A Úlima Palavra, 1 — BÍBLIA: O CÓDIGO DE DEUS

alt

 
“Feliz aquele que lê as palavras desta profecia e felizes aqueles que ouvem e guardam o que nela está escrito, porque o tempo está próximo”. (Apocalipse 1.3)
 
 
Interessado pela fé cristã, um rapaz me procurou e disse, de cara:
— Quero conversar com você como filósofo, não como pastor.
Ele me perguntou:
— Como eu posso ter certeza que o que a Bíblia diz é a verdade, se há outros livros que não fazem parte dela.
Eu lhe disse:
— Você leu o “Código Da Vinci”, não leu?
O fato é que a leitura o afastou irremediavelmente do cristianismo. 
Ele ainda indagou:
— Não acho que Jesus seja Deus. 
Ele estava convicto de suas crenças. Nunca mais voltou à igreja.
O grande problema dos leitores desses livros é que boa parte deles não os lê esses livros como o que são (ficção), mas como história. As personagens citam muitos textos bíblicos, dando-lhes, no entanto, interpretações que uma leitura do texto bíblico não sustenta.
Dan Brown diz que, com seus livros, quer apenas pregar a tolerância religiosa. Em sua ficção, ele lança mão de informações históricas, resenhadas pelas personagens de seus romances. Se em “O Código Da Vinci”, seus heróis põem em dúvida a divindade de Jesus, em “O Símbolo Perdido”, eles são unânimes em propor que o homem pode ser divino.
Em ambos, a Bíblia está onipresente, com inúmeras citações, utilizadas para referendar os argumentos dos heróis que a habitam.
Ela não tem como ser ignorada. Dela fala pessoas que a lêem respeitosamente, de modo superficial ou profundo. Dela falam pessoas que, amparadas por suas ideologias, consideram-na deletéria para a sociedade. Visões à parte, “a Bíblia moldou e amalgamou civilizações e se manteve um texto obrigatório porque é, de fato, inesgotável”, como escreveu uma jornalista. [BOSCOV, Isabela. A história sem fim. Revista Veja, 23.12.2009, p. 159.]
É provável que o filão revalorizado por Dan Brown parta do fato que a Bíblia habita a vida das pessoas, sobretudo a partir da invenção da imprensa, quando passou a ser impressa em diferentes idiomas para diferentes povos. É possível que a distribuição de exemplares da Bíblia tenha alcançado 6 bilhões de exemplares nos últimos dois séculos. A cada ano, estima-se que 100 milhões de cópias sejam vendidas.
Entre seus compradores, há pessoas em busca de sentido para suas vidas, mas há também quem busque explicações para a natureza humana. Os crentes a tomam como o guia deixado por Deus para as suas vidas, em todas as áreas. Outros acham que ela é mais que isto.
 
GUIA PARA O SEGREDO
Assim, por exemplo, a idéia, repetida por uma das personagens de “O símbolo perdido”, de Dan Brown, de que a Bíblia é um livro codificado com informações científicas, tem despertado o interesse de muitas pessoas. [BROWN, Dan. O símbolo perdido. Rio de Janeiro: Sextante, 2009, p. 499 na edição em inglês.]
Também fascina a muitos a noção de que a Bíblia é uma coletânea de mistérios que requerem um conhecimento para poucos. Pensam os que assim pensam que poucas pessoas na história compreenderam a sua verdadeira mensagem. [Brown, p. 487.]. Há em suas páginas uma vasta coleção de sabedoria encoberta, com poderosos segredos escondidos esperando por uma revelação. [Brown, 489]
Fora da ficção, há autores que desenvolvem esta idéia. Em “O código da Bíblia” (de 1997), o jornalista norte-americano Michael Drosnin expõe as propostas do matemático israelense Eliyahu Rips, segundo o qual a Bíblia prevê todos os acontecimentos importantes da história. A chegada do homem à luz, os assassinatos dos irmãos Kennedy e morte de Ytzhak Rabin estavam todos prenunciados, com suas respectivas datas. Para decifrar estas “profecias”, é preciso fazer uso dos recursos da computação. Drosnin disse: “Sempre imaginamos a Bíblia como um livro. Sabemos agora que o livro foi somente a sua primeira encarnação. A Bíblia é também um programa de computador”. [DROSNIN, Michael. O código da Bíblia. São Paulo: Cultrix, 1997.]
Estas perspectivas deixam de lado as mensagens abertas da Bíblia, concentrando-se em hipotéticas mensagens secretas. Se tiram o foco do principal, resvalem para o território do exótico e são logo esquecidas.
 
