O CRISTÃO E A POLÍTICA (Sylvio Macri)


Se a Igreja é separada do Estado, qual deve ser a posição do indivíduo cristão quanto à política? Historicamente, temos três posições: alienação ou indiferença, envolvimento acrítico e envolvimento crítico. Uma parte entende que o cristão não tem nada a ver com a política, outros dela participam de modo inescrupuloso, e outros participam de maneira transformadora. Esta última é a posição correta, e há base bíblica para isso.

A Bíblia trata de política o tempo todo, porém sob o filtro da teocracia ou governo de Deus. Outro filtro é a nossa tendência de sempre “espiritualizar” a interpretação do texto bíblico. Por exemplo, nem todos percebem que o livro de Juízes é claramente a história política de um longo período da existência de Israel (1200 a 1050 a.C.), em que houve a transição da organização tribal para a monarquia e predominou o chamado “caudilhismo”, regime em que se sucedem líderes temporários e localizados, até que a nação se organize politicamente como um todo. No caso de Israel, tais líderes são chamados de “juízes”.

Os livros de Samuel e Reis referem-se a pelo menos vinte cargos políticos existentes na época e mencionam 10 tentativas bem ou mal sucedidas de golpes de Estado, como, por exemplo, a tentativa fracassada de Adonias, apoiado por um grupo palaciano, de suceder a Davi, e a revolta bem sucedida das dez tribos do Norte, lideradas por Jeroboão, contra o rei Roboão, da qual resultou a divisão do reino. Há, nos livros proféticos, um número significativo de ocorrências do substantivo “pastores” que, ao contrário do que comumente se pensa, não se referem a líderes espirituais, mas a líderes políticos e militares. José ocupava no Egito um cargo político, assim como Daniel e seus três amigos na Babilônia. José, Daniel e os três participaram de governos teocráticos politeístas, e mesmo assim mantiveram sua fé monoteísta. Assim também Neemias, que ocupava um alto cargo político na corte persa, e cuja missão a Jerusalém teve forte conotação política.

A oposição a Jesus, seu julgamento e condenação tiveram clara motivação política. O Sinédrio compunha-se de três facções: os saduceus, sacerdotes de alta posição que constituíam a aristocracia cultual (na verdade uma clerocracia, como em alguns países muçulmanos de hoje), os anciãos, aristocracia proprietária, e os escribas (fariseus), aristocracia intelectual. Os romanos, em razão da sua fraca presença política e militar, jogavam com essas aristocracias, evitando sempre que uma delas alcançasse a hegemonia, no que seguiam Herodes, o Grande. Para o Sinédrio, Jesus era mais um dos que tentavam realizar o sonho teocrático-radical, isto é, a eliminação, pelo Messias, de todo e qualquer domínio terrestre e a implantação do Reino de Deus. A preocupação do Sinédrio com a ameaça representada por Jesus ao frágil equilíbrio de poderes então existente, está em Jo.11.48: “Se o deixarmos em paz, todos crerão nele; então os romanos virão e tirarão tanto o nosso lugar como a nossa nação.”

Um dos convertidos de Paulo em Corinto, Erasto, ocupava um alto cargo na estrutura política da cidade; era o tesoureiro, o que hoje seria secretário de finanças. Nas cidades em que pregou, o apóstolo enfrentou duros adversários, que, com o fim de impedir o seu trabalho, comumente apelavam para as autoridades civis, perante as quais ele precisava defender-se. Assim, por várias vezes usou seus direitos civis como cidadão romano (que eram basicamente direitos políticos): após a prisão e espancamento em Filipos, ao ser preso em Jerusalém, nas audiências perante as autoridades em Cesaréia e na sua apelação para ser julgado em Roma. Segundo Jerônimo, Paulo veio para Tarso com seus pais, feitos prisioneiros de guerra em Giscala, na Galiléia, mas outros supõem que ele nasceu em Tarso, onde seu pai, libertado, adquiriu a cidadania romana. Por esta razão afirmou que era cidadão romano por nascimento, qualificação que lhe foi muito útil na obra missionária.

Portanto, a interação com a política e seus atores é constante na Bíblia. Entretanto, não há na Bíblia nenhum ensino explícito sobre a participação do cristão na política, e isto por dois motivos: ao primeiro deles já nos referimos, que é o regime teocrático que permeia todo o Antigo Testamento. Quem governava a nação, em última instância, era o próprio Yahweh. Portanto, não poderia haver distinção entre política e fé, não seria cabível tratar do assunto tal como o fazemos hoje. O segundo motivo, já no âmbito do Novo Testamento, é que os seguidores de Jesus estavam em posição diametralmente oposta ao Estado Romano e seus vassalos, pois enquanto os cristãos seguiam Jesus Cristo e seus ensinos de um modo radical, os romanos exigiam lealdade ao imperador e sua religião. Não havia como alguém, por exemplo, ser cristão e ao mesmo tempo ser membro do Senado romano. O máximo que encontramos no Novo Testamento são recomendações de honrar e respeitar as autoridades, orar por elas, e de proceder como cidadãos dignos. Além do mais, a Bíblia não é um manual de política, e dessa trata apenas incidentalmente, enquanto interagindo no ambiente em que foi escrita.

