A Úlima Palavra, 2 — DEUS EM NÓS E ALÉM DE NÓS

alt

ISRAEL BELO DE AZEVEDO

“Certa vez, tendo sido interrogado pelos fariseus sobre quando viria o Reino de Deus, Jesus respondeu: “O Reino de Deus não vem de modo visível, nem se dirá: ‘Aqui está ele’, ou ‘Lá está’; porque o Reino de Deus está entre [em — ou — dentro de] vocês”. (Lucas 17.20-21  — NVI)
 
“Vocês não sabem que são santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vocês? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; pois o santuário de Deus, que são vocês, é sagrado”. (1Coríntios 3.16-17 — NVI)
 
O cristianismo afirma a existência de um Deus diferente do ser humano.
O cristianismo reafirma a existência de um Deus que transcende ao ser humano.
O cristianismo supõe que um Deus compreendido não é mais Deus. (Cf. Gerhard Tersteegen [1697-1769])
O cristianismo pressupõe que Deus é “totalmente outro”  (Rudolf Otto [1869-1937]) em relação ao ser humano, uma vez que é mistério inexprimivel e está acima de todas as criaturas, cabendo diante dEle, absoluto, por parte do ser humano, o deslumbramento e a fascinação, o ajoelhamento e a adoração. (Cf. OTTO, Rudof. The idea of the holy: an inquiry into the non-rational factor in the idea of the divine and its relation to the rational. London: Oxford University Press, 1923, p. 12-40).
Por esta razão, há muitos séculos João Crisóstomo (347-407) ensinava que “é uma impertinência dizer que Aquele que está além da percepção (…) pode ser compreendido por nós, vermes mortais, ou entendido e abarcado pelas fracas forças de nossa compreensão”.
Mas, será mesmo o homem um “verme mortal”? Pode ser mortal, mas será verme o homem que constrói túneis e pontes de vários quilômetros, que faz viagens interplanetárias, que faz cirurgias de órgãos humanos fora do corpo humano, que cria artefatos capazes de fazer o homem saber o que se passa no globo terrestre em tempo real?
 
TEORIA E PRÁTICA DO NARCISISMO CONTEMPORÂNEO
As coisas não são bem assim. A partir da segunda metade do século 20, chegando ao século seguinte, essa idéia de um Deus totalmente outro passou a conviver com o narcisismo, em que muitas pessoas crêem que Ele é uma “energia mental que pervade tudo” (BROWN, Dan. O símbolo perdido, p. 501), tendo sido o ser humano criado segundo esta imagem. Seu potencial é ser Deus ou ser como Deus (conforme a sedução que desembocou no primeiro pecado, segundo Gênesis 3.5). Para muitas pessoas, “nós somos criadores e ainda desempenhamos um papel primitivo de ‘criados’.  Nós nos vemos como ovelhas necessitadas e servidas pelo Deus que nos fez. Nós nos ajoelhamos quais crianças aterrorizadas, mendigando por ajuda, perdão e felicidade. Todavia, uma vez que compreendamos que somos realmente criados à imagem do Criador, começaremos a compreender que nós, também, podemos ser Criadores. Quando compreendermos este fato, as portas escancararão amplamente o potencial humano”. (BROWN, Dan,  p. 501) Por isto, está próxima “a grande promessa” de “o homem se tornar Deus”. (BROWN, Dan,  p. 498) 
Não são poucos os que crêem nestas idéias postas por personagens do romance “O símbolo perdido”, de Dan Brown, que podem ser inscritas no rol geral da Nova Era.
Em linhas gerais, os defensores da Nova Era são:
. monistas — Tudo o que existe deriva de uma fonte única de energia divina;
. panteístas — Tudo o que existe é Deus e Deus está em tudo o que existe. Por isto, o ser humano é divino. Todos somos Deuses. Deus não é revelado num texto sagrado, como a Bíblia, nem existe num céu distante; antes, Deus está dentro do ser humano e através de todo o universo; Deus é o todo;
. panenteistas — Deus é tudo o que existe. Ele está no universo todo, mas transcende o universo; o todo está em Deus;
. universalistas — As religiões são todas diferentes caminhos para Deus. A verdadeira religião contém elementos de todas as religiões. (Como diz uma personagem de “O símbolo perdido”, “Deus é plural, porque as mentes do homem são plurais” — BROWN, Dan, p. 505)
 
Uma pesquisa feita no final do século 20, nos Estados Unidos, indicou o seguinte, no quadro geral das idéias da chamada Nova Era sobre religião.
 