UM LIVRO SUPERADO
A dificuldade de recebimento da Bíblia como Palavra de Deus tem três vetores: sua mensagem (tida como contrária aos ditames da razão), a humanidade de seus autores (naturalmente falíveis) e a natureza do material (visto como não confiável).
Há muitas visões francamente negativas à Bíblia e que têm obtido destaque nos meios de comunicação. Entre os autores deste grupo, estão o escritor português José Saramago e o jornalista norte-americano A.J. Jacobs. O jornalista se propôs a viver durante um ano (2005) seguindo literalmente as regras da Bíblia (ele achou 700), com a finalidade de escrever um livro, como fez. [JACOBS, A. J. Um ano de vida bíblica. Lisboa. Caleidoscópio, 2008.] Sua conclusão é que a Bíblia não pode ser lida literalmente. Em uma de suas entrevistas, ele disse: “a Bíblia é cheia de sabedoria, cheia de compaixão, e o fato de tê-la vivido por mais de um ano mudou minha vida para sempre. Essa experiência mudou minha vida de uma forma muito profunda”. [Revista Veja, de 23 de dezembro de 2009]. A divulgação do seu trabalho, no entanto, fez a Bíblia parecer um livro simplesmente bizarro. Foi isso que sobrou, não o impacto sobre a vida do autor.
Segundo uma tradição minoritária mas longeva, Saramago tem escrito livros e artigos contra a idéia da existência de Deus e contra o valor da Bíblia, que ele tacha de “um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”. Depois de uma entrevista sua nesta direção, um leitor arrematou: “Chamar a Bíblia de livro santo ou guia moral é uma afronta à decência e a dignidade. Pretender que ela seja a verdade absoluta é subestimar o intelecto humano”. [Cf. http://reporter24horas.blogspot.com/2008/11/jos-saramago-bblia-um-desastre-cheia-de.html]
A objeção de Saramago é de natureza ética. Para alguns críticos, os padrões morais da Bíblia são inaceitáveis. Eles vêem, sobretudo no Pentateuco, recomendações abomináveis, como a sujeição da mulher, a intolerância étnica e religiosa, a valorização da pena capital, a sugestão ao genocídio, a defesa da escravidão e elogio ao conformismo.
Esses autores, detratores da Bíblia, são lidos (alguns muito lidos, como Dan Brown) e vistos, uma vez que aparecem periodicamente nos meios de comunicação de massa. Vai-se formando, então, uma espécie de consenso negativo com relação à Bíblia.
Sobretudo depois de “O Código Da Vinci”, tornou-se bastante difundido o questionamento sobre a legitimidade da lista de livros (lista chamada de cânon) que compõem a Bíblia. Encontro eco uma espécie de teoria da conspiração, segundo a qual, por interesses escusos, livros foram incluídos ou livros foram excluídos. No mínimo, uma pergunta permanece: por que há livros antigos que não estão na Bíblia? Há muitos livros que não entraram no canon do Novo Testamento. Por isto também se indaga: por que a lista, para o Antigo Testamento, é diferente entre católicos e protestantes, com a daqueles tendo mais livros que a destes?
Outros ainda questionam se as traduções são fiéis, já que há tantas versões e tantos interesses.
O relativismo crescente faz outra observação: a Bíblia é um livro antigo como outras obras antigas, nada tendo de normativo para o ser humano. Por que uma pessoa deve orientar sua vida pelos orientações desse livro?
O cientificismo predominante destila outra certeza: a Bíblia não tem qualquer acurácia nos seus textos, falhando nas informações que traz sobre a natureza e nas datas que propõe ou sugere para os eventos de que trata. Ela precisa ser corrigida para poder ser lida, dizem os críticos.
 
O que há de especial, então, neste livro?
 
POR TRÁS DOS SÍMBOLOS, ALEGORIAS E PARÁBOLAS 
A Bíblia deve ser lida considerando-se a intenção de sua escrita. Buscar nela códigos secretos ou mesmo calendários do fim do mundo é cometer uma violência contra ela. Isto, sim, é manipula-la, para faze-la falar o que não fala.
Quantos aos símbolos nela contidos, as alegorias que emprega e às parábolas que traz, trata-se de recursos de linguagem para comunicar, não para esconder.
Devemos ter em mente que a Bíblia tem dois tipos de leitores: os primeiros que a ouviram e nós que a lemos. Aqueles que, por exemplo, ouviram as parábolas como registradas pelos evangelistas entenderam-nas perfeitamente, porque foram formas eficazes de comunicação. Pela distância do tempo e da cultura, temos dificuldades para algumas pouquíssimas parábolas. Jesus mesmo explica seu método: ele contava parábolas para que aqueles ouvintes (não os leitores) que não quisessem crer nele não percebessem o que viam e não entendessem o que ouviam (Marcos 4.12). O sentido era claro. Ele mesmo perguntava: como você não entendem? (Marcos 4.13). O sentido é claro. 
Literariamente falando, a Bíblia é muito rica. Ela contém todos os gêneros e subgêneros literários. 
 
1. relatos intencionais (testemunhados e pesquisados), geralmente não normativos (o que explica a não-condenação a comportamentos abomináveis narrados, como a poligamia e registros de violências inomináveis), embora descritivos da natureza humana (Eclesiastes 7.9).
2. documentos (como cartas oficiais, atas, listas de nomes e propriedades).
3. epístolas (como as cartas dos apóstolos e excertos em Apocalipse).
4. poemas (como todos os Salmos, Lamentações, parte de Eclesiastes e excertos nos proféticos e do Apocalipse).
5. contos ou novelas (como as parábolas de Jesus e dos profetas e as histórias de Rute, Ester e parte de Jonas).
6. ensaios (inseridos nas Epístolas).
7. sermões (como os dos profetas-autores, profetas não-autores, Moisés, Jesus, Pedro, Simeão e Paulo, contidos nos livros proféticos, históricos, evangelhos e Atos).
8. pensamentos ou provérbios (como os coletados em Provérbios, parte de Eclesiastes e excertos nos Salmos).
9. orações (como a de Daniel, excertos nos livros históricos e as de Jesus nos Evangelhos)
10. peças teatrais (como Jó, Cântico dos Cânticos).
 
