PARA UMA TEOLOGIA DA SOBRIEDADE (Carlos Magalhães)

Primeiras palavras acerca de uma teologia da sobriedade.

(Dedico este texto à minha irmã, amiga e pastora Elen Ressiguier Araújo.)

Respondendo, ou melhor, na tentativa de responder a um questionamento de foro íntimo que me foi compartilhado por uma amiga, escrevo este pequeno artigo a fim de tentar olhar com olhos mais aguçados o versículo 18 do capítulo quinto da Epístola de Paulo aos Efésios, onde diz, na versão ACF: E não vos embriagueis com vinho, em que há contenda, mas enchei-vos do Espírito.
Primeiramente, é necessário atentar-nos ao fato de que estamos diante de um paralelismo sintático, que nos coloca em uma posição única diante do texto em questão. Se há paralelismo, então necessariamente há uma correlação direta, embora negativa, entra os dois tópicos abordados pelo autor no versículo.
Por um lado, temos a citação de um trecho de Pv 23:31, “não vos embriagueis com vinho”, e um adendo do Apóstolo citando as conseqüências deste ato ou da natureza do estado de embriaguez, no caso de ACF: “em que há contenda”. Por outro lado, Paulo nos exorta a enchermo-nos do Espírito. Tendo em vista esta realidade textual, embriagar-se é a antítese do encher-se. O que me faz compreender que estas duas realidades são lados opostos de uma mesma “moeda” existencial.
Quando colocamos os dois conceitos em paralelo acabamos por cair na boa interpretação de opor estas duas questões de maneira simétrica e equidistantes.
A grande tentação da particularidade deste texto é exatamente, ao contemplar a simetria dos conceitos somada à cultura protestante da modernidade, permanecer na frieza da literalidade do argumento paulino. Muito embora é necessário admitir que o texto se refere explicitamente, tanto ao (mal) hábito da embriaguez literal, quanto ao bom movimento espiritual do encher-se do Espírito, parece-me inadequado interromper a interpretação nestes dois conceitos primitivos do versículo.
É importante admitir que nunca é demais superestimar qualquer texto de Paulo Apóstolo. Primeiro, porque se trata de um texto revelado pelo Espírito Santo a um homem indubitavelmente inspirado para escrevê-lo. Segundo, porque a genialidade do autor nos permite ir sempre além do que o texto à priori mostra em sua superfície.
Sendo isto uma verdade, o que estaria por detrás do primeiro conselho em relação ao não embriagar-se com o vinho, sendo o vinho um fundamental elemento bíblico para a compreensão da alegria em Deus, principalmente no Antigo Testamento, e para a simbologia do sacrifício vicário de Jesus de Nazaré, cujo derramamento de seu sangue (simbolizado pelo elemento vinho), nos purifica de todo o pecado, no Novo Testamento?
É lógico que a questão zde Paulo não é o vinho em si, mas sim as consequências que o abuso de sua ingestão causa ao ser-humano. Se Efésios tivesse sido escrita na década de oitenta, Paulo poderia ter citado a cocaína; na década de noventa, o crack; na primeira década do corrente século, o ecstasy. O que quero dizer é que o elemento não é importante, tendo em vista, os efeitos que seu uso acarreta.
A embriaguez, em contraponto com o encher-se do Espírito, tem muito mais uma conotação existencial do que meramente legal e condenatória. Pois, é a responsta do indíviduo dominado por um elemento que lhe tira a consciência que parece ser a real preocupação do Apóstolo.
Um homem dominado por qualquer tipo de narcótico (principalmente os recreativos) perde a plena capacidade de enxergar-se no mundo real e de entender a realidade a sua volta. Embriagar-se com vinho tira a capacidade do homem de responder às demandas da vida com a plenitude de sua capacidade racional e moral. As faculdades mentais entorpecidas acabam por retirar o indivíduo do mundo em que vive, o trasportanto para um mundo imaginário e irreal que apenas existe em seu estado de torpor.
A sobriedade, valorizada por Paulo, nos leva a real compreensão da vida e à total responsabilidade por nossos atos de modo consciente. O sóbrio sabe aonde pisa e coloca-se diante da própria existência sabendo o que lhe acarretará existir.
Neste sentido, o embriagar-se, atitude que nos arranca a capacidade do uso consciente da razão, nos bestializa enquanto seres-humanos racionais. Nos encontramos muito mais parecidos com bestas-feras do que com a autenticidade de nossa natureza quanto algo nos tira a plena condição de agirmos como seres-humanos em estado de saúde psíquica e mental.
