A TEOLOGIA DO SACI-PERERÊ
Um dos quadros mais tristes da cristandade é a sua fragmentação absurda. Há provavelmente cerca de cem mil denominações evangélicas no mundo de hoje. Na verdade, a maioria delas é exatamente igual a muitas outras em termos de doutrinas e práticas. Infelizmente, muitos grupos se separam de seus irmãos na fé por motivos pouco cristãos. Todavia, apesar de tantos desencontros semelhantes, é fato que grande parte de nossas divisões teve origem em questões teológicas e doutrinárias.
É claro que teologia e doutrina são elementos fundamentais, dos quais não se pode abrir mão. Se alguém nega a divindade de Cristo, a onisciência de Deus, a salvação pela fé e a singularidade da Bíblia, tal pessoa não pode ser considerada cristã evangélica. No entanto, nossas divisões não se limitam a doutrinas fundamentais. As questões que nos distanciam de nossos irmãos são as menores, de importância secundária, e em alguns casos são questões irrelevantes.
Talvez a razão principal de nosso divisionismo exacerbado seja a “teologia do saci-pererê”. Como todos sabem, o saci-pererê é uma espécie de duende brasileiro criado pela imaginação popular. Ele seria um guardião das florestas, perneta, que assustaria todos os que pertubam o silêncio das matas. O que mais se destaca na figura do saci é o fato de que ele tem um perna só. Naturalmente, a pergunta já surge na mente do amigo leitor: O que isso tem a ver com teologia? Saci e teologia juntos? O que queremos dizer com isso é que boa parte de nossa teologia é uma “teologia de uma perna só”, isto é, uma teologia restrita, que enxerga de modo limitado o quadro amplo da revelação divina.
Uma das razões pelas quais criamos uma teologia limitada assim é a nossa herança racionalista. Os antigos hebreus e cristãos sabiam que a realidade era muito mais complexa do que a nossa razão. Além disso, entendiam que certas dimensões da fé aparentemente distintas não eram necessariamente contraditórias. O problema é que quando nossa teologia se “helenizou” exageradamente, adotamos uma logicamente simplista que nos trouxe diversos problemas.
Para entender tal realidade, basta lermos a Bíblia e vermos que o texto sagrado não se incomoda em afirmar coisas que ofende o racionalismo de muitos. Por exemplo, como Deus pode ser infinito e encarnar num bebê em Belém? Como Deus pode ser um e três ao mesmo tempo? Como a Bíblia pode ser Palavra de Deus e ser escrita por homens? Como podemos ser salvos por nossa fé e ao mesmo tempo por obra exclusiva do Espírito Santo? Como entender que Deus é totalmente soberano e nós somos livres e responsáveis por nossos atos? Como decidir se é o bom senso ou sabedoria bíblica que nos norteia, ou é a direção sobrenatural do Espírito Santo?
A verdade é que o mistério e a complexidade da realidade bíblica tem sido reduzida para “facilitar” a vida dos cristãos. Uns dizem que Deus é pura razão, outros afirmam que ele é só coração e emoção. Uns insistem que Deus faz tudo, sendo plenamente soberano (até os ímpios foram predestinados ao inferno), outros afirmam que Deus não pode fazer nada sem nossa autorização (nós é que decidimos … será que Deus ainda é Senhor?). Uns preferem um Deus mais coletivo, sociológico; outros afirmam que ele é o Deus do indivíduo. Há quem veja Deus como inserido na realidade concreta do mundo; outros o colocam no “milésimo céu”, em sua espiritualidade e distância absolutas.
A verdade é que toda teologia radical terá sérios problemas e graves conseqüências. Se entendermos que “duas paralelas só se encontram no infinito”, que toda moeda “tem duas faces” e que a realidade é mais dialética ou “poli-alética” do que admitimos, seremos muito beneficiados. Em primeiro lugar, seremos mais humildes em nossa afirmação de “conhecimento do sagrado”. Depois, aprenderemos a separar questões fundamentais de problemas secundários. Em terceiro lugar, desenvolveremos nossa tolerância e nosso senso fraternidade e amor cristãos (esses inegociáveis, segundo Jesus). Espero que venhamos a amadurecer nesta direção, pois a teologia brasileira tem mais condições de ser menos radical do que a teologia da maioria do chamado “primeiro mundo”.
A importância de fugirmos da teologia do saci-pererê, evitando que nossas igrejas saiam por aí, pulando de uma perna só, tropeçando e caindo, é que em nossos dias tal tendência está acentuada. Vivendo hoje em Boston, EUA, estamos em contato com muitos centros teológicos de todo o mundo. Por aqui há uma tendência em alguns grupos de se rejeitar a doutrina das penas eternas, pois ela seria “irreconciliável com o amor de Deus” (a idéia é que se Deus é amor, ele não pode ser justiça, nem mostrar sua ira). Recentemente, um outro debate causou discussão no meio evangélico: surgiu a teologia do “teísmo aberto”. A idéia de alguns teólogos americanos é que Deus abriu mão de sua soberania e onisciência e resolveu não saber o futuro. Em resumo, Deus “abriu mão de ser Deus”. O intuito é “livrar” Deus de ser responsabilizado do sofrimento que há no mundo. Trata-se de um ultra-arminianismo que ignora centenas de textos bíblicos. Novamente, temos uma teologia radical, polarizada, bastante ocidental, e que ignora a dialética hebraica, negando a realidade do mistério. Que Deus abençoe a igreja brasileira a crescer no conhecimento de Deus, na tolerância fraternal e no pensamento cristão equilibrado.
Luiz Sayão