Estes gêneros contem alegorias, para tornar mais claras as idéias, não para obscurescê-las. 
Esses textos também contêm símbolos, que dão significados a números, animais e pessoas. Esses símbolos estão presentes sobretudo nos textos apocalípticos, que, por incrível que pareça para quem lê certas passagens de Daniel, Ezequiel, Zacarias e Apocalipse, foram escritos para revelar, não para esconder. Peças de comunicação, estes textos eram claros para os seus primeiros leitores, embora nos sejam difíceis, por nosso desconhecimento dos símbolos, tão comuns para eles e tão complexos para nós. Não estão ali para iniciados, isto é, para pessoas que detêm certos conhecimentos; estão ali para nos ensinar uma mensagem, mesmo que não compreendamos os detalhes dos símbolos. Quando lemos o último livro da Bíblia, podemos não entender símbolos como a besta, o anticristo, os sete selos, mas sabemos que eles querem dizer que Deus age na história.
Nem na literatura apocalíptica e nem em qualquer outra das Escrituras, há qualquer mensagem criptografada. Não há nelas, portanto, nenhuma “camada escondida de sentido, uma mensagem oculta que foi escondida em alegorias, simbolismos e parábolas”. [Brown, 489]
Nada há nela que não possa ser compreendido.
A idéia que há informações secretas que só um programa de computador pode ler é absurda. Não passa de uma acrobacia com números. Conforme a ironia da Sociedade Bíblica alemã, aceitar os malabarismos de Rips e Drosnin seria admitir que só agora, graças à dupla, podemos saber o que Deus quis dizer. Cientificamente também, o “método” foi desmascarado. O matemático australiano Brendan McKay aplicou-o no romance “Moby Dick”, de Herman Melville (1819-1891), e encontrou previsões para acontecimentos como as mortes de Indira Ghandi, Martin Luther King Jr, Yitzhak Rabin e Lady Diana. [Cf. LIETH, Norbert. O código da Bíblia desvenda acontecimentos futuros? Disponível em ]
 
ALÉM DO LITERALISMO
Precisamos, crentes e não crentes, reconhecer que, pelas diferenças entre nós e seus primeiros leitores, pela nossa distância dos seus autores e pelas direções de nossos interesses, a Bíblia é um livro de leitura desafiadora. Há obstáculos a serem transpostos.
De fato, a leitura literalista da Bíblia traz problemas, porque, como em qualquer outro livro, cada texto demanda um tipo de leitura e interpretação.
Duas distinções são úteis. A primeira é entre textos datados (no tempo e no espaço) e textos atemporais. A outra é entre textos descritivos (ou narrativos) e textos prescritivos (ou imperativos).
Se A.J. Jacobs considerasse essas distinções, saberia que as instruções do Pentateuco ali estão para efeitos prescritivos para os primeiros leitores e descritivos para nós. Todas as regras ali apresentadas visavam a segurança, a saúde e a sobrevivência do povo de Israel em sua caminhada pelo deserto até Canaã. As gerações posteriores não precisavam daquelas regras, como nós não precisamos. Mesmo dos textos narrativos, há princípios permanentes por trás de imperativos que não são mais autoaplicáveis. Cabe-nos ler aquelas normas e perceber os princípios que lhes subjazem, os quais são atemporais.
Se José Saramago quisesse, poderia notar que o fato de a Bíblia narrar um fato não lhe está aprovando. As notícias do jornal diário não estão ali para nos servir de modelo, mas porque relatam os fatos. De fato, a Bíblia cataloga crueldades do pior da natureza, mas não as recomenda. Embora descritivas, são (e num só sentido) prescritivas, como a nos dizer (embora sem o dizer explicitamente, por apostar na inteligência do leitor): não façam isto. O autor de juízes repete, antes ou depois de registrar uma crueldade: “Naqueles dias não havia rei em Israel; cada qual fazia o que parecia bem aos seus olhos”. (Juízes 17.6, 21.25)
Deve ficar claro, como escreveu F.F. Bruce, que “a inspiração da Bíblia não implica que todas os acontecimentos relatados nela têm a aprovação divina ou que todas as palavras registradas têm uma divina autoridade. Não estamos obrigados a defender o engano de Jacó para com seu pai ou o pedido de Elias para que o fogo descesse dos céus ou a aceitar como provenientes do Altíssimo os argumentos dos amigos de Jó ou os elogios de Débora a Jael. Estas ações e palavras não são parte da revelação de Deus, mas são parte do contexto em que a revelação foi dada e foram registradas para nos advertir. O isolamento de partes isoladas da Bíblia tem feito grandes estragos. O Antigo Testamento é para ser lido e compreendido à luz do Novo Testamento; os primeiros estágios da revelação aparecem na devida perspectiva quando vistos no contexto da revelação completa em Cristo”. 
 
