1
Escreve, Jeosafá ben Aïlude, para que meus filhos e netos saibam, para que meu povo aprenda a viver.
Escreve :
“Eis aqui o homem que não tomou a Deus por sua fortaleza; antes confiava na abundância das suas riquezas e se fortalecia na sua perversidade. Mas hoje eu sou qual oliveira verde na casa de Deus; confio na bondade de Deus para sempre e eternamente”. (Salmo 52.8) Eu sei que “desde o ventre materno dependo de ti; tu me sustentaste desde as entranhas de minha mãe. Eu sempre te louvarei!” (Salmo 71.6)
É por isto que eu gosto de cantar:
“Deus eterno, para sempre te louvarei, porque tu isso fizeste, e proclamarei o teu nome, porque o Senhor é bom diante”. (Salmo 52.9)
2
Aprendi isto com Saul, para não viver e morrer como o rei que veio antes de mim.
Anote o que o meu primeiro pastor, Samuel, me contou.
Meu Deus deu ao rei um mandamento, mas ele achou que sabia como fazer as coisas e fez do seu jeito. Nunca esquecerei as palavras que Samuel disse ao rei, imagino que cheio de lágrimas:
“A obediência é melhor do que o sacrifício, e a submissão é melhor do que a gordura de carneiros. Pois a rebeldia é como o pecado da feitiçaria, e a arrogância como o mal da idolatria. Assim como você rejeitou a palavra do Senhor, ele o rejeitou como rei”. (1Samuel 15.22-23)
Aprendi. Longe de mim, a rebeldia contra Deus.
Aprendi. Longe de mim, a arrogância diante das pessoas.
3
Eu sou o que sou porque Deus me escolheu, sei lá porque.
E não algum dos meus sete irmãos. Eu fui escolhido para ser rei no lugar de Saul, eu o caçula, eu que levava comida para eles no campo.
Eu não tinha a menor idéia do que era governar. Tive que aprender, sem entender muita coisa.
Quando eu tinha 27 anos fui ungido rei, mas Saul não sabia. Eu mesmo não dei muita importância. Nem sempre eu dou importância às coisas que Deus faz. Parecem sem sentido.
Só que o Deus eterna estava em ação e me arrumou um emprego no palácio de Saul, que tinha uns ataques naquela época. Meu trabalho era tocar harpa toda vez que ele ficasse perturbado. Desde cedo, minha mãe me pôs para estudar harpa; ela achava que eu era artista. Meu pai achava que eu devia mesmo era ser pastor de ovelhas.
Muitas vezes, o trabalho que a gente faz é terrível. Eu tinha que ficar sempre de plantão. A qualquer hora podia ser chamado. Tinha que morar no palácio. E aí aprendi uma coisa que não sabia: o valor da amizade.
Foi um presente a amizade do Jônatas. O dia em que ele morreu numa batalha foi o mais triste da minha vida. Mas a morte não nos separou: a morte não separa os amigos. Aprendi que precisamos ser fiéis aos nossos amigos, mesmos depois de mortos. Só não podemos ficar presos aos mortos. “Os mortos não louvam ao Senhor” (Salmo 115.17). Minha vida é para frente.
Quando meu primeiro filho com Batesseba ficou muito doente, eu chorei muito, muito, muito; orei muito, muito, muito; não comia, não bebia, não cantava, não trabalhava. Ele morreu. Chorei mais um pouco, lavei o rosto e voltei para a vida. O melhor que eu posso fazer é viver.
Perdi amigos e perdi filhos. Chorei por eles. Perdi adversários e companheiros. Chorei por eles. Hoje não choro mais.
4
Não choro por aquilo que eu não fui. Choro por aquilo que eu não sou. Quando tive a maior queda da minha vida, aquela tragédia formada de intriga, adultério, mentira e morte, eu chorei.