O que nos separa dos animais é, talvez primeiramente, a capacidade de respondermos moralmente à todas as questões que envolve a existência. Nosso dever, enquanto humanos, de sermos naturalmente racionais é temporariamente amputado quando perdemos a consciência de nossos atos devido à consequente entrega de nossa lucidez à qualquer elemento entorpecente.
Mas, se existe um elemento existencial no ato de embriagar-se, também temos que contemplar um elemento cultural próprio ao tempo em que foi escrita a epístola. Porque nos tempos do primeiro século imperava no mundo (no caso de Paulo, o mundo helênico) o culto ao panteão de deuses greco-romanos. O paganismo era a religião dominante e, portanto, amplamente aceita como a verdadeira forma de se conectar ao sagrado.
É sabido que nos cultos pagãos o elemento do torpor era amplamente usado para o alcance do pleno estado de adoração dos fiéis. Era assim, por exemplo, nos cultos à Dionísio, deus do vinho, cujas festividades sagradas incluiam o amplo e abusivo uso de bebidas alcoólicas.
Então, para o religioso pagão, a embriaguez, que lhe tirava a consciência do que realmente estava fazendo, era elemento cúltico fundamental. O que se contrasta em absoluto, tanto com o culto judáico primitivo, quanto o posterior culto cristão.
A Teologia (e Antropologia) do Culto judaico-cristão obriga o indivíduo adorador em estado de culto a estar plenamente consciente do que estava fazendo, porque estava fazendo, como estava fazendo e a quem estava fazendo em todos os movimentos de culto. O mesmo Paulo vai dizer em Rm 12:1 “Portanto, irmãos, rogo-lhes pelas misericórdias de Deus que se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus; este é o culto racional de vocês” (NVI).
Neste sentido, cultuar a Deus é, antes de tudo, ser capaz de compreender tudo o que que está implicado neste culto. O culto é racional, porque culto é entrega na teologia cristã, entrega de si para o Deus que se entregou por nós. Este movimento de fé e arrependimento diante da divindade que recebe o culto, para ser válido, precisa ter a razão como elemento propulsor do próprio culto. Assim, eu cultuo o que conheço e cultuo porque conheço.
Não existe culto cristão em que os que cultuam não conseguem discernir o que estão fazendo. Embriagar-se com vinho era, aos olhos de Paulo, paganizar a realidade cúltica do cristianismo. Porque, na teologia paulina, o culto à Deus transborda o ajuntamento de pessoas em um lugar público. Eu me ajunto porque cultuo e não me ajunto para cultuar. O culto precede o ajuntamento e o momento de celebração coletiva é posterior à uma vida de constante culto (Cl 3:17 e Ef 5:20).
A embriaguez, seja ela em que nível de interpretação a concebamos, nos coloca em uma realidade falsa de fantasia. Como disse a psicóloga Lucyenne Rosas, viver na fantasia é muito mais fácil e cômodo do que enfrentar as duras realidades da vida.
Ao conclamar os efésios para não se embrigarem com vinho, Paulo os convida para uma vida longe de mundos líricos e imagísticos onde reinam as fantasias que, sabemos muito bem, nos retiram da realidade à nossa frente. A dureza do mundo real é uma tentação para a entrega do corpo e mente aos torpores de todas as naturezas. Paulo luta contra isso, pois entende que este movimento de auto-enganação não apenas nos tira de nossa própria realidade existencial, mas também nos atira em um oceano de afastamento da real divindade, o Deus e Pai de Jesus Cristo.
A respeito de tudo isso, BJ traduz a parte seguinte do versículo dizendo que embriaguez com vinho é “a porta para a devassidão”, ou seja, a perda da consciência e da capacidade de responder naturalmente às demandas da vida, nos leva consequentemente a uma vida de perversão moral e espiritual. AA e a Sociedade Bíblica Britânica irão traduzir “devassidão”. NVI usa “libertinagem”, o que me parece bastante sensato porque nada mais coerente do que alguém sem consciencia de seus atos usar de maneira equivocada a liberdade que lhe foi concedida para existir. ACF traduz como “contenda”.
Champlin traduz “asotia” como “dissolução”, ou falta de inibição, que leva o bêbado a tomar atitudes que sóbrio jamais tomaria. De qualquer forma, creio que todas as traduções disponíveis nos levam a compreender que o indivíduo embriagado perde a dignidade diante de si, da comunidade e a capacidade de relacionar-se com Deus.