AS GRANDES CONSPIRAÇÕES
A questão do cânon da Bíblia representa um problema para alguns, sobretudo para aqueles tendentes a admirar ubíquas teorias de conspiração.
Sobretudo depois de “O Código Da Vinci”, tornou-se bastante difundido o questionamento sobre a legitimidade da lista de livros (lista chamada de cânon) que compõem a Bíblia. Encontro eco uma espécie de teoria da conspiração, segundo a qual, por interesses escusos, livros foram incluídos ou livros foram excluídos. 
Outro autor garante (Sylvia Browne, em “A vida mística de Jesus”) que a Igreja manipulou transcrições e traduções dos evangelhos para que suas mensagens se encaixassem nos projetos eclesiásticos.
De fato, há livros antigos que não estão na Bíblia? Há muitos livros que não entraram no cânon do Novo Testamento. Por isto também se indaga: por que a lista, para o Antigo Testamento, é diferente entre católicos e protestantes, com a daqueles tendo mais livros que a destes?
Com relação ao Antigo Testamento, a dificuldade é mínima, porque a discrepância é basicamente quanto às Bíblias católica e protestante, já que as Bíblias hebraica e protestante têm a mesma lista, diferindo apenas na ordem dos livros. A lista hebraica dos livros do Antigo Testamento foi alterada pela Igreja Católica Romana, para abrigar mais sete livros, considerados por judeus e protestantes como “apócrifos” (ocultos) e que foram escritos entre os anos 200 e 100 a.C. Por esta razão, os protestantes tacitamente decidiram não seguir esta alteração e ficar com o cânon hebraico. Os católicos também não incluíram os chamados pseudepígrafos (autores falsos, isto é, livros atribuídos a outros autores), como Livro dos Jubileus, Carta de Aristéia, Livro de Adão e Eva, 1Enoque, A Ascensão de Moisés, Salmos de Salomão, Salmo 151, etc.), que foram escritos entre 200 a.C e 200 d.C.
A crítica, no entanto, quanto ao cânon, tem a ver mais com o Novo Testamento. Parte da razão é que não há muitos textos candidatos para integrar o Antigo Testamento. Quanto ao Novo Testamento há muitos textos candidatos (só de evangelhos há uns 15 que não fazem parte do cânon). Por que não foram incluídos? Por que ficaram de fora os Evangelhos de Maria, Tomé, Judas ou Pedro ou as cartas Clemente e Barnabé?
A teoria da conspiração enfrenta um grande problema: não havia ainda uma igreja católica 
com um centro consolidado de poder e com uma hierarquia. As comunidades cristãs eram bastante autônomas, dadas as condições econômicas e política dos três primeiros séculos. 
Quanto aos livros que ficaram fora do cânon, como estes e também “O Evangelho de Judas”, “A Pseudo-epístola de Barnabé”, “O Apocalipse de Pedro” e “O Evangelho de Tomé”, eles foram escritos a partir do século 2 d.C., com alguns deles podendo ter sido escritos no final do século primeiro 
Eles tiveram uma circulação limitada (e ainda assim por serem atribuídos a apóstolos) no tempo e no espaço e foram abandonados porque não eram apostólicos, eram recentes demais e nada acrescentavam teológica ou informativamente aos canônicos. A propósito, o mais lindo desses apócrifos é a anônima Carta a Diogneto, não passa, na maioria de seus versículos, de uma coletânea de citações da própria Bíblia, o que só faz atestar a legitimidade do cânon.
Portanto, inexiste uma conspiração para esconder livros que mostrariam doutrinas e informações que não interessaram à igreja. O cristianismo não teve um centro decisório antes do final do século 5, apesar dos esforços do imperador Constantino. Nessa época, o cânon já estava definido e difundido. O primeiro concílio, reunião de representantes de igrejas de várias cidades e países, aconteceu em 325, por convocação de Constantino .
Há vários documentos, a partir do início do século segundo, que listam os títulos dos 27 livros aceitos como apostólicos, enfeixados no que se convencionou chamar de Novo Testamento (nova aliança), a partir de Tertuliano (no ano 220). A lista de Atanásio de Alexandria  (367) atesta o consenso em torno dos livros considerados canônicos.
 
EM BUSCA DOS AUTÓGRAFOS
Outros ainda questionam se as traduções são fiéis, se não há textos autógrafos e há tantas versões hoje disponíveis. 
De fato, não há originais de nenhum dos livros da Bíblia, apenas cópias, como acontece a  todas as obras da antiguidade. Há, no entanto, cópias bem preservadas, razoavelmente antigas e com textos idênticos quando cotejados.
A fidedignidade do Antigo Testamento é atestada ilustrativamente pelos manuscritos da comunidade de Qumran (no Mar Morto), descobertos em 1947. Entre os 930 fragmentos de manuscritos hebraicos, aramaicos e gregos, datados de  250 a.C. ao século I da Era Cristã, havia uma cópia do livro inteiro de Isaias.
Confrontado com cópia posteriores, o texto é idêntico palavra por palavra em 95% do texto. Os 5% não-idênticos são basicamente trocas involuntárias de letras; nada significativo). Eis um trecho deste texto, para fins de cotejo com qualquer versão moderna:
 