Numa explicação pessimista para o surgimento do Estado, Hobbes, pensador inglês do século 17, reutilizou a frase de Plauto (dramaturgo romano, c.230-180 a.C.), que dizia que “o homem é o lobo do homem”, para significar que o Estado surgiu da necessidade de se evitar que os homens destruam uns aos outros. Parece que é isto que está na mente de Paulo quando diz, que o Estado é ministro de Deus para impor ordem na sociedade. Por isto tem o poder de coerção (“espada”), sem o qual se impõe a anarquia. A verdade é que há um abismo entre os Estados que faziam parte do ambiente em que se escreveu a Bíblia (e mesmo do tempo de Hobbes) e os modernos Estados de direito, em cuja lei maior, a Constituição, se inserem as liberdades fundamentais do ser humano, entre elas a liberdade religiosa, e a separação entre o Estado e a Igreja. Nessas modernas democracias, o viés é otimista, pois predomina o princípio da representação. Todos os cidadãos têm direitos e deveres políticos, como por exemplo, o de votar e ser votados. Cada cidadão, como eleitor, representa única e livremente a si mesmo, e cada cidadão que é eleito tão somente representa aqueles que livremente o elegeram.

O direito de votar torna-se, assim, um dever, pois somente aquele que o faz está representando a si mesmo perante os outros. O direito de ser votado também torna-se um dever, pois uma premissa da democracia é que alguns cidadãos precisam ser eleitos pelos outros para que possam, em nome dos eleitores, legislar, executar as leis e fiscalizar seu cumprimento. Portanto, nós cristãos, como uma parcela dos cidadãos dignos de uma nação democrática, temos o direito e o dever de participar da vida política, o direito e o dever de votar e ser votados. Especialistas prevêem que por volta do ano 2020 os evangélicos serão 50% da população brasileira. Usando a lógica da representação, é lícito esperar que 50% dos cargos eletivos sejam então preenchidos por evangélicos. Evidentemente trata-se de uma utopia, mas leva-nos a pensar que precisamos mudar nossa mentalidade em relação à participação na política. Se não votarmos, e votarmos bem, alguém que não pensa como nós votará, e, muito provavelmente, elegerá alguém que também não pensa como nós.

Mas, antes de encerrar este texto, gostaria de aproveitar algumas considerações, aqui citadas e adaptadas livremente, de um antigo discurso de Samuel Escobar, no que se refere a um pensamento político evangélico (“A Responsabilidade Social da Igreja”, Ed. Vida Nova, 1970, discurso proferido no 1º. Congresso Latino-Americano de Evangelização, Bogotá, 1969).

Em primeiro lugar, o evangelho não é um programa social e político. A igreja não espera edificar o Reino de Deus sobre a terra, nem “cristianizar” a sociedade. O destino da igreja não depende desta ou daquela ideologia. Isso está mais do que provado na sua experiência ao longo dos séculos, e mesmo em nossa época, quando tem sobrevivido (e mesmo progredido) em meio aos mais restritivos regimes políticos, como por exemplo, na China comunista. Entretanto, a igreja precisa, como Cristo, encarnar-se, fazer-se consciente do contexto político e social onde estão as pessoas que ela deve alcançar com a sua mensagem e serviço.

Consequentemente, em segundo lugar, o evangelho não é nem uma ideologia da classe trabalhadora, nem uma ideologia da classe média, ou qualquer outra. Como um grupo social, a igreja corre o risco de tornar-se uma comunidade de brancos segregacionistas, ou uma igreja de classe média, com mentalidade e hábitos burgueses, ou uma igreja dos oprimidos, que defende a luta revolucionária. Como vimos anteriormente, Jesus não pretendeu erigir ideologias, porque estas separam as pessoas, levando-as à luta, ao preconceito e, frequentemente, ao ódio. Precisamos ter o cuidado de não sermos surpreendidos defendendo posições de classe, em detrimento da verdade de que todos somos um em Cristo.

Em terceiro lugar, a sociedade é mais do que a mera soma dos indivíduos que a compõem. Não haverá transformações somente pelo fato de os indivíduos serem, um a um, mudados pelo poder do evangelho. É preciso que estes pensem e ajam como sal da terra e luz do mundo. A igreja precisa agir socialmente, e isto significa mais do que praticar beneficência. A igreja precisa expor-se na linha de frente da batalha pela justiça social, pelas liberdades democráticas, pelos direitos individuais e pela ética em todos os níveis de atividade individual e coletiva. Contra a corrupção, o crime organizado, a má administração pública, o mau uso dos recursos naturais, etc. Enquanto o Rio de Janeiro tornava-se a cidade mais violenta do país, líderes evangélicos se orgulhavam do crescimento numérico de sua população evangélica. Mas, perguntamos: Como uma cidade em que, segundo as estatísticas, residem 2 milhões de crentes em Jesus Cristo, pode ser tão violenta?

Em quarto e último lugar, Jesus Cristo afirmou que o verdadeiro poder é o que vem pelo servir, ensino que está na contra mão do que pensa a maioria dos nossos políticos (Mc.10.42-45), mas, ironicamente, expressa muito bem o modelo da democracia representativa: o único e verdadeiro poder que o representante tem é exatamente o de representar – leia-se servir – aqueles que o elegeram, e não a si mesmo, à sua família ou a grupos corporativistas. Precisamos desesperadamente de cristãos autênticos, com vocação política, que encarnem em sua atuação esse princípio poderoso: o maior e mais excelente político é aquele que mais e melhor dedica sua vida a servir o próximo, assim como Cristo o fez.