Num dia destes, enquanto procurava alface num mercado, ouvi um diálogo banal, mas revelador da condição humana.
Com os olhos eloqüentes, uma mulher falou diante de uma banca de frutas:
– Não suporto uva.
Sua colega respondeu apenas:
– Adoro uva.
Não sei como acabou a conversa, mas estou certo que muitos desentendimentos começam com assuntos cujas posições pessoais não fazem a menor diferença no seu resultado.
A mulher que não gostava de uvas externou sua posição com tanta ênfase que boa parte do sacolão ouviu. Espero que ela não tenha perdido a amiga.
Esta história nos faz lembrar a de Mical (2Sm 6.16-22). Casada com Davi, que virou o mundo para tê-la como esposa, ela viu seu marido cercado de homens e mulheres pobres numa procissão espiritual que levava a Arca da Aliança em obediência ao Senhor. Ela ficou enfurecida de ciúme. Quando o rei entrou em casa, para abençoar sua família, Mical simplesmente o detonou:
– Que bela figura fez o rei de Israel, descobrindo-se, hoje, aos olhos das servas de seus servos, como, sem vergonha, se descobre um vadio qualquer!
Davi respondeu:
– O Senhor, que me escolheu a mim antes do que a teu pai e a toda a tua casa, mandando-me que fosse chefe sobre o povo do Senhor, sobre Israel, perante o Senhor me tenho alegrado. Ainda mais desprezível me farei e me humilharei aos meus olhos; quanto às servas, de quem falaste, delas serei honrado.
E ali, praticamente, acabou o casamento.
Se Mical tivesse repreendido a Davi com mansidão, como recomenda Paulo a Timóteo (2Tm 2.25), sua história poderia ter tido outro desdobramento.
Muitos de nós nos comportamos como a mulher que não gostava de uvas ou como Mical. Quando isto acontece conosco, estamos longe de ver manifesto em nós o fruto do Espírito marcado pela mansidão.
AS DIMENSÕES DA MANSIDÃO
A palavra mansidão é uma das mais interessantes da Bíblia, porque seu significado foi mudando com o tempo.
1. No início, mansidão era um vocábulo aplicado a pessoas pobres, desprovidas de qualquer bem ou proteção. Essas pessoas, por terem apenas a Deus como seu único bem, dependiam dEle e esperavam dEle a solução dos seus problemas. É a este tipo de mansidão a que se referem os poetas e profetas do Antigo Testamento (Sl 37.11; Is 29.19). Este é o mesmo sentido que Jesus dá a esta virtude, ao prometer que são “bem-aventurados os mansos, porque [eles] herdarão a terra” (Mt 5.5).
No Antigo Testamento, mansidão é prioritariamente uma atitude de completa dependência diante de Deus e a conseqüente aplicação desta disposição no relacionamento com os outros. Se sou dependente de Deus, vou ter uma relação diferente com Ele e vou tratar meus semelhantes (até os que me importunam) de modo coerente com o meu relacionamento com Deus.
No Novo Testamento, a mansidão (prautes, no grego) está associada a um estado de espírito diante de Deus e a uma disposição de mente diante do próximo. Diante de Deus, mansidão é a marca da humildade. Diante de Deus, mansidão é uma das dimensões do domínio próprio e da longanimidade. Ser manso é ter a capacidade de se controlar diante daquilo que nos irrita.
Manso é aquele capaz de perder uma discussão, sem se exasperar. Manso é aquele capaz de discutir um assunto, sem perder a calma. Manso é aquele capaz de ser livre do espírito de vingança, mesmo diante da provocação. Manso é aquele que prefere errar perdoando em lugar de “acertar” odiando (ou odiar errando).
2. Jesus era manso. Ele mesmo se apresentou assim, ao dizer que seu jugo era suave. Eu “sou manso e humilde de coração” (Mt 11.29) – convidou.
A propósito, o retrato de Jesus, feito por paleontólogos ingleses a partir do crânio de um seu contemporâneo, não traduz a mansidão do Filho de Deus. Parece mais um palestino enfurecido. (Aliás, quando daqui há alguns milênios eu tiver virado um fóssil, espero que os cientistas não achem que todos os brasileiros do século 21 não usavam meias ou que todos eles não organizavam as suas mesas.)
Portanto, só é manso quem é humilde; isto é, quem não confia demasiadamente em si.
DESFAZENDO EQUÍVOCOS
Mansidão não é uma virtude cultivada, sequer recomendada entre os seres humanos. Ao contrário, são estimulados a bravura e o orgulho, posturas bastante contrapostas à mansidão.
1. Em todas as épocas há sempre a tribo dos que acham que podem resolver tudo pela força do seu braço ou do seu grito. Em todos os tempos os musculosos, os fortes, os sarados são incensados. Com isto, projeta-se a imagem da auto-suficiência e mesmo de uma força construída à base de anabolizantes farmacológicos ou psicológicos.
Em todas as épocas, é valorizado aquele que bate quando apanha, que não leva desaforos para casa. Esta valorização alimenta os desentendimentos, os homicídios e as guerras. Nós só decidimos brigar quando achamos que podemos derrotar o inimigo. Só os bravos brigam. Só os bravos vencem. Só os bravos morrem brigando.
Por isto, a verdadeira bravura é a mansidão. O verdadeiramente bravo é o manso. A mansidão é a verdadeira superioridade. Quando eu sou dominado pela raiva ou quando reajo ao que o outro me diz ou me faz, eu lhe sou inferior. Quando perante os seus acusadores, Jesus respondeu com mansidão. Não replicou, não Lhe ferveu o sangue, não chamou seus anjos para agir contra eles.
