Romanos 8.28: DEUS INTERVÉM, MAS, ÀS VEZES, NÃO INTERVÉM

 

 
Um caminhão tomba na curva. O experiente motorista morre, deixando desoladas dezenas de pessoas.
As chuvas, numa região, caem e suas lamas levam casas e corpos, campos e cidades.
Uma criança, esperada por seus pais com uma bênção de Deus para suas vidas, nasce com uma doença que a incapacita para uma existência da imaginada, em parques, escolas e atividades profissionais.
Os que não tem fé atribuem tudo as leis naturais ou ao acaso.
Os que têm fé atribuem tudo à vontade de Deus ou simplesmente se perguntam por que Deus não evitou esses desdobramentos desagradáveis e dolorosos. Por que Deus não interveio?
Há situações nas quais Deus intervém e realiza o que chamamos de milagre.
Há situações nas quais Deus não intervém ou aparentemente não intervém.
 
Talvez nos ajude superar a dificuldade considerar o sentido de "vontade de Deus" no Novo Testamento, que usa duas palavras: "boule" (que aparece 18 vezes) e "thelema" (mencionada 62 vezes, 7 das quais em Efésios). (A distinção, aqui assumida, está em SPROUL, R.C. Can I know God’s will? Orlando: Ligonier Ministries, 1999. 58p.)
 
A VONTADE DETERMINATIVA
Consideremos a primeira palavra.
"Boule" é a vontade determinativa (ou decisória) de Deus e pode ser traduzida também como "plano de Deus" ou "decisão", como em Atos 2.23 ("Este homem lhes foi entregue por propósito determinado ["boule"] e pré-conhecimento de Deus; e vocês, com a ajuda de homens perversos, o mataram, pregando-o na cruz"), Atos 4.28 ("Fizeram o que o teu poder e a tua vontade ["boule"] haviam decidido de antemão que acontecesse") e em Tiago 1.18 ("Por Sua decisão ["boule"] Ele nos gerou pela palavra da verdade, a fim de sermos como que os primeiros frutos de tudo o que Ele criou"), entre outros. 
Esta vontade de Deus é pré-determinada e inflexível. Vem de uma decisão de Deus e é inalterável. Vem da soberania de Deus, que diz "haja luz" e, sem discussão, a luz passa a existir (Gênesis 1.3). Assim, Deus determinou que Jesus Cristo nasceria de uma virgem, descendendo de Abraão. Deus determinou que Jesus Cristo seria crucificado, morto, sepultado e ressuscitado, como parte do plano divino para a redenção da humanidade. Deus determinou que, através de Jesus Cristo, Deus redimiria a todos os que aceitassem seu oferecimento de graça. Deus determinou que, no final dos tempos, Jesus voltará para buscar a Sua igreja. (TISDALE, W.P.. ed. The Will of God.)
Ilustremos ainda com o caso de Judas. Deus pré-determinou que Jesus Cristo morreria na cruz, para perdoar os nossos pecados. Mas quem crucificou Seu Filho foram pessoas, que agiram livremente. Judas foi chamado "filho da perdição", não porque Deus o determinasse. O que Deus determinou é que Jesus seria crucificado, o que implicou em uma traição, um julgamento injusto e uma execução. Todos que agiram nesse caso agiram por livre escolha, depois de tentados por Satanás, cuja orientação aceitaram. Ao procederem assim, fizeram (inclusive Satanás) com o que a vontade determinativa de Deus se realizasse.
Então, quando Deus decreta algo, nada pode evitar que Sua decisão se torne uma realidade. Cabe ao ser humano escolher, responder e agir, porque Deus realiza Sua vontade através de escolhas reais de pessoas que desejam, pensam e agem. 
 
VONTADE DIRETIVA — Essa vontade determinativa é, por vezes, diretiva, através da qual Deus guia as nossas vidas. Ele lança mão de nós para que Sua vontade determinativa se cumpra. Foi Sua vontade determinativa, por exemplo, salvar o Eunuco etíope. Para realizar esta vontade, Ele enviou o evangelista Filipe ao seu encontro (Atos 8.26). Se nós dissermos "não", Ele inspirará a outra pessoa ou mesmo as pedras (Lucas 19.40). Ele fez o mesmo com Ananias, a quem enviou para discipular o recém-convertido Saulo (Atos 9.15).  Somos, portanto, chamados para fazer a obra de Deus e este chamado pode ser geral, a partir dos ensinos da Palavra de Deus, ou específico, através de uma instrução particular, modo modo cotidiano (uma visão da necessidade) ou miraculoso (um sopro do Espírito Santo em nossos corações).
 