Aindo me lembro do poema banhado em lágrimas que compus:
“Enquanto eu mantinha escondidos os meus pecados, o meu corpo definhava de tanto gemer. Pois dia e noite a tua mão pesava sobre mim; minhas forças foram-se esgotando como em tempo de seca. Então reconheci diante de ti o meu pecado e não encobri as minhas culpas. Eu disse: Confessarei as minhas transgressões ao Senhor”. (Salmo 32.3-5)
Deus perdoou “a culpa do meu pecado”. Escreve: eu sou um homem perdoado por Deus. Olho para mim mesmo (ah, eu me conheço) e me pergunto: “Quem poderá subir o monte do Senhor? Quem poderá entrar no seu Santo Lugar?” Sei a resposta: “É aquele que tem as mãos limpas e o coração puro, que não recorre aos ídolos nem jura por deuses falsos”. Quero ser este homem, Jeosafá. Você também quer ser assim? Não é fácil, porque é uma luta para a vida inteira.
Entende porque não vivo do passado? Para mim, hoje “é o dia em que o Senhor agiu. Isso vem do Senhor, e é algo maravilhoso para nós. Alegremo-nos e exultemos neste dia”. (Salmo 118.23-24)
5
Ah, diante de certezas como estas, meu pai Abraão levantava altares para se lembrar de quem Deus era na sua vida. Eu escrevo salmos.
“Dêem graças ao Senhor porque ele é bom; o seu amor dura para sempre.
Que Israel diga: “O seu amor dura para sempre!”
Os sacerdotes digam: “O seu amor dura para sempre!”
Os que temem o Senhor digam: “O seu amor dura para sempre!”
Na minha angústia clamei ao Senhor; e o Senhor me respondeu, dando-me ampla liberdade.
O Senhor está comigo, não temerei. O que me podem fazer os homens?
É melhor buscar refúgio no Senhor do que confiar nos homens.”
(Salmos 118.1-8)
6
Não foi fácil ser rei. Muitos anos se passaram desde o dia em que Samuel foi lá em casa e desde o dia em que trabalhei para Saul.
O fácil não existe. O fácil não pode existir. Quando a vida é fácil, a vida fica difícil. Veja meus filhos. Tiveram vidas de reis que eu lhes dei e, exceto Salomão, nenhum deles foi feliz. Fiz deles meus ministros, mas não lhes fiz bem. Não aprenderam a ter vidas reais. Chorei mais do que me alegrei por eles.
Não passaram fome, tendo que mendigar como eu mendiguei.
Não tiveram inimigos, tentando tirar as suas vidas.
Não trabalharam pesado, enfrentando feras no campo para se defenderem.
Não viveram em cavernas úmidas e tristes, para fugir de reis que queriam mata-los.
Não passaram noites no frio dos desertos.
O Deus que conheceram era o meu Deus, não o Deus deles, por experiência própria. Nunca souberam o que a aflição me ensinou. Que:
“Porque o Senhor Deus é o meu pastor, nada me tem faltado na vida.
Quando preciso descansar, Ele providencia um leito suave. Quando preciso de água, Ele me leva às melhores fontes.
Na jornada da existência, que as forças drena, Ele me dá o vigor que preciso para ficar firme na caminhada.
Já senti o hálito da morte, mas Ele, ao meu lado, preservou os meus sentidos.
Já fui acossado por inimigo cheio de força e fúria, mas Ele me recolheu em sua cabana e me serviu um banquete para que todos pudessem ver como eu sou amado.
Eu vejo que a sua graça me acompanha desde a manhã. É assim que desejo viver todos os meus dias, como se já tivesse começado aqui o tempo da eternidade”.
(Salmo 23– Versão de Israel Belo de Azevedo)
7
Minha vida é boa, mas eu gostaria de viver no tempo do Messias.
Queria estar em Jerusalém para aclama-lo:
“Bendito é o que vem em nome do Senhor. Da casa do Senhor nós os abençoamos”. (Salmo 118.26).
Eu fecharia os meus ouvidos para não escuta-lo clamar:
“Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste? Por que estás tão longe de salvar-me, tão longe dos meus gritos de angústia? (Salmo 22.1)
Eu não rejeitaria a pedra que os construtores rejeitaram, porque sei que a pedra angular. (Salmo 118.22)
Anote, filho de Aîtube, que eu queria viver em Jerusalém na época do Messias, mas cheguei primeiro e não vou me entristecer. Este não é o meu tempo? É neste que sou feliz
8
Anote também que conheci pessoas admiráveis e pessoas detestáveis.
