Como todos os povos religiosos, o de Israel tinha orgulho de sua fé.
O profeta Isaías ironiza vigorosamente essa fé, traduzindo as seguintes palavras de Deus, já no final do seu livro: “Dia a dia me procuram; parecem desejosos de conhecer os meus caminhos, como se fossem uma nação que faz o que é direito e que não abandonou os mandamentos do seu Deus. Pedem-me decisões justas e parecem desejosos de que Deus se aproxime deles. ‘Por que jejuamos’, dizem, ‘e não o viste? Por que nos humilhamos, e não reparaste?’ Contudo, no dia do seu jejum vocês fazem o que é do agrado de vocês, e exploram os seus empregados. Seu jejum termina em discussão e rixa, e em brigas de socos brutais. Vocês não podem jejuar como fazem hoje e esperar que a sua voz seja ouvida no alto” (Isaías 58.2-4).
Muitos de nós temos orgulho de nossa fé. Os evangélicos brasileiros tendemos a ter orgulho de nossa fé, mas nossa fé tem feito pouca diferença no Brasil. Temos orado pouco pelo Brasil e mesmo este pouco não tem sido ouvido por causa de nossas mãos. Como seremos ouvidos em nossos pedidos de justiça se também somos injustos?
Isaías nos ajuda com sua ironia, com que começa o seu livro: “O boi reconhece o seu dono, e o jumento conhece a manjedoura do seu proprietário, mas Israel nada sabe, o meu povo nada compreende” (Isaías 1.3) Não temos compreendido a natureza da religião que Deus espera de cada um de nós, como bem definida por Tiago: Se alguém se considera religioso, mas não refreia a sua língua, engana-se a si mesmo. Sua religião não tem valor algum! A religião que Deus, o nosso Pai, aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo” (Tiago 1.26-27). Contentamos com belos templos, mas Deus não se contenta. Contentamo-nos com cultos bem preparados, mas Deus não se contenta. Por meio do profeta Isaías, Ele pergunta: “Para que me oferecem tantos sacrifícios?” (Isaías 1.11). Deus mesmo responde: “Para mim, chega de holocaustos de carneiros e da gordura de novilhos gordos. Não tenho nenhum prazer no sangue de novilhos, de cordeiros e de bodes! Quando vocês vêm à minha presença, quem lhes pediu que pusessem os pés em meus átrios? Parem de trazer ofertas inúteis! O incenso de vocês é repugnante para mim. Luas novas, sábados e reuniões! Não consigo suportar suas assembléias cheias de iniqüidade. Suas festas da lua nova e suas festas fixas, eu as odeio. Tornaram-se um fardo para mim; não as suporto mais! Quando vocês estenderem as mãos em oração, esconderei de vocês os meus olhos; mesmo que multipliquem as suas orações, não as escutarei! As suas mãos estão cheias de sangue!” (Isaías 1.11-15)
Precisamos estar atentos a mensagem divina, mesmo que nos soe dura, como esta: “Lavem-se! Limpem-se!Removam suas más obras para longe da minha vista! Parem de fazer o mal, aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça, acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva” (Isaías 1.16-17).
Lemos a condenação aos que estão no poder e concordamos plenamente: “Seus líderes são rebeldes, amigos de ladrões; todos eles amam o suborno e andam atrás de presentes. Eles não defendem os direitos do órfão e não tomam conhecimento da causa da viúva” (Isaías 1.23). Talvez nos escondamos atrás da suposição de que a injustiça é uma prática de vida apenas dos que têm dinheiro ou poder. A injustiça dos poderosos é um reflexo da nossa, mesmo que a nossa seja “apenas” (obrigatoriamente, entre aspas) a omissão.
Todos precisamos ouvir a recomendação divina: “Venham, vamos refletir juntos”, diz o Senhor. “Embora os seus pecados sejam vermelhos como escarlate, eles se tornarão brancos como a neve; embora sejam rubros como púrpura, como a lã se tornarão. Se vocês estiverem dispostos a obedecer, comerão os melhores frutos desta terra; mas, se resistirem e se rebelarem, serão devorados pela espada. Pois o Senhor é quem fala!” (Isaías 1.18-21).
Quero, então, fazer um chamado a uma vida digna do Evangelho, que é uma vida pautada pela prática da justiça.
1
Perguntemos onde Deus está diante da injustiça, mas também nos perguntemos onde estamos.