VONTADE IMPLÍCITA — Podemos acrescentar outra dimensão desta vontade determinativa. É a vontade implícita de Deus. Ela se dá nas leis naturais. Deus decidiu que o mundo (logo, as nossas vidas) seria governado por leis, leis morais (sei que não posso matar ou mentir, certo que matar ou mentir tem conseqüências para a minha vida e as vidas dos outros) e leis naturais, conhecidas pelas ciências. Podemos dizer que essas leis põem em prática a vontade determinativa de Deus. Se construo em cima de um vulcão ou sobre um aterro sanitário, é da vontade de Deus que um dia esse vulcão cuspa fogo ou que a chuva leve o lixo e tudo o que estiver sobre ele. É da vontade de Deus porque esta vontade foi desenvolvida em forma uma lei natural. É da vontade de Deus que eu cuide dos meus dentes. Se eu não cuidar, virão as caries e talvez a dor. Assim como é da vontade determinativa de Deus que eu cuide dos meus dentes, é da vontade determinativa dEle que as caries venham. O cuidado e as conseqüências da falta de cuidado são duas faces de uma mesma moeda. Uma dor de dente vem da vontade indireta de Deus (ao deixar uma lei sobre o funcionamento da vida e uma instrução sobre o meu cuidado com os dentes) e da vontade direta do homem (que desobedeceu, mesmo quando era criancinha e não tinha noção das conseqüências).
 
VONTADE PRESCRITIVA
Tratemos agora do segundo tipo de vontade de Deus. 
"Thelema" é a vontade prescritiva de Deus. Trata-se do desejo de Deus para o ser humano, como na oração do "Pai nosso": Seja feita a tua vontade (Mateus 6.10).
É da vontade de Deus que todos vivamos de modo justo. Por isto Ele deixa Suas instruções na Bíblia. Nela Ele nos lega o que é justo e certo para a vida individual e coletiva. Somos chamados a viver segundo estas regras. Uma reportagem mostra, por exemplo, que o "trabalhador rural paulista vive na cidade e não come o que planta", consumindo "principalmente produtos industrializados". Um dos analistas garante que "gente que trabalha na roça, mas não tem condições de viver nela é algo muito comum. O ideal seria que o homem do campo morasse no campo, mas infelizmente isso não é viável hoje". (CASTILHO, Araripe. Trabalhador rural paulista vive na cidade e não come o que planta. Folha de S. Paulo, de 29.1.2011, caderno Mercado)
Podemos ampliar o retrato para os que trabalham na construção civil. 
E qual a vontade de Deus para esses trabalhadores? Ela é clara: "Construirão casas e nelas habitarão; plantarão vinhas e comerão do seu fruto. Já não construirão casas para outros ocuparem, nem plantarão para outros comerem. Pois o meu povo terá vida longa como as árvores; os meus escolhidos esbanjarão o fruto do seu trabalho" (Isaías 65.21-22).
O pecado impede que a vontade prescritiva de Deus se realize. 
É da vontade de Deus que ninguém se perca (Mateus 18.14), porque Ele quer que todas as pessoas sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade (1Timóeo 2.4), mas nem todos têm o mesmo desejo. Nem tudo o que fazemos, mesmo aquelas aparentemente santas e boas, é da vontade de Deus. O apóstolo Paulo, por exemplo, desejava, se fosse da vontade de Deus, visitar os coríntios (1Coríntios 16.7), os de Jerusalém (Atos 18.21) e também os romanos (Romanos 1.1). Paulo foi a Roma, mas preso. Não era da vontade (desejo) de Deus, mas o era dos homens e Paulo foi. Não era também da vontade (decisão) de Deus, mas o era dos homens e Paulo foi, talvez para morrer. 
Fica claro o significado da vontade prescritiva de Deus quando nos lembramos que é Sua vontade (thelema) que não pequemos (1Tessalonicenses 4.3), mas nós pecamos. Ele deseja que nos comportemos de modo insensato, mas nós o fazemos (Efésios 5.17). Ele espera que não nos amoldemos aos padrões deste mundo (Romanos 12.2), mas, como cordeiros para o matadouro, nós obedecemos aos mandamentos do mundo, geralmente com muito prazer.
A vontade prescritiva é para nos ensinar a viver. Por que não aprendemos?
 