. 7% creem que os cristais são fontes de cura ou de poder energizante;
. 8% crêem em astrologia como uma método de predição do futuro;
. 8% definem Deus como “a realização total do potencial humano de uma pessoa”.
. 9% crêem que as cartas do tarô são confiáveis na tomada de decisões;
. 11% crêem que Deus é um elevado estado da consciência que uma pessoa pode alcançar;
. 25% crêem num conceito não-tradicional de Deus. (Fonte: BARNA, George. The Index of Leading Spiritual Indicators. Dallas: Word, 1996.)
 
Partindo do Salmo 8, a personagem lembra que “o ser humano não foi criado inferior a Deus”, que “é uma energia mental que pervade tudo”. Precisamos saber que “nós, como seres humanos, fomos criados nesta imagem”. (BROWN, Dan, p. 501) A aplicação é de natureza prática: “Nossos cérebros, se usados corretamente, pode gerar poderes que são literalmente sobre-humanos. A Bíblia, a exemplo de muitos textos antigos, é uma detalhada exposição da máquina mais sofisticada já criada, a mente humana”. (BROWN, Dan, p. 500)
Dan Brown, por meio de suas personagens, apresenta com clareza e veemência outras idéias, muitas vezes a partir de versículos das Escrituras bíblicas, que “estão bem conscientes do poder latente em nós e pedem que lancemos mão deste poder, que construamos os templos de nossas mentes”. (BROWN, Dan, p. 499)
 
Esta sugestão (templos de nossas mentes) é baseada em 1 Coríntios 3.16-17, que estabelece:
 
“Vocês não sabem que são santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vocês? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; pois o santuário de Deus, que são vocês, é sagrado”. (1 Coríntios 3.16-17 — NVI)
 
DEUS EM NÓS
O início do novelo, para o autor, no entanto, começa em Lucas 17.20-21 (BROWN, Dan, p. 194), que diz o seguinte:
 
“Certa vez, tendo sido interrogado pelos fariseus sobre quando viria o Reino de Deus, Jesus respondeu: “O Reino de Deus não vem de modo visível, nem se dirá: ‘Aqui está ele’, ou ‘Lá está’; porque o Reino de Deus está entre vocês”.  (Lucas 17.20-21  — NVI)
 
A expressão pode ser tanto  “o Reino de Deus está entre vocês” quanto “o Reino de Deus está em vocês” ou “o Reino de Deus está dentro de vocês”. (A versão clássica em em inglês — a King James Version — traz “em”, seguindo uma linha de manuscritos.) Tendo feito a sua escolha pelo “dentro”, “O símbolo perdido” vaticina. “O reino de Deus está em vocês. (…) Assim mesmo, a humanidade continua olhando para o céu em busca da face de Deus”. (BROWN, Dan, p. 378)
 
O abono para estar interpretação do dito de Jesus vem de Lev Tostoi, usado do mesmo modo (atomisticamente, isto é, de modo isolado), como são citados tantos autores quantas referências bíblicas.
Na realidade, nada em Tolstoi, que tinha uma visão bastante particular dos Evangelhos, autoriza a conclusão da personagem criada por Dan Brown. Em 1893, Tolstoi escreve: “O único sentido da vida é servir a humanidade, colaborando para o estabelecimento do reino de Deus, o que não poderá ser feito se cada um dos homens não reconhecer e não professar a verdade. (…) Tudo o que podemos saber é aquilo que nós, que fazemos parte da humanidade, devemos ou não fazer para que venha o reino de Deus, e isto sabemos. Basta que cada um comece a fazer o que deve fazer e deixe de fazer o que não deve fazer; basta que coloquemos em nossos atos toda a luz que há em nós, para que em breve se estabeleça o reino de Deus, prometido, e para o qual tende a alma de cada homem”. (TOLSTOI, Leon. O Reino de Deus está em vós. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1994, p. 125.)
 