Em contraponto a tudo isto, Paulo Apóstolo coloca o encher-se do Espírito como atitude contrária à bestialização da figura humana com a perda da capacidade de viver a realidade posta à sua frente. Então, se entendo bem este paralelismo antagônico, é lógico inferir que enquanto embriagar-se é bestial, encher-se do Espírito nos aproxima cada vez mais da condição humana estabelecida por Deus no ato da criação.
Se é correto afirmar que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança (Gn 1:26) e com o evento histórico da Queda esta imagem foi parcialmente destruída, o encher-se do Espírito nos leva de volta à humanidade plena, contemplada no único ser humano que viveu e morreu na face da terra sem cometer pecado algum, Jesus de Nazaré. Encher-se do Espírito é gradativamente tornar-se semelhante à Jesus e, portanto, cada vez mais humano.
A plenificação da humanidade em contraponto a bestialização do indivíduo não humaniza a fé, de modo algum! Ao contrário, encher-se do Espírito resignifica a humanidade, tornando-a novamente semelhante ao seu estado de pureza original.
Cabem dois detalhes gramaticais importantes para a compreenção da expressão “enchei-vos do Espírito”, como nos explica Champlin.
Primeiro, o tempo presente do original grego indica que esta ação de encher-se é para sempre contínua. Traduziriamos corretamente se dissessemos “enchendo-vos”. Paulo quer dar uma conotação permanente para o ato de encher. Jamais estaremos plenamente cheios, ou melhor, é sempre necessários fazermos movimentos de enchimento, pois nunca conseguiremos alcançar a perfeição da plenitude do Espírito em nós. Pelo menos não antes da glorificação. Enquanto estivermos na mundanidade a necessidade do Espírito em nós é constante e permanente. Não existe, portanto, um ponto de estagnação espiritual positiva na religiosidade cristã.
Segundo, o modo dativo da frase na língua grega coloca o Espírito como o agente do enchimento. Desta forma NVI traduz com mais fidelidade quando nos diz: “mas deixem-se encher pelo Espírito”.
Olhando o texto por dois ângulos (gramatical e contextual), o Santo Espírito possui uma dupla função na vida do cristão: ser tanto o agente, quanto o elemento que enche. Assim, somos cheios DO Espírito, PELO próprio Espírito. O que coloca sob a responsabilidade de Deus a humanização dos que crêem, fazendo do processo de redenção algo totalmente dependente da graça divina, que em todas as instâncias é o agir divino em direção ao ser humano a despeito de qualquer caráter meritório deste ser.

É o caráter amoroso de Deus que o move em ação redentora no mundo (Jo 3:16) e à partir da salvação do homem, consequentemente, Deus continua a transformá-lo através do Espírito.
Mas transformá-lo em que? Em minha opinião, é na validade do paralelismo sintático que reside a chave interpretativa de todo o texto. Na sobriedade, ou seja, na percepção racional e consciente da realidade que nos cerca, fazendo de nós plenamente humanos como nunca poderíamos ter deixado de ser, se encontra a plena ação do Espírito na vida do indivíduo. O Espírito nos resgata das fantasias e nos trás ao mundo real, onde nos conhecemos como quem realmente somos, e, damos novos sentidos e significados à vida que nos cerca, à partir de Jesus de Nazaré, o único referencial de humanidade perfeitamente verdadeiro.
Nos versículos seguintes o Apóstolo ensina como este processo de enchimento acontece na vida do crente: “Falando entre vós em salmos, e hinos, e cânticos espirituais; cantando e salmodiando ao Senhor no vosso coração; Dando sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo; Sujeitando-vos uns aos outros no temor de Deus.” (Ef 5:19-21)
Ou seja, é através de uma vida piedosa de devoção e comunhão com Deus e com os irmãos que estaremos plenamente aptos para sermos enchidos DO Espírito, PELO Espírito. Então poderíamos acrescentar à esta lista: leitura e meditação na Palavra, orações intercessórias, comunhão através de celebração coletiva no templo e nas casas, jejum, prática da caridade, enfim, tudo aquilo que nos move em direção à Deus.
Um serviço diligente no Reino de Deus é a porta de entrada para a transformação pessoal do ser humano em um ser cada vez mais sóbrio, racional e consciente de seu papel do mundo através de estarmos cheios do Espírito Santo, em quem reside a verdadeira e plena alegria de existir (Lc 10:21; At 13:52; Rm 14:17; Gl 5:22; I Ts 1:6)