Lembrai-vos das primeiras coisas dos tempos antigos,
pois Eu sou Deus, e não há outro;
eu sou Deus e outro não há como eu.
Narro o fim desde o princípio
e conto desde a antiguidade as coisas que acontecerão.
Meu conselho permanecerá e eu farei o que me agrada.
Chamo do oriente a ave de rapina
e da terra distante chamo o homem do meu conselho.
O que tenho dito, farei cumprir;
o que formei, eu completarei.
(Isaías 46.9-11 — Manuscritos de Qumran)
 
Quanto ao Novo Testamento, uma comparação com a literatura greco-latina é bastante útil. Antes, não podemos esquecer que não há nenhum original de nenhuma das 37 peças de William Shakespeare (1564-1616), o que tem forçado os especialistas a preencher lacunas existentes.
Para todos autores gregos e latinos, todas as cópias são do século 9 d.C. Entre as mais antigas, datadas do ano 850, estão a dos “Anais”, de Tácito, escrito no começo do século 2 d.C. Por sua vez, os manuscritos dos Evangelhos são todos do início do século 3, exceto o de João, para quem há uma copia do ano 130. 
Além disso, o mundo conhece 643 cópias da Ilíada, a obra mais bem preservada da história depois da Bíblia.  Nestas cópias, há 764 linhas que são alvo de controvérsias entre os especialistas. No Novo Testamento, há apenas 40. De outras obras da antiguidade clássica, só são estão disponíveis 8 cópias das obras de Heródoto, 5 de Aristóteles e 7 de Plínio. Contudo, do Novo Testamento há disponíveis 24 mil cópias manuscritas do Novo Testamento, dos quais 230 são anteriores ao século 6 d.C.
Os estudiosos descobriram 150 mil variantes nestes textos, dos quais 99% totalmente irrelevantes, como troca de letras ou inversão de palavras (como “Jesus Cristo”/”Cristo Jesus”)
Além disso, todo o Novo Testamento, com exceção de 11 pequenos versículos, pode ser reconstruído a partir dos escritos deixados pelos líderes das igrejas cristãs nos séculos 2 e 3 de nossa era.
Tem razão o estudioso F.F. Bruce, quando diz que “não há nenhum conjunto de textos da literatura do mundo antigo que goze de tanta riqueza de atestação textual como o Novo Testamento”. [BRUCE, F.F. The Books and the Parchments: How We Got Our English Bible. Grand Rapids: Fleming H. Revell, 1950, p. 178.] Sem nenhuma dúvida honesta, as evidências são claras: o texto que temos do Novo Testamento é digno de confiança.
 
EM BUSCA DO TEXTO PERFEITO
Também não devemos nos preocupar com as traduções cristãs. A Bíblia toda (Antigo e Novo Testamento) foi traduzida primeiramente para o latim, por Jerônimo, no século 4 (“Vulgata” — para o “vulgo” — povão, hoje –, que não sabia grego).
Com o surgimento das nações-estado, com suas línguas, começaram a surgir traduções para a leitura desses povos. Para o inglês o pioneiro foi Wyclif (1383), a partir da Vulgata. A versão do rei Jaime ou Tiago (“King James version”), de 1611, empreendida por uma equipe de 50 tradutores, tornou-se padrão nesse idioma. Um pouco antes, Lutero traduzira (1534) a Bíblia para o alemão, a partir dos originais.
Para o português, a primeira tradução foi preparada, fora do seu país, pelo pastor português João Ferreira A. d’Almeida. Ele traduziu, a partir do grego, todo o Novo Testamento, publicado em 1681, em Amsterdam. Quanto ao Antigo, ele chegou, a partir do Hebraico, até Ezequiel, cabendo a seus amigos o restante, publicado em 1753. A partir de 1819, a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, de Londres, começou a publicar a tradução de Almeida. [Para esta história, veja-se HALLOCK, Edgar, e SWELLENGREBEL, J.L. A maior dádiva e o mais precioso tesouro. Rio de Janeiro: Juerp, 2000.] No Brasil, a primeira versão (“Tradução brasileira”), feita por uma equipe, foi publicada em 1917; por falta de atualização, caiu em desuso. A Imprensa Bíblica Brasileira publicou a primeira revisão, conhecida como Almeida Revista e Corrigida (ARC), em 1951. Em 1958, a Sociedade Bíblica do Brasil publicou a Ameida Revisa e Atualizada (ARA). Em 1972, a Imprensa Bíblica Brasileira publicou outra (“segundo os melhores manuscritos”). Em todas, as diferenças são apenas estilísticas.
Os católicos têm sua versão desde 1790, feita pelo padre Antonio Pereira de Figueiredo, em Portugal. No Brasil, há também a de Matos Soares, desde 1946. A Bíblia de Jerusalém foi feita por uma equipe de católicos e protestantes, com predominância dos primeiros, e traduzida no Brasil (1981)
Todas estas versões são tradicionais, no sentido de priorizarem formalmente o texto original (numa metodologia de equivalência formal). Surgiram outras traduções com outra metodologia, de equivalência dinâmica (como, Bíblia Viva [New Living Translation, de 1996], Bíblia na Linguagem de Hoje [Good News Bible, de 1969] e The Message, de 1996). No meio termo, há as que buscam equilibrar a equivalência formal com a dinâmica (como a Nova Versão Internacional [New International Version, de 1979] e a New Revised Standard Version, de 1989).
Essas versões têm aparecido, em diferentes idiomas, pela motivação legítima, de colocar a Bíblia ao alcance do povo, em termos de estilo e vocabulário. Todas, portanto, usam o mesmo conjunto de manuscritos aceitos universalmente e não têm diferenças de conteúdo. Todas procuram ser fiéis aos originais grego, hebraico e aramaico. O que muda é o público mirado e a metodologia de tradução empregada. O ideal é que o leitor tenha mais de uma versão, porque o sentido fica mais claro para quem lê dependendo de onde ele está, seja em termos existenciais, espirituais e educacionais.
 