O REINO QUE SE RECEBE
Entendamos o texto bíblico, que fala não sobre Deus em nós, mas sobre o Reino de Deus em nós, como fica claro pela leitura.
 
“Certa vez, tendo sido interrogado pelos fariseus sobre quando viria o Reino de Deus, Jesus respondeu: “O Reino de Deus não vem de modo visível, nem se dirá: ‘Aqui está ele’, ou ‘Lá está’; porque o Reino de Deus está entre [em ou dentro de] vocês”. (Lucas 17.20-21  — NVI)
 
Como o demonstra a pergunta feita, o conceito dos que circundavam Jesus sobre o Reino de Deus era o de um governo político que se instauraria pela força das armas ou pelo poder de Jesus.
Quase sempre por Jesus, o Reino de Deus (ou Reino dos céus) é mencionado cem vezes nos Evangelhos (47 em Mateus, 15 em Marcos, 34 em Lucas e 4 em João). Há 22 menções nos demais livros do Novo Testamento.
Tomemos o Evangelho de Lucas, em que três referências não vêm dos lábios de Jesus. Das 31 menções, oito se referem claramente ao fim da história (quando Jesus voltará para julgar o mundo — cf. Lucas 9.27, 13.28, 13.29, 21.31, 22.16, 21.31, 22.18 e 22.30). O ministério de Jesus consistiu em anunciar o Reino de Deus  (Lucas 8.1, 9.2), tarefa que ainda hoje cabe aos cristãos (Lucas 4.43, 9.60 e 62, 18.29). Este anúncio foi feito através da cura (Lucas 9.11) e do ensino, sobretudo por meio de parábolas (Lucas 13.18 e 20; 19.11)
O Reino de Deus era algo radical, diferente de tudo que se vira até então (Lucas 16.16). Por esta razão, muitos não o entenderiam e nem o quereriam (Lucas 18.10). Ele não se manifestaria com riqueza ou poder (Lucas 6.20, 7.28).
Embora alguns contemporâneos não notassem, o Reino de Deus chegou com Jesus. A expressão mais comum, proferida por Jesus, era que o Reino estava próximo (Lucas 10.9 e 11, 11.20). Só os corações arrependidos poderiam recebe-lo, porque só os arrependidos se assemelham às crianças em sua confiança, simplicidade e prontidão (Lucas 18.16 e 17).
Quando Jesus diz que o Reino de Deus está entre/em nós, não está falando sobre “nós”, mas sobre Ele. O tempo da decisão está chegando. Tão próximo está que já está dentro de nós. Não há porque recusa-lo.
Todas as menções de Jesus ao Reino podem ser resumidas numa expressão, que Ele não disse diretamente: “Eu sou o Reino de Deus”. O início do Seu ministério deixa isto bastante claro: “’O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor’. Então ele fechou o livro, devolveu-o ao assistente e assentou-se. Na sinagoga todos tinham os olhos fitos nele; e ele começou a dizer-lhes: ‘Hoje se cumpriu a Escritura que vocês acabaram de ouvir’”. (Lucas 4.18-21)
Ao se revelar, Jesus fazia um convite. Quando disse estas palavras, a reação foi imediata. Mais tarde, com outras palavras, fez e repetiu o mesmo convite: “Busquem, pois, o Reino de Deus, e essas coisas lhes serão acrescentadas”. (Lucas 12.31) Todos tomaram suas decisões. Uns buscaram e outros não buscaram este Reino.
Quando lemos que podemos ser Deus, temos que olhar pára nós e olhar para Deus.
 
