Eu posso levar desaforo para casa
(Mateus 5.38-42)
(Em busca da mente de Cristo)
Como ler as seguintes palavras de Jesus?
“Vocês ouviram o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente’.
Mas eu lhes digo: Não resistam ao perverso. Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra.
E se alguém quiser processá-lo e tirar-lhe a túnica, deixe que leve também a capa.
Se alguém o forçar a caminhar com ele uma milha, vá com ele duas.
Dê a quem lhe pede, e não volte as costas àquele que deseja pedir-lhe algo emprestado”.
(Mateus 5.33-42)
ENTENDENDO OS ENSINOS DE JESUS
Estará Jesus propondo uma terra sem lei e sem justiça?
Estará Jesus declamando poemas para as multidões?
Será Jesus um mestre que não conhece a realidade humana?
Estarão os cristãos de hoje desobrigados a cumprir instruções já superadas?
Antes de acharmos que estas palavras saíram de algum gabinete de um pastor alienado, vamos compreendê-las à luz do seu tempo.
A expressão “Olho por olho e dente por dente” (verso 38) vem do Antigo Testamento e tinha o objetivo de promover uma justiça retribuitiva, em lugar de uma vingança desenfreada, como a de Lameque, que disse:
“Ada e Zilá, ouçam-me; mulheres de Lameque, escutem minhas palavras: Eu matei um homem porque me feriu, e um menino, porque me machucou. Se Caim é vingado sete vezes, Lameque o será 77”. (Genesis 4.23-24)
A instrução de Levítico 24.17-20 é bem ilustrativa deste novo ideal:
“Se alguém ferir uma pessoa ao ponto de matá-la, terá que ser executado. Quem matar um animal fará restituição: vida por vida. Se alguém ferir seu próximo, deixando-o defeituoso, assim como fez lhe será feito: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente. Assim como feriu o outro, deixando-o defeituoso, assim também será ferido” (Cf. Êxodo 21-23-25 — “Se houver danos graves, a pena será vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, contusão por contusão”).
Jesus propõe um novo modelo de vida, cujo sentido geral é a não resistência. Depois do enunciado geral (“não resistam ao perverso”), Jesus ilustra sua tese com quatro exemplos.
1. O primeiro é: “Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra” (verso 39) — Na cultura do Oriente Antigo, tocar na face direita de outra pessoa era uma ofensa insuportável, como a do jornalista que tentou acertar o rosto do presidente George W. Bush, no Iraque. [IMAGEM]
A gravidade do gesto perverso não está na sua dimensão física, mas no aspecto moral. É o insulto em si mesmo, não o dano ao corpo, que importa e fere. O insulto não é para ser revidado.
Quem tem a mente de Cristo não deve responder ao insulto com outro insulto, mas resistir pacificamente ao insulto.
2. O segundo tem a ver com disputas judiciais: “se alguém quiser processá-lo e tirar-lhe a túnica, deixe que leve também a capa” (verso 40). — A túnica era a roupa de baixo, que os mais pobres não tinham; a capa era a de fora, que todos tinham. No caso de um julgamento, o acusado nunca seria obrigado a dar a sua roupa para pagar uma dívida.
Segundo a legislação hebraica, no caso de ter havido um empréstimo em que a garantia foi a roupa do corpo, esta roupa não poderia ser tomada, no caso de a dívida não ser honrada pelo tomador (Cf. Êxodo 22.26 — “Se tomarem como garantia o manto do seu próximo, devolvam-no até o pôr-do-sol, porque o manto é a única coberta que ele possui para o corpo. Em que mais se deitaria?).
Além disso, havia no primeiro século da era cristã uma prática muito comum, a de se levar inúmeras disputas aos tribunais. Até mesmo entre os cristãos havia este costume, que o apóstolo Paulo reprova: “O fato de haver litígios entre vocês já significa uma completa derrota. Por que não preferem sofrer a injustiça? Por que não preferem sofrer o prejuízo? Em vez disso vocês mesmos causam injustiças e prejuízos, e isso contra irmãos!” (1Coríntios 6.7-8).
Quem tem a mente de Cristo deve tratar com generosidade até mesmo os perversos que lhe causam prejuízo. Um cristão pode unilateralmente abrir mão de seus direitos. Ele não está obrigado a fazê-lo, mas pode fazê-lo.
3. O terceiro tem a ver uma prática antiga, chamada “corveia”: “Se alguém o forçar a caminhar com ele uma milha, vá com ele duas” (verso 41). — Na antiguidade e até ao período medieval, havia situações em que o Estado ou pessoas poderosas perversamente exigia(m) serviços gratuitos. O serviço militar obrigatório é um tipo de corveia. Simão o cireneu foi obrigado a cometer uma corveia, levando a cruz de Cristo (Mateus 23.32).
