protestantismos se fundiram, já que as denominações se tornam a religião da maioria. Evidentemente, sobreviveu algum tipo de protestantismo de princípio, mas à margem, porque absorvido pela religião civil. Como no Brasil, a população protestante sempre foi minoria, o protestantismo de doutrinas nada teve a ver com a religião civil, uma proposta aqui católica.
Assim, nos EUA, são protestantes a formação das colônias, a independência do país, o ensino fundamental e universitário, o desenvolvimento tecnológico, a conquista do mercado mundial. No Brasil, o protestantismo não teve nada a ver com nenhum dos grandes dramas do país.
O próprio desenvolvimento das denominações está ligado aos lugares que tomaram nestes movimentos da história norte-americana.
Como o protestantismo brasileiro veio dos EUA, ele teve que traduzir aqui as categorias de lá. O conceito de religião civil, evidentemente, não pôde ser traduzido. A experiência no campo da educação foi repetida aqui, mas sem o mesmo fôlego. Não se pode esquecer: aqui o protestantismo foi minoria e como tal se comportou.
Predominou aqui o protestantismo de doutrinas. Alguns teólogos, como Erasmo Braga (este menos, pelo seu próprio tempo) e Rubem Alves (este mais, pelo tempo e pela sua própria formação intelectual), para mencionar dois exemplos, pensaram na categoria de protestantismo de princípios, mas foram exceção.

OS BATISTAS E A COMPETÊNCIA DO INDIVÍDUO
No início do século 20, um batista norte-americano, E.Y. Mullins, escreveu apologeticamente que o que distingue os batistas é a sua “doutrina da competência da alma em matéria de religião, em subordinação a Deus”, ênfase que “une e concentra em si” três princípios da modernidade: o princípio intelectual da Renascença, sobre a “capacidade e direito do homem” para o exercício da liberdade”; o “princípio anglo-saxônico da liberdade mental”, e o princípio reformado da justificação pela fé.
Segundo esse mesmo autor, os batistas têm transformado e modificado estas tendências, dando-lhes estruturas mais nobres e tornando-as mais frutíferas. Ao insistir na “competência religiosa do homem”, os batistas têm, a um tempo, “livrado a liberdade intelectual de todas as espécies de repressão humana”, e, a outro, guiado essa liberdade a meta do homem, que é alcançar a Inteligência por trás do universo visível. É o que diz Mullins:
“A intelectualidade humana iluminada pela intelectualidade divina, eis o ponto de vista batista. Defendendo o individualismo, têm livrado o princípio anglo-saxônio de uma tendência desumana e egoísta, definindo-o como um impulso moral e religioso sob a direta tutela do guia moral da humanidade — Jesus Cristo. Têm, outrossim, levado o princípio da Reforma, da justificação pela fé, para além dos sonhos de Lutero e dos outros reformadores. Têm apoiado tudo o que está implícito no princípio da justificação.
A grande luta pela liberdade religiosa e pela separação entre a Igreja e o Estado, que os batistas iniciaram, tem sido o desabrochar coerente de um ideal maior do que o que Lutero acariciou, o qual tem ajuntado, de forma a constituir uma perfeita unidade, todos os tesouros morais e espirituais da própria Reforma. (…)
Este princípio da competência da alma, subordinado a Deus em assuntos religiosos, tem (…) a sua oculta filosofia. (…) O princípio da competência presume que o homem é feito à imagem de Deus, e que Deus é uma pessoa apta para se revelar a si mesmo ao homem, o que constitui o teísmo cristão. O homem tem capacidade para Deus, e Deus pode comunicar-se com o homem. Esta filosofia (…) é a base de todo o movimento cristão. A encarnação de Deus em Cristo é a grande prova histórica que temos disso.” [MULLINS, E.Y.  Os axiomas da religião; uma nova interpretação da fé batista. Tradução de J.W. Shepard. 3ª ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1955, p. 66, 67.]

(Os parágrafos deste encarte foram retirados de A CELEBRAÇÃO DO INDIVÍDUO)

Israel Belo de Azevedo


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