O DEUS DA BÍBLIA
Temos que olhar o para o Deus revelado nas Escrituras Sagradas. 
Temos que olhar para o Deus revelado em e por Jesus Cristo. Só podemos falar de Deus de modo completo falando de Jesus.
O cristianismo pressupõe que há o único Deus, razão por que, além dEle, “desde os tempos antigos ninguém ouviu, nenhum ouvido percebeu e olho nenhum viu outro Deus”. (Isaías 64.4; cf. 1Coríntios 2.9). (A propósito, devemos tomar cuidado para não de Deus como um Deus, quando deve ser o Deus. Em João 1.1, o original grego diz: “No princípio era o verbo e o verbo era o Deus”.)
O Deus revelado nas Escrituras é soberano (“Pois o Senhor, o seu Deus, é o Deus dos deuses e o Soberano dos soberanos, o grande Deus, poderoso e temível, que não age com parcialidade nem aceita suborno” — Deuteronômio 10.17), sábio (“Isso tudo vem da parte do Senhor dos Exércitos, maravilhoso em conselhos e magnífico em sabedoria” — Isaías 28.29) e bondoso (Deus “ama a justiça e a retidão; a terra está cheia da bondade do Senhor” — Salmo 33.5) ao mesmo tempo. Um homem muito poderoso pode imitar a soberania de Deus, mesmo limitadamente. Um homem ponderado e equilibrado pode imitar a bondade de Deus, mesmo que seu conhecimento seja restrito. Um homem generoso pode imitar a bondade de Deus, mesmo que não passe das intenções. Nenhum homem, no entanto, não pode ser soberano completamente (porque por mais poderoso que seja, não pode vencer a morte), não pode ser sábio plenamente (porque, por mais que pondere e por mais que estude, sempre terá que aprender, o que revela que não sabe ainda tudo) e não pode ser bom absolutamente (porque não será bom o tempo todo). Mais ainda: nenhum homem pode ser soberano, sábio e bom ao mesmo tempo.
Não há, portanto, como o homem chegar a ser Deus assim. Não há potencialidade nele que o torne soberano, sábio e bondoso de modo absoluto e ao mesmo tempo, quanto mais eterno (sem princípio e sem fim).
A propósito, quando a Bíblia fala em deuses é sempre para mostrar que ou que são invenções humanas ou que são deuses pagãos, os quais estão submetdos ao Único (Êxodo 18.11; Salmo 95.3), porque não são criadores (Salmo 65.5), mas criados (Salmo 115). No entanto, há uma menção que demanda leitura cuidadosa, porque citada por Jesus (João 10.34). Trata-se do Salmo 82, que diz: “Eu disse: Vocês são deuses, todos vocês são filhos do Altíssimo”. Quando lemos todo o salmo, desfaz-se qualquer outra interpretação:  
É Deus quem preside à assembléia divina; no meio dos deuses, ele é o juiz.  

“Até quando vocês vão absolver os culpados e favorecer os ímpios?
Garantam justiça para os fracos e para os órfãos; mantenham os direitos dos necessitados e dos oprimidos.   
Livrem os fracos e os pobres; libertem-nos das mãos dos ímpios.  
Eles nada sabem, nada entendem. Vagueiam pelas trevas; todos os fundamentos da terra estão abalados.  
Eu disse: Vocês são deuses, todos vocês são filhos do Altíssimo.   
Mas vocês morrerão como simples homens; cairão como qualquer outro governante.”   

Levanta-te, ó Deus, julga a terra, pois todas as nações te pertencem. 
O poeta imagina uma assembléia de deuses pagãos e compara os juizes com eles, para lamentar que não estejam julgando corretamente, embora se considerem tão poderosos e justos como os deuses são assim considerados. Esses juízes devem descer dos pedestais e julgar corretamente, já que morrerão como qualquer pessoa e serão julgados como qualquer pessoa.