O que Jesus propõe é que, se uma autoridade romana exigisse algo abusivo, legal ou ilegalmente, de um seguidor de Jesus, este deveria obedecer. Isto não implicava em concordar com o sistema, mas em responder com mansidão à violência dos perversos.
4. O quarto exemplo parece se referir à caridade, que se espera de todo cristão, mas, pelo contexto, está ligado também ao tema da resistência pacífica: “Dê a quem lhe pede, e não volte as costas àquele que deseja pedir-lhe algo emprestado” (verso 42). — Pessoas perversas podem forçar outras pessoas a lhe darem algo que não merecem. O pedido aqui não um pedido de esmola, algo normal, mas de uma exigência violenta. Nos termos de Lucas 6.30, este “pedir” é tirar do outro o que lhe pertence.
Segundo Jesus, o que foi retirado, mesmo de modo perverso, não deve ser tomado de volta, pela força.
APLICANDO OS ENSINOS DE JESUS
Que fazer com estas palavras de Jesus? São quatro versos paralelos, sendo a instrução mais conhecida a do verso 39.b (“Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra”).
A proposta de Jesus não ignora a realidade do coração humano; antes, propõe a sua conversão, ao pondo de os inimigos se sentarem à mesa. A ética de Jesus é utópica, aos nos convidar a forçar nossos limites na produção da paz, esse escasso bem.
Dos ensinos de Jesus, pelo menos três princípios gerais emergem.
1. As relações humanas não devem ser orientadas pelo princípio da justiça, mas pela disposição à prática da bondade.
A idéia da reparação (“Olho por olho e dente por dente”) é justa. Quem feriu deve ser ferido. Quando olhamos para a história, a macro-história e a micro-história, notamos que, ao instilar o medo, a idéia da reparação funciona apenas parcialmente, porque não alcança o coração humano.
O “dente por dente, olho por olho” se assemelha à paz armada, em que um se arma para se defender. No entanto, o armado atacará quando se achar mais forte que o outro, mesmo que não tenha sido atacado.
Nas relações interpessoais, a solução do tipo “dente por dente, olho por olho” preconiza uma vingança que seja proporcional. Como as coisas são mais complexas, o Estado toma para si a tarefa da reparação e cria um sistema judicial, para tornar mais “objetiva” a reparação. No entanto, quem elabora as regras? É tristemente conhecida a resposta: os que estão no poder para poderem continuar no poder.
Talvez eu esteja exagerando, porque estou com os olhos na Alemanha nazista, que dizimou, “nos termos da lei”, milhões de judeus, por serem considerados uma ameaça. Tenho diante dos olhos também os séculos de dominação dos brancos sobre os negros nos Estados Unidos, sempre “nos termos da lei” e com a proteção do Estado. E não foi diferente no Brasil.
É, então, sem valor o sistema de justiça? Claro que não. Neste sentido, trata-se de um mal necessário para diminuir o mal que é intrínseco ao ser humano. Por isto, o sistema deve ser valorizado, fortalecido e aprimorado.
A ética de Jesus não nega o sistema judicial, quando justo, mas vai além. A ética de Jesus, quando convida à bondade, tem o potencial de eliminar o sistema judicial, o que é uma utopia no plano social, mas pode ser realizado no plano individual.
2. Quando estalam os conflitos nas relações sociais, deve-se procurar vencer o mal com o bem, porque é impossível vencer o mal com o mal (como Paulo escreve, captando a essencial do ensino de Jesus: “Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem” — Romanos 12.21).
O uso do mal contra o mal (uma espécie de atualização do “dente por dente, olho por olho”) não é propriamente uma vitória. Vejamos o caso da relação entre israelenses e palestinos nas últimas décadas. Usando força descomunal, os israelenses agem e/ou reagem a ataques palestinos. Qual é o resultado? Justiça? Não. Paz? Não. Ódio? Sim, ódio, ódio,ódio. Quem venceu? Ninguém!
Quem reage com violência à violência do outro é igual ao violento. A violência é sempre uma ação de negação do outro.
O resumo do ensino de Jesus está posto na sua recomendação: “Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra” (verso 39).
Funciona?
Volto ao nazismo alemão e ao racismo norte-americano.