FALTA DE ACURÁCIA
O cientificismo predominante destila outra certeza: a Bíblia não é precisa nos seus textos, falhando nas informações que traz sobre a natureza e nas datas que propõe ou sugere para os eventos de que trata. Ela precisa ser corrigida para poder ser lida, dizem os críticos.
O que estes críticos afirmam é que o que a Bíblia diz é, em princípio, inacurado, se não houver outra fonte que o confirme. Este tipo de epistemologia, de cepo positivista, precisa de uma discussão no campo próprio.
Há muitas certezas que a história e a arqueologia vão incinerando.
As ciências podem fazer suas afirmações negativas, mas precisam ser mais humildes. Podem duvidar metodologicamente, mas deixar aberta a possibilidade de o fato narrado pela Bíblia ter ocorrido como narrado.
Eis alguns exemplos. 
Há no livro de Números uma lista dos lugares onde Israel acampou na sua fuga do Egito para Canaã. A narrativa era vista como mitológica, até que nos muros do antigo templo egípcio de Amun, em Karnak, foi encontrado um mapa que arrola esses mesmos lugares e na mesma ordem em que aparecem em Números 33. 
O livro de Juízes conta como Sansão destruiu um templo filisteu ao se posicionar entre seus dois pilares e os puxar com as mãos (Juízes 16.25-31). O relato era visto como folclórico, até que escavações num templo filisteu próximo de Tel Aviv, em 1972, mostrou que era sustentado por dois pilares de madeira, tal como o da Bíblia. Eles ficaram próximos até serem tocados ao mesmo tempo, como Sansão fez.
No final do século 20, foi descoberta em Tel Dan (Israel) uma tábua de pedra comemorativa das vitórias de um rei estrangeiro sobre os reis israelitas da “Casa de Davi”. Até então Davi era tido como uma figura mítica. A partir daí, muitos eruditos passaram a crer que Davi fundou realmente uma dinastia real, como conta a Bíblia (2Samuel 7).
Até 1961, não havia qualquer evidência arqueológica que Pôncio Pilatos governou a Judeia, como informa o Novo Testamento (Lucas 3.1). Nesse ano, escavou-se um teatro antigo na costa de Israel e se encontrou uma inscrição  com o nome e o cargo de Pilatos. [Os exemplos são mencionados no site da Bible Society: http://www.biblesociety.org.uk]
A acurácia de Lucas é demonstrada em todas as suas menções de nomes e lugares. Por exemplo, ele diz que Lisânias era o tetrarca de Abilene. Durante séculos os estudiosos questionaram a credibilidade Lucas por isto, porque o único Lisânias conhecido viveu 40 anos antes de Cristo. No entanto, foi descoberta uma uma inscrição do tempo do imperador Tibério (14-37 d.C.) que mencionava Lisânias como “o tretrarca de Abilene”. [Há outras informações sobre a acurácia de Lucas em http://www.allaboutthejourney.org/saint-luke.htm]
Diferentemente do que ensinavam os positivistas, testemunho uno não é necessariamente testemunho nulo.
Por outro lado, não podem os cristãos fazer que a Bíblia diga o que não ela não diz. A Bíblia, por exemplo, não data a criação do universo e da terra, embora alguns cristãos o façam, esquecidos que esta é uma matéria de competência exclusiva das ciências, que debatem, corrigem, debatem e corrigem essas datas indefinidamente, porque é o seu negócio: afirmar, duvidar, afirmar, duvidar.
 