A VONTADE PERMISSIVA
Para os que crêem, uma das soluções teológicas para enfrentar o dificílimo problema do mal, vivenciado como sofrimento, é a chamada "vontade permissiva" de Deus.
Deus permite que vivamos como queremos viver, dentro ou fora das instruções que nos deixou.
Deus permite que exploremos a terra como queremos, em lugar de cuidar dela.
Deus permite que as conseqüências de nossas ações nos alcancem, a nós e a outros.  
Deus não deseja que o mal aconteça, mas permite que se ele se dê.
A vontade permissiva de Deus é, portanto, uma vontade indireta. A vontade direta de Deus é determinativa e/ou prescritiva. Na vontade permissiva, Deus age, mas age de outro modo. A vontade permissiva de Deus está agarrada à Sua vontade determinativa. O fato de que coisas ruins aconteçam, a pessoas boas e a pessoas más, confirma a regra que as leis legadas por Deus é um dos seus métodos para governar o mundo; o outro é o milagre ou a suspensão das leis. O fato de que coisas ruins aconteçam, a pessoas boas a pessoas más, põe em ação a vontade prescritiva, quando pessoas obedientes à vontade prescritiva de Deus se levantam em solidariedade: para ajudar, ajudar a consolar, ajudar a minorar a dor, ajudar a reconstruir as vidas abaladas.
Assim, não é da vontade de Deus que um bebê nasça com uma doença grave, incapacitadora ou letal, mas isto acontece. Faz parte das leis que as ciências naturais catalogam, todas legadas por Deus em Sua vontade determinativa.
Não é da vontade de Deus que um pai despenque moralmente seu carro numa curva. E Deus não o interceptou. Quando não interceptou, Sua vontade determinativa continuou aplicada. 
Não é da vontade de Deus que chuvas produzam lamas que sepultem corpos e casas. E Deus não impediu. Quando não impediu a tragédia, Deus deixou em vigor Sua vontade determinativa. 
A criança nasce enferma porque uma lei natural foi quebrada, conheçamo-la ou não. 
Um caminhão tomba na curva porque houve uma falha: do motorista, do construtor da entrada, do órgão fiscalizador das rodovias ou outra pessoa ou organização.
As chuvas destroem porque, tendo caído, precisaram passar. 
As leis da natureza manifestam a glória de Deus (Salmo 19.1).
Com isto, até um ateu pode concordar.
No entanto, homens e mulheres de fé, leitores e leitoras da Bíblia, gostaríamos que Deus tivesse agido e abortado essas conseqüências. 
O fato é que Deus não interveio para evitar. No entanto, isto não quer dizer que Deus seja desinteressado das coisas humanas ou impotente para as resolver. Antes, Deus continua presente e potente, onipresente e onipotente em todas as situações. Ele não interveio ou aparentemente não interveio por uma razão, podemos dizer, que nós não sabemos.
A teologia em torno da "vontade permissiva" de Deus é uma boa idéia, mas tem seus problemas.
No seu sentido comum, a palavra "permissão" sugere aprovação. Na verdade, quando dizemos que Deus permite que aconteça algo (ruim, sim, ruim, porque não questionamos o bem que Ele permite), não estamos dizendo que Ele aprova essa ocorrência. Deus, por exemplo, permite o pecado humano, mas jamais o aprova. (SPROUL, R.C. Sproul. Exposing the Permissive Will of God. 
Leríamos melhor a Bíblia se não confundíssemos as coisas. O fato de um fato ter ocorrido e estar narrado na Bíblia não quer dizer que Deus o aprove. De igual modo, viveríamos melhor se prestássemos mais atenção à palavra de Deus para obedece-la. É mais cômodo agir irresponsavelmente e pôr na cota da vontade permissiva de Deus. A graça de Deus não pode ser uma avenida larga e longa para a prática dos nossos pecados.
O outro problema com a idéia da "vontade permissiva" é que podemos errar a mão na questão da liberdade humana. Não podemos negar o paradoxo que Deus é soberano e o homem é livre. Estes dois termos podem nos soar antagônicos, mas a soberania de Deus inclui a liberdade humana. Em outras palavras, nossa liberdade se dá na espiral da soberania divina.
Ilustro com algo corriqueiro. Você entra num supermercado e olha todos os produtos, porque é livre para comprar todos eles, mas você só compra aquele(s) que você pode pagar. O desejo é livre, mas o dinheiro é soberano.
Voltando ao paradoxo da fé, precisamos compreender três verdades essenciais:
 
1. Às vezes, uma coisa acontece porque Deus decide que ela acontecerá e Ele faz com que aconteça. Esta é a vontade determinativa de Deus.
Como é onisciente, Deus sabe previamente tudo o que nos vai acontecer, o que inclui as tragédias.
Por isto, Sua vontade determinativa jamais falha. O fato de Ele conhecer o que vai acontecer não significa que Ele determinou que acontecesse. Devemos saber também que, mesmo nestes casos, a vontade de Deus é amorosa sempre; nunca é autoritária; mais nos prejudica.
 
