INTRODUÇÃO A “JUÍZES”
Título: Juízes
Capítulos: 21
Versículos: 578
Tempo de leitura: 100 minutos
Há um livro na Bíblia em que não há um versículo sequer que possamos memorizar. Sua mensagem negativa, no entanto, não pode ser esquecida por nós, resumida num refrão: “cada um fazia o que lhe parecia certo” (Juízes 21.25) Não havia lideranças sólidas e santas que orientasse o povo. Até mesmo heróis libertadores não são pessoas para serem imitadas, sejam valentes como Gideão, Jefté ou Sansão.
Assim, ler Juízes é lidar com os limites da liberdade. Não que o autor nos queira estimular a abrir mão da liberdade, porque seu interesse é mostrar o uso irresponsável dela. Não é do feitor do autor do livro, cuja identidade desconhecemos, dourar a realidade, nem carregar nas tintas. Sua descrição é um retrato do tempo em que cada um fazia o que achava certo, visando apenas o seu próprio bem.
Josué tinha dito que o povo era incapaz de servir ao Senhor (Josué 24.16-20). A despeito da proposta do povo em obedecer, a idolatria se tornou padrão. Assim mesmo (e neste sentido, Juízes é um livro cheio de graça) Deus enviou juízes libertadores quando o povo parecia estar à beira da extinção.
ANTES DE COMEÇAR A LEITURA
Sobre o livro de Juízes (“Shophetim”, no hebraico) pouco sabemos.
Nada sabemos sobre o seu autor. A tradição atribui sua autoria a Samuel, mas o texto não nos autoriza a esta identificação
Sobre a época (bastante anárquica, como demonstrado nos dois capítulos iniciais do livro), os fatos narrados aconteceram entre 1390 a.C. a 1050 a.C., mas essas são apenas datas-limites, não querendo dizer que o período começou em 1390 e que terminou em 1050. Se somarmos os anos mencionados (Juízes 3.8, 11, 40 e 30; 4.3; 5.31; 6.1, 8.29; 9.22: 10.2, 3 e 8; 12.7, 9, 11 e 14; 13.1; 15.20; 16.31), chegaremos a 410 anos, mas mesmo assim precisamos saber que alguns eventos podem ter ocorrido simultaneamente. Para um tempo mais largo, há a informação de 1Reis 6.1, segundo a qual o período do êxodo ao início do reinado de Salomão foi de 480 anos.
Quando os hebreus entraram em Canaãi, encontraram várias cidades-Estado com governos próprios, alguns dos quais se uniam a potências estrangeiras (como o Egito) ou a cidades-Estado vizinhas para enfrentar um inimigo comum. Israel se organizou tribalmente, tendo os clãs descendentes de Jacó seus próprios líderes.
O livro descreve três guerras civis, sete opressões de cinco inimigos, sete guerras de libertação e várias magistraturas (governos), umas pacíficas e outra malsucedida (Sansão).
As pessoas-chaves são os juízes (figura que reúne as características de líder militar, rei e juiz propriamente dito) Otoniel, Débora, Gideão, Jefté e Sansão.
Otoniel é o primeiro juiz, cujo comportamento se torna o padrão dos outros, numa espécie de trágica repetição cíclica, de desobediência, fé, libertação e desobediência (Juízes 3.7-11).
Eúde é um guerreiro canhoto que obtém uma importante vitória (Juízes 3.15-31).
Débora é a única juíza, sob cuja liderança seu general (Baraque) vence os cananeus, recorrentemente presentes (Juízes 4-5).
Gideão é o guerreiro que reluta em tomar a liderança e, quando a recebe, mostra uma fé inabalável em Deus, capaz de vencer uma guerra com apenas 300 guerreiros, quando humanamente falando seriam necessários milhares (Juízes 6-8).
Jefté é um bandido que volta para liderar, mesmo que rejeitado, o povo em suas lutas rumo à vitória (Juízes 10.6-12.7).
Sansão é um guerreiro dotado por Deus de uma força física extraordinária, mas que deixa enfraquecer moralmente, o que impede de libertar verdadeiramente seu povo e lhe impinge um fim trágico (Juízes 13-16).
Um esboço claro do livro nos ajuda em nossa tarefa.