Como o nazismo terminou? Com o uso da força, mas não da violência pela violência. Os nazistas foram depostos, presos e julgados, tendo tido direito à defesa. Não houve uma matança indiscriminada. A justiça não ficou nas mãos dos ofendidos, mas foi administrada por um sistema judicial “impessoal”, sem revanche.
Como o racismo terminou? Na verdade, não terminou, mas foi extraordinariamente contido pela força da resistência pacífica, concebido por líderes como Martin Luther King Jr. Ele e outros, que usaram o princípio da resistência não violenta ensinada por Jesus e posta em prática em muitos lugares como na Índia de Gandhi, obtiveram mais vitórias que os usuários (como Malcolm X) da violência contra a violência. A propósito, todos estes seguidores de Jesus (Henry Thoureau, Lev Tostoi, Martin Luther Kingir Jr.) concordam com Gandhi que a resistência é pacífica, mas não é passiva contra as injustiças.
Talvez não tenhamos grandes dificuldades em aceitar o princípio da resistência pacífica quando aplicado coletivamente, mas é provável que tenhamos imensas reservas quando somos convidados a aplicá-lo nas nossas relações interpessoais? Aceitamos, com Lev Tolstoi, que “só há uma maneira de acabar com o mal: é responder-lhe com o bem”?
Coloquemos o problema em forma de dilemas.
2.1. Deve um cristão reagir a um assalto?
Todo ser humano tem o direito de se defender, para preservar sua vida. Este é um princípio universal e deve valer como valor maior.
No caso de um assalto, deve entrar em cena também a sabedoria: a reação trará liberdade ou morte? Os conselhos das polícias no mundo inteiro indicam que não se deve reagir a um assalto porque nunca se sabe o que o assaltante, sozinho ou com comparsas, pode fazer. É preciso sabedoria para avaliar o mal menor. Perder um bem é um mal menor.
O terceiro princípio é que a defesa, diante do assalto, deve ser apenas defesa, não vingança, não destruição do assaltante. Se ele for imobilizado, por exemplo, deve ser entregue às autoridades policiais e não destruído (mesmo que na avaliação comum, não fique preso o tempo que deveria). Nada de “dente por dente, olho por olho”.
Dirão alguns: isto exige sangue de barata. Não, isto é uma exigência para quem procura ter a mente de Cristo. É por que o apóstolo Paulo recomenda para que oremos “para que sejamos libertos dos homens perversos e maus, pois a fé não é de todos” (2Tessalonicenses 3.2).
2.2. Deve um cristão litigar sua causa no tribunal?
Ao tempo de Jesus, as pessoas iam para um tribunal por qualquer coisa.
Vejamos o caso da justiça trabalhista. Há uma cultura segundo a qual um empregado sempre ganha alguma coisa quando leva sua empresa a juízo.
Um cristão deve ir a um tribunal se entende que o seu direito foi realmente e intencionalmente ferido, não para levar alguma vantagem. Um jornalista cristão foi contratado por uma universidade para uma função que, segundo a lei, devia ser desenvolvida numa jornada diária de seis horas. No entanto, durante anos ele trabalhou oito horas diárias. Quando recebeu um convite para trabalhar em outra empresa, pediu para ser dispensado a fim de levantar seu Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). A empresa não o fez. Então, ele se lembrou que trabalhou mais que a jornada permitida. Era o caso de ir ao tribunal e ganhar um bom dinheiro. No entanto, ele se perguntou: a universidade agiu de má-fé comigo? Ele concluiu que não, porque nem ele mesmo se lembrou que sua jornada deveria ter sido menor. Ele não processou seu empregador, embora pudesse, porque entendeu que não seria justo.
O mesmo jornalista, contratado por outra universidade com um mandato, segundo os estatutos da organização, teve este mandato interrompido. Ele procurou a direção, pedindo a indenização pelo período do seu mandato. Foi aconselhado que buscasse seus direitos na justiça. E ele o fez.
Tem havido também, por exemplo, a cultura de se ir a justiça em busca de reparação por dano moral. Um cristão que foi REALMENTE prejudicado no plano moral deve buscar a justiça em busca de justiça. Um cristão não deve ir á justiça para levar vantagem, usando de brechas na lei ou falando meias-verdades.
É claro que um cristão deve viver de modo digno, em todos os seus relacionamentos, de modo a não dar razão para ninguém o levar ao tribunal para buscar o que é justo. Não há dúvida que “é melhor sofrer por fazer o bem, se for da vontade de Deus, do que por fazer o mal” (1Pedro 3.17).