Que homem pode ser Deus?
O Deus revelado em Jesus é o Único Deus (Mateus 23.29), podendo os seres humanos te-lo como Pai (Mateus 5.16) e amigo (João 15.15), ao ponto de dar Sua vida por esses amigos (João 15.13) por amor, apenas por amor. 
Trata-se de um Pai e amigo poderoso, em que nada lhe é impossível (Marcos 14.36). Ele conhece as necessidades dos Seus filhos (Marcos 6.8) e considera todos os seus pedidos (Mateus 6.6, 6.26). Por isto, até hoje está em ação (João 5.17) para que a vida lhes transborde (João 10.10).
Bondoso (Lucas 6.36), Ele perdoa aqueles que O ofendem (Mateus 6.14) e recebe o filho que voluntariamente O abandona e não exige explicações quando decide voltar arrependido para casa (Lucas 15.18).
Amoroso (João 16.27), Ele deseja a companhia de todos os seres humanos por toda a eternidade, razão pela qual enviou o seu filho (João 3.16).
 
Nosso conceito sobre Deus e sobre o homem precisa ser bíblico, derivado, portanto, das Escrituras reveladas.
A Bíblia anuncia que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1.26), criado com uma beleza menor apenas que a do próprio Deus (Salmo 8.5). Chamado para a harmonia com o Criador, escolheu a rebeldia; desenhado para amar seus iguais, decidiu odiar; destinado a cuidar da terra, preferiu consumi-la. A beleza do homem se foi quando ele escolheu o pecado como seu senhor (Romanos 6.17). O pecado enjaula o homem e encapsula sua beleza. Parte do homem quer fazer o que é bom, mas o seu senhor luta contra ele. Como diz Tostoi, o homem sabe o que precisa fazer, mas, como diz Paulo, não o fará por causa do pecado que habita nele (Romanos 7.17).
Este homem pode ser Deus?
 
O SANTUÁRIO SAGRADO
Deus, por meio de Jesus Cristo, começou a obra de redenção, fazendo uma ponte entre o homem pecador e o Deus santo. Todos os que crêem em Jesus estão a caminho da construção deste novo homem, que só acontecerá quando Ele mesmo voltar (na Sua segunda vinda), para pôr fim a esta história e dar início a uma nova (2Pedro 3.13). Esta é a esperança cristã. 
O otimismo de contorno pagão diz ainda que “usamos diferentes nomes, diferentes rostos e diferentes orações, mas Deus era a constante universal para o homem”, pois, na verdade, Deus era o símbolo que nós compartilhávamos, o símbolo de todos os mistérios da vida que não compreendíamos”. Isto aconteceu “até o presente”  (BROWN, Dan, p. 509), mas, a partir de agora, vai começar aqui um novo tempo.
Basta que o homem saiba que é “santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita” nele, “santuário sagrado” de Deus. O texto de Paulo na primeira carta aos Corintios diz:
 
“Vocês não sabem que são santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vocês? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; pois o santuário de Deus, que são vocês, é sagrado”. (1Coríntios 3.16-17 — NVI)
 
Jesus também diz que Deus vive conosco e habita em nós (João 14.17). Tiago declara a mesma verdade (Tiago 4.5).
Como conciliar estes textos de Jesus, de Tiago e de Paulo com outro, do mesmo apóstolo Paulo, que diz, a partir de sua própria experiência: “Sei que nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne”. A razão: “tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo”? (Romanos 7.18).
Lendo todo o capítulo 3 de 1Coríntios, notamos que Paulo se refere à igreja e visava insistir na necessária unidade da igreja. Neste texto, então, o santuário de Deus não é o indivíduo, mas a comunidade. Esta comunidade devia manter a sua unidade, sem disputas de qualquer espécie. Os que soubessem mais segundo os padrões desta era (verso 18) deviam confessar a sua ignorância de Deus, sem se acharem o máximo (verso 21), percebendo, então, que eram iguais aos que menos sabiam segundo os padrões desta era. Ninguém devia ensinar uma verdade que negasse o fundamento da fé, que é Jesus Cristo (verso 11). Temos todos um mesmo Senhor e não somos senhores de ninguém (verso 23).
A própria leitura de todo o texto é uma advertência contra o uso de versículos ou parte de versículos, que é, na verdade, um uso indevido, às vezes, desonesto.
 
