ORAÇÕES DA BÍBLIA, 1: orando ao Deus que vê e fala

"Tu és o Deus que me vê".
— Hagar
(Gênesis 16.13 — NVI)
"A oração começa onde nosso poder termina".
(Abraham Joshua Heschel)
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Diante de mim, no segundo banco da igreja, Luiz interrompeu meu estudo sobre os atributos de Deus.
— Para mim, disse ele, Deus é o Deus da vista.
Como fiz um silêncio de curiosidade, ele abriu a Bíblia, que estudávamos naquela noite, na história da fuga da Hagar (ou Agar) da casa de Abrão (o futuro Abraão), de quem estava grávida.
Na versão que usava, o atributo divina brilhava aos olhos:

"E ela [Hagar] chamou o nome do SENHOR, que com ela falava: 'Tu és Deus da vista', porque disse: 'Não olhei eu também para aquele que me vê?'" (Gênesis 16.13 — ARC)

Leiamos a história toda:

Gênesis 16

(1) Ora, Sarai, mulher de Abrão, não lhe dera nenhum filho. Como tinha uma serva egípcia, chamada Hagar, (2) disse a Abrão:
— Já que o Senhor me impediu de ter filhos, possua a minha serva; talvez eu possa formar família por meio dela.
Abrão atendeu à proposta de Sarai. (3) Quando isso aconteceu, já fazia dez anos que Abrão, seu marido, vivia em Canaã. Foi nessa ocasião que Sarai, sua mulher, lhe entregou sua serva egípcia Hagar. (4) Ele possuiu Hagar, e ela engravidou.
Quando se viu grávida, começou a olhar com desprezo para a sua senhora. (5) Então Sarai disse a Abrão:
— Caia sobre você a afronta que venho sofrendo. Coloquei minha serva em seus braços e, agora que ela sabe que engravidou, despreza-me. Que o Senhor seja o juiz entre mim e você.
(6) Respondeu Abrão a Sarai:
— Sua serva está em suas mãos. Faça com ela o que achar melhor.
Então Sarai tanto maltratou Hagar que esta acabou fugindo.
(7) O Anjo do Senhor encontrou Hagar perto de uma fonte no deserto, no caminho de Sur, (8) e perguntou-lhe:
— Hagar, serva de Sarai, de onde você vem? Para onde vai?
Respondeu ela:
— Estou fugindo de Sarai, a minha senhora.
(9) Disse-lhe então o Anjo do Senhor:
— Volte à sua senhora e sujeite-se a ela.
(10) Disse mais o Anjo:
— Multiplicarei tanto os seus descendentes que ninguém os poderá contar".
(11) Disse-lhe ainda o Anjo do Senhor:
— Você está grávida e terá um filho, e lhe dará o nome de Ismael, porque o Senhor a ouviu em seu sofrimento. (12) Ele será como jumento selvagem; sua mão será contra todos, e a mão de todos contra ele, e ele viverá em hostilidade contra todos os seus irmãos.
(13) Este foi o nome que ela deu ao Senhor que lhe havia falado: "Tu és o Deus que me vê", pois dissera: "Teria eu visto Aquele que me vê?"
(14) Por isso o poço, que fica entre Cades e Berede, foi chamado Beer-Laai-Roi.
(15) Hagar teve um filho de Abrão, e este lhe deu o nome de Ismael. (16) Abrão estava com 86 anos de idade quando Hagar lhe deu Ismael. (Gênesis 16,1-26 — NVI)

O "Deus da vista" lhe fazia sentido porque, naquela semana, ele seria operado dos olhos por causa de uma catarata. Essa era a sua busca: a certeza de que Deus, que supre todas as nossas necessidades (Filipenses 4.19), supervisionaria sua cirurgia.
A experiência do Luiz faz parte da família dos sentimentos de homens e mulheres de fé, como Hagar, a segunda mulher de Abraão, desde os tempos em que seu nome escrito com dois A e não com três.
Segundo a Bíblia, ele estava com quase 86 anos de idade e vivia com Sarai (ainda com este izinho no final). Eles viviam o drama de não terem filhos, numa época em que isto era uma condição inaceitável para o casal, tanto que a Bíblia está cheia de relatos de infertilidade, como, por exemplos, as mães do guerreiro Sansão (Juizes 13.2) e dos profetas Samuel (1Samuel 1.5) e João Batista (Lucas 1.7). Como nos dias de hoje, muitos casais que não conseguem engravidar pedem uma intervenção de Deus, para fazer "com que a mulher estéril habite em família e seja alegre mãe de filhos" (Salmo 113.9).
O problema com Sarai e Abrão é que eles viviam o drama da infertilidade (Gênesis 11.30), agravado por uma promessa feita por Deus há dez anos de que formariam uma grande família. Com o tempo se passando, resolveram tomar uma atalho e contrataram uma moça egípcia, que cuidava das coisas da patroa, para servir de barriga de aluguel. Assim, pensavam, a promessa de Deus se cumpriria. Afinal, os anos se passavam e o berço continuava vazio.
As coisas deram certo, mas nem todas. Acontece que Hagar, a "doméstica egípcia", assim que ficou grávida, começou a debochar de Sarai, que, furiosa, chegou para a Abrão com aquele típico ultimato de mulher.
O velho preferiu ficar com Sarai, que expulsou imediatamente a moça de casa (tenda, naquela época). Perambulando pelo deserto, assentou–se perto de uma fonte de água, quando um anjo, enviado por Deus, a encontrou e mandou que voltasse para casa dos patrões, onde nasceria Ismael.
É neste momento que Hagar ora. Sabemos pouco sobre esta prece, da qual temos apenas uma frase, mas que frase!

