Qualquer estudioso das Escrituras que tenha procurado fazer um estudo ou uma exegese no Salmo 2 com certeza já se deparou com uma variedade de traduções no versículo 12. Muitas versões conservam algo semelhante ao texto da versão Revisada de Almeida: “Beijai o Filho, para que não se ire, e pereçais no caminho” (cf. também versões Corrigida e Atualizada de Almeida da SBB). Todavia, outras versões como a Bíblia de Jerusalém e a Nova Tradução na Linguagem de Hoje apresentam traduções alternativas bem distintas. Nestas poucas linhas apresentaremos uma elucidação da problemática do texto hebraico e avaliaremos as soluções propostas para os eruditos. A questão torna-se ainda mais significativa pelo fato de ser este um dos textos do Antigo Testamento denominados messiânicos.
O Contexto do Salmo 2
As características do salmo 2 o classificam como um salmo real, isto é, dedicado ao rei de Israel. Possivelmente deve ter sido composto para a coroação de Davi. Há muitos paralelos do salmo com a passagem de 2 Samuel 7.8-16 (Smith, WBC). O salmo é otimista e retrata, pelo estilo e pela linguagem, o período monárquico antigo. Sua estrutura é facilmente identificável:
1-3 – A rebelião das nações contra Deus e o seu ungido
4-6 – O desprezo divino e o anúncio do seu rei
7-9 – O rei davídico anuncia o decreto divino
10-12 – Advertência às nações para submeterem a Deus e seu representante.
Nesse contexto, o rei é denominado “filho” de Deus, conceito compartilhado por outras culturas do antigo oriente próximo, particularmente pelos egípcios. Há uma nítida riqueza literária no texto. É muito provável que os distintos discursos do salmo fossem recitados liturgicamente no culto do antigo Israel.
O Problema da Tradução
O problema principal está na palavra do texto original bar. O termo quer dizer “filho” em aramaico e não em hebraico. O salmo dois aparentemente é antigo e no próprio texto do salmo, no versículo 7, encontramos a palavra comum que significa “filho” em hebraico: ben. Além disso, há também o problema do significado do v. 11b: causa estranheza o “regozijai-vos com tremor”. O verbo paralelo de 11a é “servir”. Diante disso, muitas alternativas foram propostas.
Muitas versões antigas lêem o texto como bôr, isto é, pureza, ou como bar, “puro”, sugestão seguida por Símaco e por Rashi. A Septuaginta não ajuda muito, pois traz uma idéia bem diferente: “Atentai para a disciplina/instrução”. Alguns eruditos sugerem emenda no texto hebraico (Bertholet, 1908). Alguns o fazem com base em ditografia (erro decorrente de repetição de consoante), ou em haplografia (erro decorrente de ausência de consoante), ou ainda em metátese (erro decorrente de transposição de consoantes). Outros ainda sugeriram uma nova divisão e uma revocalização do Texto Massorético. Holladay (1978), seguindo a posição particular de Dahood, traduz por “tu que esqueces o túmulo”, lendo nshy-qbr. A Tradução em Português Corrente (Portugal) parece basear-se na exegese de Dahood e traduz por “ó mortais”.
No entanto, uma das emendas mais seguidas (Westermann, CC) é a que é seguida pela Bíblia de Jerusalém. O “tremam e se ajoelhem diante dele” da Nova Tradução na Linguagem de Hoje parece depender dessa leitura.
A tradução da Bíblia de Jerusalém diz nos vv. 11-12a:
“Servi a Iahweh com temor, beijai seus pés com tremor”.
Para chegar a uma tradução tão diferente, o Texto Massorético disponível:
gylw br‘dâ nshqw br
é modificado para:
br‘dâ nshqw brglyw
Apesar das dificuldades do texto e da criatividade dessa exegese, parece improvável que uma mudança radical resolva o problema do texto. A liberdade de troca de consoantes é muito grande. As outras alternativas não são suficientemente convincentes. Seria razoável manter o tradicional “filho”? Parece que sim. Há algumas razões pelas quais a posição tradicional é razoável:
1. Não é improvável que o aramaico tivesse sido usado no século X aC, mesmo que isso não seja encontrado em documentos.
2. Há um uso semelhante de bar em Provérbios 31 (Keil/Delitzsch)
3. Como o salmo é destinado às nações o autor pode ter usado uma palavra aramaica propositadamente, especialmente por ser este um salmo literariamente complexo.
4. O autor pode Ter usado bar em lugar de ben para evitar o desajeitado encontro de bilabiais causado pela conjunção pen. Assim em vez de usar ben pen, o autor preferiu bar pen.
Diante disso, resta afirmar que o apoio a tal posição não vem apenas de versões literais e bem conservadoras. Tanto a Tradução Ecumênica (“Prestai homenagem ao filho”) como a Nova Versão Internacional (“Beijem o filho”) seguem a posição tradicional. Com razão, essas versões deixam filho sem letra maiúscula para evitar uma tradução lida a partir da teologia neotestamentária.
(Luiz Sayão)