A. Contexto (fracasso na expulsão dos cananeus) 1.1-2.5
B. Introdução (apostasia sobre apostasia) 2.6-3.6
C. Os 6 ciclos
1. Otoniel 3.7-11
2. Eúde 3.12-31
3. Débora 4-5
4. Gideão 6-8
5. Jefté 10.6-12.7
6. Sansão 13-16
D. Depravação das tribos 17-21
Os juízes Abimeleque (9), Tola e Jair (10.1-5), Ibsã (12.8-10), Elom (12.11,12) e Abdom (12.13-15) recebem pouco destaque e podem ser vistos como parte de ciclos maiores.
UMA TEOLOGIA
Tem um livro desses uma teologia?
Tem e ela fica bastante evidenciada.
Juízes procura responder à seguinte pergunta: por que os israelitas não desfrutaram das bênçãos da aliança (firmada e reafirmada tantas vezes)? A mensagem é clara: os desastres foram provocados pela persistente desobediência de Israel ao Senhor, nunca pelo Senhor. Este, apesar da apostasia, manifesta a sua misericórdia. Deus respondeu a idolatria e a injustiça desenfreada e repetida do povo com fidelidade misericordiosa à aliança. Deus não mudou. Foi o homem que pecou.
TEOLOGIA DO PACTO — A teologia do livro, comum aos livros históricos do Antigo Testamento, é a do pacto (ou aliança). O pacto tem compromissos recíprocos. Embora o homem não cumpra a sua parte, Deus faz a sua. Assim mesmo, o homem paga um preço por não ser fiel ao pacto. Como diria o apóstolo Paulo: de Deus não se zomba (Gálatas 6.7).
SOBERANIA DE DEUS — O autor quer mostrar que, mesmo no caos, Deus é o Senhor. Ele (Senhor, Deus) está em ação perto de 200 vezes, até em situações bastante bizarras para nós (“Sempre que os israelitas saíam para a batalha, a mão do Senhor era contra eles para derrotá-los, conforme lhes havia advertido e jurado. Grande angústia os dominava” — Juízes 2.15). Tudo o que aconteceu a Israel estava sob a direção de Deus. Quando perdiam, era porque pagavam o preço da desobediência (em algumas das quais Deus agiu diretamente para prover o castigo); quando perdiam, era a intervenção direta de Deus. Esta divina soberania está na base do surgimento dos líderes: “Então o Senhor levantou juízes, que os libertaram das mãos daqueles que os atacavam” (Juízes 2.16).
A RESPONSABILIDADE DO LÍDER — O autor quer mostrar também que o problema de Israel era a falta de um líder. Josué não formou um líder (como Moisés fizera com o filho de Num). A síntese é clara: “O povo prestou culto ao Senhor durante toda a vida de Josué e dos líderes que sobreviveram a Josué e que tinham visto todos os grandes feitos do Senhor em favor de Israel” (Juízes 2.7). No entanto, “depois que toda aquela geração foi reunida a seus antepassados, surgiu uma nova geração que não conhecia o Senhor e o que ele havia feito por Israel” (Juízes 2.10). Isto nos chama a atenção para a necessidade de líderes e para o cuidado nas sucessões. Precisamos de líderes sábio e santos. Precisamos de líderes que se preocupem com a sua geração e com a próxima. Precisamos de lideres que pensem, na família, na igreja e na nação, nos que virão depois, dotando os futuros tempos de lideres e de visão para que possam prosseguir na boa jornada. Também devemos entender que não devemos seguir cegamente os líderes, mas com consciência crítica. Mesmo os líderes que Deus levanta pode se tornar um Sansão. Os líderes não são Deus, mas homem colocados por Deus, que lhes fala mas fala a todos os que querem ouvir.
TEXTOS DIFÍCEIS
DIA(S) DE HOJE — Várias vezes aparece no texto a expressão “até os dias de hoje” (Juízes 1.21, 1.26, 6.24, 10.4 e 18.12). A frase (ou palavra, “hoje”) deve ser entendida como sendo o tempo e o local em que vivia o autor. Possivelmente, isto põe o livro como tendo sido escrito por volta do século 10. Não deve a expressão como significando que aquele lugar citado exista até os nossos dias (no século 21), mas, então, no século 10 a.C..
VOTOS E PROVAS– Gideão põe Deus à prova. Jefté faz um voto a Deus. Devemos fazer o mesmo?