Bravura como coragem é uma disposição a ser buscada; bravura como destempero e descontrole é característica que não se deve querer. Afinal, ninguém quer se relacionar com pessoas bravamente desequilibradas e com as quais é sempre preciso medir as palavras com medo da fúria dos seus ataques. Aliás, os assim bravos não aceitam conviver com pessoas igualmente bravas.
2. Não devemos confundir mansidão com relaxo diante dos assuntos relacionados ao Reino de Deus, que inclui a luta pela justiça.
O Pentateuco apresenta Moisés como um homem muito manso, “mais do que todos os homens que havia sobre a terra” (Nm 12.3). No entanto, notemos o que ele fez. Vejamos o que perdeu quando deixou de ser manso (batendo na rocha com a qual deveria falar) e perdeu a oportunidade de entrar na terra prometida. Vejamos como estava certo quando quebrou as tábuas da lei, ao contemplar o deus-bezerro, depois de ter visto a glória do Deus invisível.
O Jesus que se manteve silencioso quando foi julgado (Mt 27.12-14; cf. Is 53.7) foi o mesmo que expulsou os comerciantes de uma das áreas do templo (Jo 2.14-17) e não se cansava de denunciar a hipocrisia dos fariseus (Mt 23.13ss).
A indignação deve fazer parte do caráter cristão; do contrário, o cristão será um cínico. No entanto, mesmo a indignação deve ser exercida com mansidão (2Tm 2.25), que não pode ser confundida com timidez, com falta de firmeza ou com covardia.
A indignação deve se manifestar por motivos corretos, em termos adequados, com as pessoas certas, na hora apropriada e por um tempo limitado, como recomenda Aristóteles (na sua Ética a Nicômano). Não tem nada a ver com rompante. Por isto, podemos dizer que só é manso aquele que crê que Deus é o Senhor da história (da história dos homens e da sua própria história).
3. Quando cremos que Deus é o Senhor da história, e que somos seus servos na promoção da Sua soberania, portamo-nos como mansos, no sentido de humildes.
Muitos de nós, no entanto, temos nos portado orgulhosamente. Menciono duas marcas desta vaidade “evangélica”.
A primeira é o orgulho de ser salvo. As conseqüências desta postura são nefastas, no campo da ética e dos relacionamentos. Se tenho orgulho de ser salvo, eu nada mais preciso fazer, já que alcancei o bem supremo. Dirão alguns: ninguém pensa desse modo. De fato, nunca conheci alguém que pense isto, mas conheço centenas que vivem exatamente deste modo. Por se acharem melhores, nada fazem para serem melhores. Por se acharem diferentes, nada fazem para serem diferentes. Por se acharem santos, nada fazem para serem santos.
Quem vive assim ainda não entendeu o que é a salvação. Se são, não usufruem das suas bênçãos.
A segunda é o orgulho de pertencer a uma igreja. Não há problema em gostar de participar de uma igreja; o problema é quando se torna uma atitude de altivez, imprópria para os mansos de coração. O quadro se agrava quando este orgulho se reveste de um equívoco derivado do primeiro: orgulhar-se de uma igreja fictícia, que pode se manifestar em duas modalidades.
Um dia desses, telefonei para um membro que sequer conheço. Essa pessoa me disse que não quer tirar sua carta de transferência para outra igreja, porque gosta muito da nossa. Gosta tanto, que aqui não aparece. Trata-se, portanto, de orgulho duplamente qualificado.
Não devemos ter orgulho de sermos evangélicos, porque não há mérito algum em nossa conversão. Não devemos ter orgulho de pertencermos a uma igreja, seja ela real ou fictícia, porque uma igreja é uma congregação de pessoas pecadoras. Mesmo resgatados, o pecado ainda tem domínio sobre nós. Graças a Deus, o mal não tem o poder final sobre nós, mas enquanto aguardamos a perfeição, somos o que somos: imperfeitos. Por que nos orgulharmos? O Reino dos Deus é feito dos mansos; eles é que herdarão os céus.
CONCLUSÃO
Aparentemente, eu me desviei do tema, ao falar dos opostos à mansidão. As antíteses nos ajudam a entender as teses.
Agora, posso lembrar que somos chamados para a mansidão, em várias recomendações bíblicas:
1. “Buscai o Senhor, vós todos os mansos da terra, que cumpris o seu juízo; buscai a justiça, buscai a mansidão; porventura, lograreis esconder-vos no dia da ira do Senhor” (Sf 2.3).
2. Devemos suportar uns aos outros em amor, “com toda a humildade e mansidão” (Ef 4.2). Assim, revistamo-nos “como eleitos de Deus, santos e amados, de ternos afetos de misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de longanimidade” (Cl 3.12).
3. A exemplo do que fez o apóstolo Paulo, consideremos a mansidão como uma virtude a ser buscada e desenvolvida, junto com a justiça, a piedade, a fé, o amor e a constância (1Tm 6.11).
4. Nossa força e nossa beleza, como recomenda o apóstolo Pedro, “deve estar no coração, pois ela não se perde; ela é a beleza de um espírito calmo e delicado, que tem muito valor para Deus” (1Pe 3.4).
5. Os cristãos somos chamados à mansidão. Os que ainda não servem a Jesus como Senhor devem aceitar a suavidade do seu jugo (Mt 11.28).
ISRAEL BELO DE AZEVEDO