No dia 28 de maio de 2006, o papa Bento 16 esteve em Auschwitz, onde, durante o terror nazista, morreram um milhão e meio de pessoas. Segundo se noticiou, enquanto caminhava pela área que um dia foram campos de concentração para a morte, o líder católico perguntou: “Em um lugar como este, faltam palavras. No fim, pode haver apenas um silêncio no qual um coração clama por Deus. Por que, Deus, o Senhor permaneceu em silêncio? Como pôde tolerar tudo isso? Onde estava Deus naqueles dias? Por que ficou ele em silêncio? Como pôde ele permitir esse massacre sem fim, esse triunfo do mal?”
A voz do papa ecoou pelo mundo, em diferentes direções. Numa delas, o rabino Henry Sobel rebateu: “Quando nos deparamos com o mal e a tragédia no mundo, é natural perguntarmos: onde está Deus? Como Ele pode deixar que tal coisa aconteça? A meu ver, porém, não são estas as perguntas primordiais. O que nos devemos perguntar não é onde está Deus, mas, sim, onde está o homem. Não como pode Ele, Deus, permitir que tais coisas aconteçam, mas, sim, por que ele, o homem, permite que essas coisas aconteçam. O que é que o ser humano tem feito para impedir as barbaridades? Com todo o respeito, permito-me responder ao Sumo Pontífice: Deus estava onde sempre esteve, esperando que os homens assumissem o seu dever”. (SOBEL, Henry. O papa em Auschwitz. Artigo em O Estadoe de S. Paulo. Disponível em . Acessado em 10.6.2006.
Para ser honesto, eu preciso me perguntar: de que lado eu ficaria na Alemanha, com toda aquela propaganda nazista, com muitas igrejas identificadas com o nacional-socialismo? Seria que eu teria a coragem de Martin Niemöller, de Dietrich Bonhoeffer e de tantos outros cristãos, ou ficaria cantando na minha igreja?
2
Lembremos que há várias formas de rebeldia contra Deus, e a injustiça é uma delas.
Ele se indigna porque a injustiça parece mostrar que Deus não é onipotente, como se não tivesse podido evitar que o cantor dos Detonautas morresse no colo da sua avó, penetrado por uma bala de assassinos que queriam roubar seus pertences. Ele se entristece porque a injustiça parece indicar que Deus não ama o ser humano, especialmente os que sofrem, como aquelas crianças palestinas que brincavam com seus pais numa praia na faixa de Gaza.
Os textos dos profetas são claros ao demonstram o que Deus pensa da injustiça.
Se estiver em suas mãos julgar uma causa, seja como um profissional ou como advogado ou como testemunha, lembre-se do conselho do rei Josafá, que recomendou aos juízes que nomeou o seguinte cuidado: “Considerem atentamente aquilo que fazem, pois vocês não estão julgando para o homem, mas para o Senhor, que estará com vocês sempre que derem um veredicto. Agora, que o temor do Senhor esteja sobre vocês. Julguem com cuidado, pois o Senhor, o nosso Deus, não tolera nem injustiça nem parcialidade nem suborno” (2Crônicas 19.6-7).
Como diz o salmista, Deus não tem prazer na injustiça, porque com Ele “o mal não pode habitar” (Salmo 5.4).
Deus não convive com a injustiça. Devemos ser tão sérios quanto Ele neste aspecto.
3
Alegremo-nos em cultuar a Deus, mas não façamos de nosso culto um tempo para nos escondermos dos mandamentos de Deus, que pediu, por intermédio de Moisés (Levítico 19.9-18; 33-37):
(9-18)“Quando fizerem a colheita da sua terra, não colham até as extremidades da sua lavoura, nem ajuntem as espigas caídas de sua colheita. Não passem duas vezes pela sua vinha, nem apanhem as uvas que tiverem caído. Deixem-nas para o necessitado e para o estrangeiro. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês.
Não furtem. Não mintam. Não enganem uns aos outros. Não jurem falsamente pelo meu nome, profanando assim o nome do seu Deus. Eu sou o Senhor.
Não oprimam nem roubem o seu próximo. “Não retenham até a manhã do dia seguinte o pagamento de um diarista. Não amaldiçoem o surdo nem ponham pedra de tropeço à frente do cego, mas temam o seu Deus. Eu sou o Senhor.