2. Às vezes, uma coisa acontece porque Deus deseja que ela aconteça e uma pessoa decide, por livre e espontânea vontade, fazer o que Deus deseja. Isto acontece no interior da vontade prescritiva de Deus.
 
3. Às vezes, uma coisa acontece porque uma pessoa ou um grupo de pessoas deseja que aconteça e Deus permite que aconteça. Nesta condição estão os nossos pecados ou as nossas falhas, individuais ou coletiva. Estão aí também as tragédias, individual ou coletivas. (O resumo é de TURNER, Allan. The Will Of God.)
Todos estes três tipos de acontecimentos estão na conta da "vontade de Deus", mas só o primeiro (vontade determinativa) é causado por Deus, que respeita integralmente a liberdade humana.
Deus permite que os homens rejeitem o evangelho e persigam os que são justos. No entanto, Deus está no controle. Deus permite aquelas coisas que levarão à realização de Sua vontade determinativa, inclusive a de que somos governados por leis naturais, porque Ele está no controle. Deus permite até aquelas para as quais jamais veremos um propósito. Ainda assim, Ele está no controle.
"A chave para a soberania é o controle final. Através de Sua presciência absoluta de cada plano do coração do homem e através de Sua capacidade absoluta (onipotência) de permitir ou impedir qualquer plano particular que uma pessoa possa ter, Deus mantém controle completo (soberania) sobre a Sua criação. O poder para impedir que significa que Deus, afinal, tem a palavra final em tudo o que acontece. Negar isso é negar a soberania de Deus!" (TURNER, Allan. The Will Of God.)
 
Nossa maior dificuldade está no propósito da não-intervenção de Deus. Como me perguntou um "contato" do facebook: "dor consentida por Deus?" 
Podemos afirmar que a vontade permissiva de Deus obedece a um propósito. No entanto, perguntamo-nos: qual foi o propósito?
Ás vezes, em vida (próximo ou distantes do evento) descobrimos o propósito e e a descoberta nos serve de consolo.
Às vezes, em vida nunca percebemos o propósito da não-intervenção de Deus, mesmo que saibamos que Deus trabalha em planos de longo prazo para o universo e os seres criados. Se a razão nos falha, só temos uma saída: crer que Deus faz com que todas as coisas (até essa tragédia em nossa família), sejam aquelas provocadas por homem ou não, se juntem para o nosso bem (Romanos 8.28). Como lemos em Gênesis, Deus permitiu que os irmãos de José o vendessem como escravo, mas Deus fez com que tudo convergisse para o bem de José, dos seus irmãos e do seu povo. A providência de Deus se serve até do pecado humano.
 
ATITUDES PESSOAIS
Diante do sofrimento, algumas atudes devem nos acompanhar:
 
1. Não escondamos a nossa dor.
Mesmo que aceitemos a sugestão da "vontade permissiva" de Deus, sofremos quando a dor é no nosso peito. Choramos, quando as perdas são em nossa família. Perdemos o sono de noite tentando fazer com que as peças do quebra-cabeças da vida se encaixem e o chão sob nossos pés volte a ficar firme.
Digamos a Deus que, no fundo, em nosso caso, queremos um Deus que suspenda Suas próprias leis em nosso favor.
Nosso sofrimento é legítimo. Nossa queixa, se for o caso, é bem recebida por Deus.
 
2. Oremos pela intervenção divina.
Devemos pedir que Deus intervenha, antes e depois da tragédia.
Devemos pedir por saúde, mesmo comendo mal. Devemos pedir para chegar bem ao destino, mesmo dirigindo mal. Devemos pedir por segurança em nossa casa, mesmo que a tenhamos construído em lugar inseguro.
Pedir é com os filhos. Conceder é com o Pai.
Só ora quem reconhece a soberania de Deus.
Só ora quem se acha aceito por Deus, confiando no amor dEle.
 
3. Oremos por sabedoria para viver.
Aprender a viver é coisa nossa.
Martele-nos a instrução divina:
 
"Ouçam agora, vocês que dizem: ‘Hoje ou amanhã iremos para esta ou aquela cidade, passaremos um ano ali, faremos negócios e ganharemos dinheiro’. 
Vocês nem sabem o que lhes acontecerá amanhã! Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa. 
Ao invés disso, deveriam dizer: ‘Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo’. 
Agora, porém, vocês se vangloriam das suas pretensões. Toda vanglória como essa é maligna. 
Pensem nisto, pois: Quem sabe que deve fazer o bem e não o faz, comete pecado. 
(Tiago 4.13-17)
 
Por que não aprendemos?
ISRAEL BELO DE AZEVEDO