Saul me fez muito mal. Mas não vou ficar me lamentando. Saul não sabia o que estava fazendo. Ele achava que eu ia tomar o lugar dele. Ele tentou me matar várias vezes. Uma vez, ele tentou me encravar na parede com a lança real, mas Deus me livrou e eu corri. Tive que fugir para En-gedi, com suas noites de ventos gelados.
Nas batalhas em que lutamos juntos, ele também era o inimigo. Tinha que olhar para a frente para os lados. Ele me caçava por todos os lados. Eu não passava de um cão morto, de uma pulga. Ao mesmo tempo, me chamava, me dava presentes, mandava recados bonitos e punha seu servos atrás de mim. Também tive chances de matar Saul, mas não quis. Eu não iria ser igual a ele. Além disso, ele estava me ensinando a ser rei, a não ser um rei como ele era.
Pior que Saul era Nabal, que tinha uma mulher doce, chamada Abigail, e um ancestral maravilhoso, de nome Calebe. Ele tinha tanto para reclamar, mas nem dos joelhos reclamava. Mas Nabal não valia nada.
Cheguei, com meus homens, fugitivos e famintos, à fazenda dele. Pedimos comida e ele negou. Se não fosse a mulher dele, eu seria o maior assassino da história de Israel. Vontade me deu, mas também não me igualei a ele. Quem é mau com um homem mau se torna um homem mau. Deus me livre dos maus. (Salmo 140.1).
9
Mas também conheci homens fantátiscos, como Jonatas, meu amigo, filho de Saul, que morreu cedo, e Barzilai, que conheci quando ele tinha 80 anos.
Quando eu fugia do meu enlouquecido filho Absalão, para não derramar mais sangue em Israel, meu exército sofreu muito. Estávamos escondidos no deserto, com fome, com sede e muitos cansados em Maanaim. Foi então que apareceu Barzilai, um homem rico. Ele e outros amigos vieram ao nosso encontro trazendo “camas, bacias e utensílios de cerâmica e também trigo, cevada, farinha, grãos torrados, feijão e lentilha, mel e coalhada, ovelhas e queijo de leite de vaca” (2Samuel 17.28-29). Espero que você tenha anotado isto nas suas crônicas.
Foi por isto, quando as coisas melhoraram, que tentei agradecer ao velhinho Barzilai, por ter me sustentado. Ele não aceitou nenhum presente meu. Eu nunca esquecerei.
Quero ser como Barzilai.
10
Talvez você me pergunte se não fico triste jamais. Fico. Depois de pensar um pouco e ler as Escrituras, eu me pergunto:
“Por que você está assim tão triste, ó minha alma? Por que está assim tão perturbada dentro de mim?” (Salmo 42.5a)
Sabe o que respondo a mim mesmo?
“Davi, ponha a sua esperança em Deus! Pois ainda o louvarei; ele é o meu Salvador” (Salmo 42.5b). “Então, irei ao altar de Deus, a Deus, a fonte da minha plena alegria. Com a harpa te louvarei, ó Deus, meu Deus! (Salmo 43.4)
Sabe, mesmo nestas situações, canto como os poetas filhos de Corá: “minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo” (Salmo 42.2) Por isto, digo a Ele: “Eu sempre terei esperança e te louvarei cada vez mais. (Salmo 71.14)
“Eu te amo, oh Senhor, minha força. O Senhor é a minha rocha, a minha fortaleza e o meu libertador; o meu Deus é o meu rochedo, em quem me refugio. Ele é o meu escudo e o poder que me salva, a minha torre alta. Clamo ao Senhor, que é digno de louvor”. (Salmo 18.1-3)
“Em alta voz, darei muitas graças ao Senhor; no meio da assembleia eu o louvarei”. (Salmo 109.30).
“Cantarei ao Senhor toda a minha vida; louvarei ao meu Deus enquanto eu viver”. (Salmo 104.33)
ISRAEL BELO DE AZEVEDO