Não cometam injustiça num julgamento; não favoreçam os pobres, nem procurem agradar os grandes, mas julguem o seu próximo com justiça. Não espalhem calúnias entre o seu povo. “Não se levantem contra a vida do seu próximo. Eu sou o Senhor.
Não guardem ódio contra o seu irmão no coração; antes repreendam com franqueza o seu próximo para que, por causa dele, não sofram as conseqüências de um pecado. Não procurem vingança, nem guardem rancor contra alguém do seu povo, mas ame cada um o seu próximo como a si mesmo. Eu sou o Senhor”.
(33-37) “Quando um estrangeiro viver na terra de vocês, não o maltratem. 34 O estrangeiro residente que viver com vocês deverá ser tratado como o natural da terra. Amem-no como a si mesmos, pois vocês foram estrangeiros no Egito. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês.
Não usem medidas desonestas quando medirem comprimento, peso ou quantidade. Usem balanças de pesos honestos, tanto para cereais quanto para líquidos. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês, que os tirei da terra do Egito.
Obedeçam a todos os meus decretos e a todas as minhas leis e pratiquem-nos. Eu sou o Senhor”. (Levítico 19.33-37)
4. Tornemo-nos profetas de Deus.
O profeta é aquele que tem os olhos na terra e os ouvidos colados na boca de Deus.
O profeta é aquele que ouvindo Deus e, lendo os jornais e os livros, analisa o tempo em que vive. A Palavra de Deus é a obra prima com que analisa a matéria prima da realidade.
O profeta é aquele que, inspirado por Deus, julga o tempo pelos padrões de Deus, não os padrões as vezes podres do próprio tempo, que se acomoda diante da injustiça, achando-a natural e insuperável.
O profeta é aquele que, amando os que sofrem, agem em favor dos que sofrem, tornando-se parceiro de Deus na redenção (transformação) da realidade.
Tornemo-nos profetas de Deus.
O mundo precisa de profetas, que são os que dizem que a injustiça, por ser rebeldia contra Deus, é pecado. Os cientistas contornam o problema com sua análise, que deve ser usada pelo profeta, que põe o dedo na ferida: injustiça é pecado.
O tempo de hoje precisam de profetas que mostrem que a injustiça começa dentro de nossos próprios corações. Ele sabe que a injustiça é estrutural, mas sabe que é também individual, com uma alimentando a outra, num interminável círculo vicioso. Os profetas de Deus sabem que o poderoso pratica injustiça, mas o fraco, também, que a injustiça está inscrita no genoma humano da Queda. Como explicar que a corrupção atinja o dono de uma empresa de ônibus, mas também o cobrador de um ônibus? Como explicar que a violência seja vista desde cedo pela criança como um recurso legítimo?
Nossos corações precisam de profetas que insistam conosco para que nos arrependamos da injustiça, mesmo que responsabilidade pessoal esteja fora de moda, mesmo que arrependimento esteja fora de uso. O profeta não deixa minha atenção desviar da certeza que o mundo será justo se eu for justo.
5. Pratiquemos a justiça como um estilo de vida, que seja vivido como um culto prestado ao Senhor.
As palavras de Deus passeiam por Sua Palavra. Em Amós 5.21, Ele insiste na mesma mensagem, como se soubesse de nossa capacidade de “esquecer” o que não nos interessa: “Eu odeio e desprezo as suas festas religiosas; não suporto as suas assembléias solenes. Mesmo que vocês me tragam holocaustos e ofertas de cereal, isso não me agradará. Mesmo que me tragam as melhores ofertas de comunhão, não darei a menor atenção a elas. Afastem de mim o som das suas canções e a música das suas liras. Em vez disso, corra a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro perene!” (Amos 5.21-24)
Que o nosso jejum seja o recomendado por Deus, quando nos pergunta: “Será esse o jejum que escolhi, que apenas um dia o homem se humilhe, incline a cabeça como o junco e se deite sobre pano de saco e cinzas? É isso que vocês chamam jejum, um dia aceitável ao Senhor? “O jejum que desejo não é este: soltar as correntes da injustiça, desatar as cordas do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e romper todo jugo? Não é partilhar sua comida com o faminto, abrigar o pobre desamparado, vestir o nu que você encontrou, e não recusar ajuda ao próximo? (Isaías 58.5-7)
Então, a começar por mim e comigo, que a justiça corra sempre, como um rio corre, em nossa família, em nossa igreja, em nosso bairro, no vasto mundo em que vivemos.
ISRAEL BELO DE AZEVEDO