A DIVINA HABITAÇÃO
Com alguma liberdade, contudo, podemos deixar o apóstolo se referindo a cada indivíduo que crê em Jesus como Senhor e Salvador, que é para quem ele escreve, como santuário sagrado de Deus. Podemos, porque ele mesmo o faz mais adiante.
 
“Acaso não sabem que o corpo de vocês é santuário do Espírito Santo que habita em vocês, que lhes foi dado por Deus, e que vocês não são de si mesmos?” (1Coríntios 6.19)
 
O entorno da preocupação paulina é visceralmente individual. No capítulo 3, Paulo estava preocupado com a comunidade. Aqui, com o indivíduo. Veja toda a pericope:
 
“Vocês não sabem que os seus corpos são membros de Cristo? Tomarei eu os membros de Cristo e os unirei a uma prostituta? De maneira nenhuma! 
Vocês não sabem que aquele que se une a uma prostituta é um corpo com ela? Pois, como está escrito: “Os dois serão uma só carne”. Mas aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele. 
Fujam da imoralidade sexual. Todos os outros pecados que alguém comete, fora do corpo os comete; mas quem peca sexualmente, peca contra o seu próprio corpo. 
Acaso não sabem que o corpo de vocês é santuário do Espírito Santo que habita em vocês, que lhes foi dado por Deus, e que vocês não são de si mesmos? Vocês foram comprados por alto preço. Portanto, glorifiquem a Deus com o seu próprio corpo”. (1Coríntios 6.15-20)
O apóstolo Paulo procura mostrar que o ser humano é uma unidade. Diferentemente do que ensinavam os libertinos, Paulo lembra que aquilo que o corpo faz tem um significado espiritual. Em lugar de falar da ilimitada potencialidade humana, o apóstolo discorre sobre as limitações do ser humano e sua capacidade de pecar.
Somos “corpos mortais”. A potencialidade destes corpos não está no seu audodesenvolvimento ou no aumento do seu conhecimento, mas na presença do Espírito de Deus nesses corpos, como diz o mesmo apóstolo: “E, se [ou: uma vez que] o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vocês, aquele que ressuscitou a Cristo dentre os mortos também dará vida a seus corpos mortais, por meio do seu Espírito, que habita em vocês” (Romanos 8.11)
Precisamos entender o que é esta habitação.
Devemos ser humildes para afirmar que esta habitação em nós é um mistério, porque Deus continua sendo transcendente, isto é, completament diferente de nós, acima de nós. Mas Jesus também não era transcendente e imanente ao mesmo tempo, confundindo tantas pessoas? Deus continua sendo Deus, sem fusão, e nós continuamos sendo humanos, sem confusão. Esta habitação conosco não é uma conquista, mas um dom, um dom de Deus para nossa vida exceda. Na verdade, como ensina o apóstolo Paulo, “quem vive segundo a carne tem a mente voltada para o que a carne deseja; mas quem vive de acordo com o Espírito, tem a mente voltada para o que o Espírito deseja”. (Romanos 8.5)
Se não podemos saber como se dá esta presença, podemos saber o que acontece quando ela se dá. “Se o Espírito não queimar, ele não existe”.  (MANNING, Brennan. Convite à loucura. São Paulo: Mundo Cristão, 2007, p. 147.)
Quando está presente em nós, o Espírito Santo “nos torna e nos mantém conscientes (…) de que somos filhos de Deus pela graça por meio de Jesus Cristo. Esta é a obra do Espírito Santo em nos prover de fé, segurança e alegria”. O Espírito Santo ainda, quando presente em nós, “nos leva a olhar para Deus como nosso pai, ensinando-nos a demonstrar diante dele uma coragem respeitosa e uma confiança ilimitada, natural dos filhos que têm certeza do amor de seu adorado Pai. Esta é a obra do Espírito Santo de nos fazer clamar ‘Aba, Pai'”. (PACKER, J.I. O conhecimento de Deus. Viçosa: Ultimato, 2008, p. 257)
Com o Espírito morando em nós, somos completamente dependentes dEle e não de nós mesmos. Pelo Espírito morando em nós, Cristo reside na mesma casa da nossa vida.
Cristo se torna o nosso “eu”, como aprendemos com o apóstolo Paulo, quando se biografou em termos que nos devem descrever: “Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gálatas 2.20)
Esta autobiografia, para ir além da poesia, demanda perguntas diretas sobre o nosso cotidiano:
 