DIREITOS HUMANOS NA BÍBLIA
O idealismo dos direitos humanos vê na Bíblia uma adversário. Na verdade, no passado e no presente, nossos instintos, desejos e interesses são muito fortes, podendo condicionar nossas práticas, mesmo que a Bíblia nos sugira outras perspectivas. Muitas vezes a Bíblia é julgada pelo que os seus leitores fazem com ela.
Um caso emblemático é da escravidão, que (no caso, de negros) foi lamentavelmente justificada assim, por alguns cristãos do século 19:
. “A escravidão foi estabelecida por decreto do Todopoderoso Deus, sancionada na Bíblia, em ambos os Testamentos, de Gênesis a Apocalipse” (Jefferson Davis, presidente dos Estados Confederados da América)
. “Não um verso sequer na Bíblia inibindo a escravidão, mas muitos regulamentando-a. Concluímos então que ela não é imoral” (Rev. Alexander Campbell)
. “O direito de manter escravos está claramente estabelecido nas Sagradas Escrituras, por preceito e por exemplo”. (Rev. R. Furman)  A condenação de Cão marcou seus descendentes africanos. A mão do destino uniu sua cor e destino. O homem não pode separar o que Deus ajuntou. [HAMMOND, James Henry Hammond. Ontario Consultants on Religious Tolerance. Slavery in the Bible. Disponível em .]
Como se vê, nos séculos 18 e 19, nos Estados Unidos, “o texto de Gênesis 9.18-27 transformou a maldição de Cão no mito fundamental da degradação coletiva, demonstrada como uma razão divina para a condenação de geração de pessoas de pele escura da África à escravidão” [LEE, Felicia R. From Noah’s Curse to Slavery’s Rationale. Disponível em
Hoje podemos nos perguntar como se fez isto com a Bíblia, se nela lemos que em Cristo não há livre, nem escravo, e se vemos o preceito e o exemplo do apóstolo Paulo ao falar de Onésimo a Filemon.
A lista de equívocos (crimes até) cometidos em nome de Deus e de sua Palavra não é pequena, podendo ser empobrecida com as atitudes manifestas contras as mulheres (tidas biblicamente como inferiores, não podendo, por exemplo, em certos círculos, ser ordenadas ao ministério pastoral), a defesa do Estado moderno de Israel (que é idolatrado como ainda povo eleito e como se o Messias Jesus já não tivesse vindo) independentemente das razões de seus ataques aos palestinos e toda a forma de violência usada para “defender” Deus (embora seja para defender territórios e ideologias próprios).
Deus não pode ser responsabilizado pelo que fazem os que crêem (até mesmo sinceramente) nEle.
A Bíblia não pode ser responsabilizada pelo que fazem os que a lêem (mesmo sinceramente). É por isto que a Bíblia deve ser lida com a coragem, coragem para confrontar nossa ideologia.
 
A RAZÃO CATIVA
O relativismo crescente faz outra observação: a Bíblia é um livro antigo como outras obras antigas, nada tendo de normativo para o ser humano. Por que uma pessoa deve orientar sua vida pelos orientações desse livro?
Trata-se de uma decisão.
Há uma resposta mediada tão somente pela razão. A Bíblia é um livro milenar, logo com uma sabedoria milenar. Deve ser lido como um livro essencial para a compreensão do ser humano e de sua civilização. Neste sentido, está em pé de igualdade com todos os grandes códigos da humanidade, religiosos ou leigos.
Há uma resposta mediada pela fé, que não abre mão da razão: a Bíblia é a Palavra de Deus para o homem, inspirada por Ele para servir de guia para indivíduos e nações.
Se, para o leitor, a razão é rainha plena, como aceitará ele a idéia de que o temor (reverência) do Senhor é o princípio (caminho) da sabedoria?
Se, para o leitor, não pode haver verdade absoluta, porque cada um tem o direito de chamar de verdade o que acha que é, como concederá ele que haja um livro inspirado por Deus e com a capacidade de levar alguém “a salvação mediante a fé em Jesus Cristo” (cf. 2Timóteo 4.15, 16)?
Se, para o leitor, a moralidade é produto do consenso entre seres humanos de determinada comunidade ou povo, como tomará ele os mandamentos de Deus, apresentados na Bíblia, como absolutos e atemporais para si e para os povos?
Se, para o leitor, o homem é capaz de encontrar seu próprio caminho para a felicidade, como admitirá ele a idéia de que todos os seres humanos carecem de salvação e de que há um Salvador único para toda a humanidade (Jesus Cristo)?
No entanto, se, para o leitor, a razão não é perfeita, porque humana, logo passível de erro, e porque condicionada culturalmente (os argumentos nazistas, por exemplo, eram todos racionais, mas todos hoje os achamos irracionais, por seus resultados e também porque perderam…), faz sentido aceitar a idéia, proposta na Bíblia (Salmo 19.9, Provérbios 1.7, 14.27, 19.23, 2Coríntios 10.5) de que a razão é aperfeiçoada (não negada) pela fé.
Se, para o leitor, Deus existe e se comunica, Ele usou os recursos disponíveis (revelação e inspiração) para orientar o ser humano em sua caminhada, resultando num Livro totalmente atípico que, embora escrito ao longo de séculos e por distintas pessoas em diferentes comunidades e culturais, mantém uma unidade.
Se, para o leitor, as evidências da incompetência humana para a construção de uma sociedade justa são claras, em função dos instintos, desejos e interesses, tanto individuais quanto coletivos (como demonstrados na guerra), é prova de sabedoria tomar os mandamentos de Deus, apresentados na Bíblia, como sendo os seus absolutos para nós, independentemente de condicionantes temporais ou regionais (o que demanda separar princípios, atemporais e a-regionais, e normas (válidas mas extinguiveis no tempo e no espaço).
Se, para o leitor, Deus existe e se relaciona amorosamente com os seres criados, é admissível que Ele tenha enviado, como relata a Bíblia, um Salvador singular (plenamente divino, plenamente humano), como Sua providëncia para o resgate da dignidade humana.
Temos que ser honestos: a Biblia não fala sobre a Bíblia, embora fale da Palavra de Deus. No entanto, sendo ainda honestos, o Novo Testamento fala sobre o Antigo Testamento e o considera como Palavra de Deus.
O Antigo Testamento refere-se à palavra de Deus como a Sua vontade expressa e capaz de orientar a vida do crente (Salmo 119.105). Um dos provérbios é verdadeiro, ao dizer, neste contexto: “Cada palavra de Deus é comprovadamente pura” (Provérbios 30.5) e também reta (Salmo 33.4). Essa vontade era comunicada através de revelações diretas a pessoas, em contextos específicos, sobretudo aos patriarcas (Gênesis 15.1, Êxodo 9.20, Números 36.5, Josué 8.6), aos líderes do povo (1Reis 6.11) e sobretudo aos profetas (1Samuel 15.10, (1Samuel 9.27, 1Reis 12.22, 1Crônicas 17.3, Isaías 1.10, Isaías 66.5, Jeremias 1.4, Ezequiel 38.1, Miquéia 1.1, Ageu 1.1, Zacarias 1.1, dentre tantos outros).
O termo, portanto, é usado num sentido amplo, mas não inclui, por razões óbvias, a idéia de um texto organizado. A palavra de Deus é, assim, uma vontade que se cumpre na história (Salmo 105.19), organizando-se no conjunto dos oráculos de Deus, as suas determinações (Esdras 1.1), as falas específicas, as manifestações da natureza (Salmo 147.18) e os mandamentos, inicialmente orais e depois escritos (Números 15.31, Deuteronômio 5.5). Deus fala. O Antigo Testamento é o registro desta comunicação. Deus intervém na história. Jesus lia o Antigo Testamento, como o provam as inúmeras citações que faz. O Novo Testamento é o registro desta comunhão divino-humana. Jesus é a personagem central do Novo Testamento.
Há muitas evidências na própria Bíblia (como o que Paulo escreve em 2Timóteo 3.16-17 — “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra”), de que é a Palavra de Deus para o ser humano, mas a maior é a transformação que ela produz em nossas vidas quando a recebemos como o que é: Palavra de Deus.
 