Gideão pôs Deus à prova do teste do sacrifício a ser oferecido (Juízes 6.17-24). Podemos fazer o mesmo teste? Os novos na fé podem faze-lo. Quem é maduro na fé sabe Quem Deus é e não precisa mais disto. Deus não tem que nos provar nada.
Jefté fez um voto temerário a Deus, envolvendo outra pessoa. Se fizermos votos a Deus, não devemos envolver a ninguém, a não ser a nós mesmos. Se fizermos votos a Deus, só nós devemos saber. Deus não nos pede votos (que é sempre iniciativa humana, como Paulo fez — Atos 18.18), mas se os fizermos, devemos cumpri-lo.
A IRA DE DEUS — Ao longo da Bíblia, “a ira de Deus” (“ira do Senhor”) é mencionada 82 vezes, das quais cinco em Juízes (2.12, 14 e 20; 3.8 e 10.7). Devemos entender que a linguagem bíblica é limitadamente antropomórfica (ou seja: é a forma de o homem se referir ao sentimento, impenetrável sentimento, de Deus). É a maneira de dizer que a atitude humana desagradou profundamente a Deus. No Novo Testamento, a expressão aparece, indicando a necessidade que o homem tem de arrepender para ser reconciliado com Deus. Como a ira de Deus é contra o pecado, Ele mesmo providenciou a solução: a cruz, na qual Jesus se sacrificou para nos perdoar.
A CRUELDADE NÃO CONDENADA — A maior dificuldade na leitura de Juízes, contudo, é que parece que a crueldade (como ler a história de Mica, por exemplo?) não é castigada. A cada narrativa não há um versículo para condenar. Consideremos, entretanto, o seguinte:
Primeiro: todo o livro foi escrito para demonstrar que o salário do pecado (infidelidade ao pacto) é a morte. O livro deixa isto claro e não precisa repetir a mesma mensagem a cada desatino.
Segundo: como o autor deixou posto o pressuposto (o pecado não fica sem punição), ele conta a história para mostrar a degradação do povo que se afasta de Deus. Quando narra homicídios e outros crimes, não precisa repetir: olha, isto é errado. Ele espera que o leitor já saiba disto e, sabendo disto, evite fazer o mesmo. É como se ele registrasse o fato e nos perguntasse: qual é a sua posição?
PARA MEMORIZAR
Procurei detidamente e não encontrei sequer um versículo que devêssemos memorizar. No entanto, um bom ímã de geladeira poderia conter a idéia presente em Juízes 2.18-19: “Sempre que o Senhor lhes levantava um juiz, ele estava com o juiz e os salvava das mãos de seus inimigos enquanto o juiz vivia; pois o Senhor tinha misericórdia por causa dos gemidos deles diante daqueles que os oprimiam e os afligiam. Mas, quando o juiz morria, o povo voltava a caminhos ainda piores do que os caminhos dos seus antepassados, seguindo outros deuses, prestando-lhes culto e adorando-os. Recusavam-se a abandonar suas práticas e seu caminho obstinado”.
Diante desta situação, cada um de nós deve se animar com a misericórdia de Deus e, ao mesmo tempo, se perguntar se a nossa vida é diferente da experiência recalcitrante dos hebreus antigos.
PARA PENSAR
O Comentário Bíblico Africano (p. 299) começa suas notas ao livro de Juízes com um título: “A fé incompleta de Judá”.
Juízes é uma demonstração do que faz uma fé incompleta.
Não tenho como perguntar sobre o que faz uma fé incompleta. Olho para o cenário brasileiro e vejo, tanto no meio católico como no evangélico, expressões de fé incompletas, seja pela adesão a algum santo (ou santa) no catolicismo, seja pela busca da bênção a qualquer preço no ultrapentecostalismo.
Mais que me indignar (e me indigno com o que fizeram do Cristianismo), eu preciso me perguntar se minha fé é completa. Espero que sim.
SE PUDER, LEIA:
ADEYMO, Tokunboh. Comentário bíblico africano. São Paulo: Mundo Cristão, 2010.
ELLISEN, Stanley A. Conheça melhor o Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 1991.
HILL, Andrew E., WALTON, J.H. Panorama do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2006.
RICHARDS, Lawrence O. The Bible reader´s companion. Colorado Springs: Charriot Victor, 1991.
ISRAEL BELO DE AZEVEDO