No caso de desavenças no interior de uma igreja (comunidade local ou denominação religiosa), o apóstolo Paulo legislou claramente sobre o assunto, quando escreveu aos coríntios: “O fato de haver litígios entre vocês já significa uma completa derrota. Por que não preferem sofrer a injustiça? Por que não preferem sofrer o prejuízo? Em vez disso vocês mesmos causam injustiças e prejuízos, e isso contra irmãos! (…) Portanto, se vocês têm questões relativas às coisas desta vida, designem para juízes os que são da igreja, mesmo que sejam os menos importantes”. (1Coríntios 6.7-8, 4)
O que o apóstolo Paulo diz é que, infelizmente, podem surgir desavenças no interior da igreja (e mesmo no da família carnal). O que devemos fazer? Devemos resolver o assunto internamente, mesmo que isto traga prejuízo. Além de evitar o escândalo (1Coríntios 6.6), trata-se de sabedoria. Muitas vezes, perder é melhor do que ganhar. Um cristão pode abrir mão de seus direitos.
Imaginemos a seguinte situação. Os pais deixaram bens, para serem divididos entre os filhos. Os filhos se desentendem, algumas vezes porque uns querem passar a perna em outros. Rebenta o conflito, resolvido no tribunal, que faz justiça. No entanto, alguns irmãos não se falam mais. Os bens separaram os filhos e, por extensão, os netos? Valeu a pena?
2.3. Deve uma mulher vítima de violência (moral ou física), em casa ou fora de casa, sofrer calada?
Aplica-se nestas situações o princípio da resistência pacífica?
O universal princípio de autodefesa continua válido, mesmo que a violência seja praticada pelo cônjuge. Por amor a Deus e por amor a si mesma, uma mulher agredida deve se defender.
Não havendo mais diálogo e nem disposição de mudança por parte do agressor, a mulher tem que preservar sua vida. Para isto, deve-se aconselhar e até buscar a proteção da polícia. Em todos os seus atos, porém, não deve ser levada pelo ódio, que a tornará igual ao agressor e até poderá agredir também.
O silêncio diante da agressão prepara o território para que os violentos ampliem seu leque de perversidades e o número de suas vítimas.
Há notícias de um médico paulistano, especialista em fertilização, que foi preso por ter abusado (ou tentado abusar) sexualmente de suas clientes. Se são verdadeiras as acusações, é possível que muitas vítimas não seriam vítimas se o homem tivesse sido denunciado antes.
Denunciar um agressor é uma forma de fazer o bem.
2.4. Pode um policial ou militar cristão matar?
Há muitos anos preguei sobre o mandamento “Não matarás”, um absoluto de Deus. Ao final, um jovem militar me perguntou sobre quem mata numa guerra. Recentemente, outra pessoal, policial, fez a mesma pergunta, que demanda uma resposta diante também do ensino de Jesus. Numa guerra, um militar recebe uma ordem em defesa da sua pátria.
Está ele desobrigado de obedecer a Deus para obedecer aos homens?
O princípio (“Não matarás”) continua válido. Guerra é algo sempre horroroso. Até as guerras justas são horrorosas. O militar cristão deve ponderar se a guerra é justa; se, no seu entendimento, a guerra for injusta, tem o direito de não ir à guerra, não importa o preço a ser pago. Se a guerra for justa, o militar cristão deve julgar se a ordem recebida para matar é justa. Se receber, por exemplo, a ordem de eliminar uma aldeia de civis desarmados, ele deve desobedecer, não importa o preço a ser pago.
No caso de um policial em defesa da sociedade, os princípios são os mesmos. Sua profissão é válida e necessária.
Um policial cristão deve ser um promotor da paz, não um derramador de sangue. No caso de receber uma ordem injusta, ele deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para não cumpri-la. Se a ordem for justa, mesmo implicando em matar, deve cumprir o seu dever. Se um policial, por exemplo, faz parte de uma equipe de elite e, depois de postado diante de um seqüestrador, recebe a ordem de matá-lo para salvar o/a refém, ele deve obedecer e fazer bem o seu trabalho. É o que toda a sociedade espera. O que a sociedade não espera é que o policial faça justiça com as próprias mãos, integrando, por exemplo, algum grupo de extermínio ou usando suas insígnias e armas para ameaçar ou eliminar pessoas.
3. Nós devemos tratar com generosidade a todas as pessoas, até mesmo aquelas que nos causam prejuízo.
Há pessoas que põem em prática este ensino. Uma dessas deu trabalho esporádico a uma pessoa, mas não lhe assinando a carteira, como devidamente combinado. Algum tempo depois, essa pessoa lhe moveu um processo, encerrado com um acordo. Decorrido mais algum tempo, essa pessoa, em dificuldade financeira, pediu-lhe trabalho de novo e o recebeu.