BÍBLIA: MODO DE LER
Peço licença para continuar este capítulo na primeira pessoa, testemunhalmente.
Leio a Bíblia como uma obra de arte. Arte, para mim, é uma obra que tem dois autores: o primeiro, que a produziu, e o segundo, que fica diante dela, seja um poema, um conto, uma pintura, uma canção, uma escultura. É sempre obra aberta, que posso interpretar. 
Posso ser livre, completamente livre em minha interpretação, ou posso chamar o Espírito Santo para me conduzir a uma leitura que não só me dê uma compreensão mais profunda do texto, mas, sobretudo, inspire-me a viver segundo a orientação que transborda do texto. Uma boa hermenêutica (arte de ler e interpretar a Bíblia), portanto, é sempre pneumatizada (soprada pelo Espírito Santo). Não sou anulado, quando a leio assim: sou bem orientado.
Abro Gênesis e leio a magnífica história de Isaque subindo a colina para um sacrifício que não houve. Qual é a moral da história? Não está no texto, nem no inexistente rodapé. A moral da história é a que eu lhe der. Só Deus mesmo podia inspirar um livro assim.
 
Leio a Bíblia como uma bula de remédio, com letras gigantes. A Bíblia é um conjunto de cápsulas para a vida. Devemos tomá-las porque vieram de Deus para nós. Devemos tomá-las com regularidade, para que o efeito possa se prolongar. Devemos tomá-las sabendo que vão provocar reações adversas no nosso corpo e no corpo de nossa sociedade. Devemos tomá-las certos que algumas são amargas.
Posso ser negligente e não tomar o remédio e aí preciso saber que continuarei enfermo. Uma Bíblia na caixa, sem ser aberta, é como uma caixa de remédios na gaveta. O remédio perde a validade e vai para o lixo. A validade das verdades bíblicas perde seu efeito e nos deixa sem proteção diante dos ataques das baterias internas e externas do mal.
 
Leio a Bíblia como uma radiografia de mim mesmo. Sei que há textos na Bíblia cheios de sangue e crueldade. Alguns mal-intencionados chegam a condená-la. Um desses, grande escritor, disse também que a humanidade não merece a vida. Em que lugar aprendemos melhor isto, senão na Bíblia? Por que essa hipocrisia: seria melhor um texto róseo, onde as coisas tivessem bem? Não: prefiro um texto que mostre quem sou, capaz de fazer o que herói e anti-heróis da Bíblia fizeram. Prefiro um texto que não ignora quem sou eu, mas me mostra quem posso ser (um homem em sintonia com Deus, comigo mesmo e com o próximo). Prefiro um livro que fala do meu presente (cheio de sonhos, para mim e para os outros). Prefiro um livro que fala do futuro (uma eternidade plena de vida plena) que posso ter.
 
ISRAEL BELO DE AZEVEDO