. Quando nos relacionamos com outras pessoas, na paz ou no conflito, Cristo se relaciona com essas pessoas ou somos ainda nós?
. Quando enfrentamos dificuldades, nós as enfrentamos com a mesma sensibilidade e confiança de Cristo?
. Quando abrimos a nossa boca, Cristo fala ou falamos nós mesmos?
. Quando olhamos, olhamos “pelos olhos de Jesus Cristo”? (MANNING, Brennan. Convite à loucura. São Paulo: Mundo Cristão, 2007, p. 46.)
 
Sem o Espírito de Cristo em nós, podemos fazer grandes progressos infotecnoeconômicos, e só, em que pese o que diga o otimismo pagão diz outra coisa: “A segunda vinda é a vinda do homem, o momento em que a humanidade finalmente constrói o templo de sua mente”. (BROWN, Dan, p. 498)
O horizonte, quando olhamos para ele, desde os primórdios do ser humano, não nos permite ver progresso moral ou espiritual, que é o progresso que um terremoto não transforma em poeira.
 
PARA UMA CONCLUSÃO
1. Tenhamos em mente que Deus conosco, da Bíblia e da experiência, está também além de nós.
A idéia de que o homem pode transcender, até ser Deus, é uma marca de nossa cultura narcisística. No entanto, precisamos afirmar e reafirmar que “somente a glória do Criador é suficientemente forte para nos retirar da consciência extrema do eu. O Deus que que se revela na Bíblia é primeiramente o outro na essência de seu ser. Ele confunde todas as categorias e é, de certa forma, intocável. O narcisista busca que a realidade se submeta a seus planos pessoais, porém o encontro com o Deus vivo pode mudar este processo. Perceber Deus como outro força-nos a enxergar que ele é o centro de todas as coisas. Conhecer esse Deus é deixar o autocentrismo e partir para o o ‘outrocentrismo’, para Deus”. (FELLOWS, Andrew. O narcisismo como cosmovisão dominante no Ocidente. Em: Fé cristã e cultura contemporânea. Viçosa: Ultimato, 2009, p. 184.)
“Pagamos um preço quando nos desviamos da transcendência”. Sem dúvida alguma, “a  perda do senso de transcendência” traz um “dano incalculável” para a vida interior das pessoas, cristãs e não cristãs.  (MANNING, Brennan. Confiança cega. São Paulo: Mundo Cristão, 2009, p. 88.)
 
2. O ser humano precisa de uma “kenosis”, não de uma “henosis”. O ser humano precisa esvaziar-se (kenosis) de si mesmo, não de encher-se de si mesmo em êxtase (henosis).
Sabendo que é profundamente amada por Deus, cada pessoa pode abrir mão da sedução de ser Deus, para ser plenamente humano. Ele foi criado para ser humano, plenamente humano.
 
3. Somos convidados a manter e nutrir com Deus um relacionamento (João 15.4), algo possível entre duas pessoas. “Deus nos conhece e deseja ter intimidade conosco, muito mais do que podemos imaginar ser possível”. (HOUSTON, James. O desejo. Brasília: Palavra, 2009, p. 249.)
Nossa tarefa é clara: “A transcendência precisa andar junto com a imanencia”, “a divindade precisa estar em equilíbrio com a terra” e “a distância de Deus precisa ser complementada por sua proximidade”. (MANNING, Brennan. Confiança cega. São Paulo: Mundo Cristão, 2009, p. 95.)
Jesus apresentou o Seu Espírito como companheiro. (João 14.26).