Isto é tratar com generosidade as pessoas. Isto é aceitar o insulto sem revidar. Isto é ter a mente de Cristo.
Ser justo é retribuir. Qualquer um faz isto. Ser generoso é contribuir com quem não merece. Isto é ter a mente de Cristo.
Nesta jornada, precisamos revisar nossos corações e nossas práticas.
Eis do que somos capazes: uma pessoa ocupava no metrô um banco destinado a pessoas idosas ou portadoras de necessidades especiais. Numa estação, entrou uma dessas pessoas. Quem estava assentado fez de conta que estava dormindo. De vez em quando, abria os olhos. Só os abriu eu definitivo quando viu que a pessoa que precisava estar naquele banco tinha descido. O egoísmo faz com que pessoas necessitadas sejam ignoradas.
CONCLUSÃO
Termino com uma pergunta que exige uma autoavaliação.
Como você reage quando é contrariado?
Como você reage quando os seus valores são contrariados?
Você é contra o aborto e sabe que há uma clínica na sua cidade praticando abortos clandestinamente. Você fica indignado. Então, denuncia-a a polícia. A polícia não fez nada. Em lugar de continuar protestando, você faz justiça com as próprias mãos. Reúne outras pessoas e invade a clinica destruindo tudo o que encontra.
Isto já aconteceu nos Estados Unidos. Para que a justiça seja feita, mata-se. Houve um caso mais ou menos recente. Um médico cuja clínica praticava abortos estava num culto, como fazia todo domingo, quando, ao entrar no templo, foi fuzilado e morto. Justiça demais mata.
Em 2009, uma estudante foi linchada moralmente e poderia sê-lo fisicamente numa universidade. Numa noite de aula, ela colocou um vestido considerado exagerado e provocante e foi para as aulas. A notícia correu pelo prédio. Os alunos e alunas foram saindo das salas em direção à sala onde estava a estudante. Formou-se um tumulto alimentado por palavras de ordem, com xingamentos à estudante, que teve de ser resgatada. Como os ânimos estavam agitados, é possível que ela fosse agredida fisicamente. É provável que alguns daqueles estudantes, a partir de alguma disposição insuflada por umas poucas pessoas, tenham decidido fazer justiça com as próprias mãos e punir aquela estudante que atrapalhava o ambiente da escola ou sujava a imagem daquela universidade. Não há registros que tenham procurado resolver o conflito de uma maneira pacífica, passando pelos trâmites próprios. Tudo tinha que ser resolvido naquela noite. Era preciso dar um basta naquele comportamento naquela noite. De certo modo, agiram sem pensar. Toda violência é uma ação irrefletida. As brigas no trânsito são movidas pelo desejo de justiça. As discussões na família, na escola, no trabalho ou na igreja nascem do desejo de justiça. Este desejo de justiça se expressa pela violência quando se torna mais forte que a razão, porque a razão aconselha ouvir o outro lado ou esperar que o sistema judicial funcione, se for acionado. Justiça demais mata.
Você ama muito a alguém. Por alguma razão, no entanto, essa pessoa é tirada do seu convívio. Você fica indignado. Então, mata (física ou simbolicamente) a pessoa amada ou a pessoa que impede o acesso à pessoa amada.
Isto acontece com pais separados em litígio e há uma criança no meio deste amor. E infelizmente temos notícias de casos extremos em que a criança é assassinada para que não seja amada pelo outro. E infelizmente temos notícias de homens que assassinam mulheres que os abandonam, deixando (alguns) melodramáticos bilhetes de despedida em que dizem: “se ela não é minha, não será de mais ninguém”.
Todos diremos: esses são casos patológicos, mas todos precisamos nos examinar para ver se nosso amor não está matando (simbolicamente). Amor demais mata.
Por incrível que pareça, verdade demais mata.
Para que a verdade não mate, ela precisa ser demonstrada com amor.
O amor tempera a verdade, acondicionando-a com especiarias que a tornam deglutível.
O amor põe a verdade em segundo plano, quando o primeiro plano não produz vida.
Quando a verdade é gestada na atmosfera do amor, é proferida entre risos e não com mal-humor.
Entre o amor e a verdade, se uma escolha fosse necessária, eu escolheria o amor.
E você?
Levar desaforo para casa pode ser uma forma de pôr fim à cultura da violência e de praticar a cultura da paz. Quem tem a mente de Cristo contribui para encerrar a espiral da violência. (DRIVER, John. Ouça Jesus. Campinas: Cristã Unida, 1995, p. 73.)