"Tu és o Deus que me vê".

Esta é a primeira oração da Bíblia.
Antes dela, temos diálogos diretos, feitos de corpos presentes, entre Deus, que fala da terra (por meio de um mensageiro) ou do céu (por meio de uma voz audível), e o ser humano. Aqui não, o anjo e Hagar conversam e, em meio ao sofrimento e às conversas, Hagar ora.
A primeira oração da Bíblia é apresentada por uma mulher, por uma mulher humilhada na sua condição de mulher.
A primeira oração da Bíblia é de uma escrava, privada de todos os direitos, tendo apenas o dever de trabalhar, trabalhar, trabalhar, inclusive na cama do seu patrão.
A primeira oração é de uma mulher maltratada por outra mulher, com a conivência do marido, e que, por isto, foge para sobreviver. Sarai e Abrão são cúmplices no abuso e obrigam Hagar a fugir.
1. A primeira oração da Bíblia é de uma pessoa punida por seu comportamento. Escalada por sua patroa para dar um filho à família, pôs-se a debochar daquela que a contratara. Mesmo depois que Sara (não mais Sarai) teve filho do seu próprio ventre, Hagar continuou a provocá-la (Gênesis 21.9), talvez lhe lembrando que o primogênito (que tinha todos os direitos naquela cultura). A lição não fôra aprendida e ela acabou expulsa pela segunda vez, sem outra chance (Gênesis 21.14), agora junto com o filho adolescente.
É consolador saber disto. Não precisamos ser perfeitos para orar. Quando orou, Hagar estava pagando o preço de sua insolência. O que importa é que ela orou e foi ouvida.

2. Hagar nos ensina que devemos orar. Ali no deserto, longe das tendas onde Deus era invocado, sob a liderança de Abrão, um homem de fé, um homem de oração, apesar (ou talvez por causa) de suas falhas, ela devia orar. Egípcia, Hagar vinha de uma civilização muito desenvolvida, onde talvez a oração não fazia parte das práticas das pessoas. Hagar era uma escrava e talvez tenha aprendido a orar com seus patrões. Como aprendeu, não sabemos. Como aprendemos, também não é importante. Não importa a nossa história, se regada a oração em nossa casa ou vivida no horizonte da autossuficência. Importa que hoje oremos. Podem orar por nós, mas devemos ser os que mais oramos por nós mesmos.

3. Hagar nos ensina quando devemos orar. Não sabemos nada sobre a vida de oração da mãe de Ismael, mas sabemos que na hora da angústia ela clamou ao seu Deus. No entanto, nossa vida não se dá sempre no vale da sombra da morte (Salmo 23.4). Nos votos do casamento, os noivos se comprometem a amar e a cuidar um do outro, na riqueza e na pobreza, na saúde e na fraqueza. Essa é a hora de orarmos: na riqueza e na escassez, na saúde e na enfermidade. Quando fazemos isto, pomos em prática a difícil instrução do apostolo Paulo: "Orem sempre" (1Tessalonicenses 5.17 — NTLH; cf. 1Tessalonicenses 1.2 e 2Timóteo 1.3). Se orarmos quando não estamos passando por lutas duras, estaremos mais fortes para enfrentá-las quando chegaram. Esta era a trilha de Jesus: ele orava sempre, sobretudo antes dos perigos e das tentações. Há nos Nos Evangelhos há17 referências "à vida ativa de oração de Jesus", que era uma pessoa de oração. "Quando oramos, abraçamos a linguagem de Jesus como nossa linguagem". Ele orava e nós devemos orar também sempre. "Quando vamos com Jesus para a escola da linguagem, nós oramos". [PETERSON, Eugene H. A linguagem de Deus. São Paulo: Mundo Cristão, 2011, p. 181-182,]

4. Hagar nos nos indica a quem devemos orar. Quando lemos a história, notamos que a atitude de Hagar é uma resposta à iniciativa de Deus. Expulsa para o deserto, ela sai vagando, com o filho no ventre. Quem receberia uma escrava grávida, inútil para o trabalho? Quem desafiaria o poder de Abrão, o maior fazendeiro da região, e acolheria uma mulher desprezada? O que será de mim? O que será de meu filho que vai nascer? O narrador é preciso quando informa que o mensageiro de Deus a encontrou perto de uma fonte. Enviado por Deus, o mensageiro se pôs a procurar. Hagar não tinha uma tornozeleira eletrônica para facilitar sua localização no deserto. O mensageiro não desistiu. Como o emissário que levava uma carta a Garcia, cumpriu a sua tarefa. Ele foi enviado para identificar a moça e mostrar que Deus a acolhia, conquanto todos a rejeitassem. Naquele momento, perdida da imensidão daquele areal, Hagar descobriu a verdade mais profunda sobre Deus: Ele nos vê e nos ama como somos. Deus toma a iniciativa. Não importa onde estejamos, Ele nos vê e vem ao nosso encontro. Não importa como estejamos, Ele nos vê e não nos evita. Ele não troca de calçada para não ter que nos saudar. Hagar orou ao Deus que a via, mesmo no momento sombrio da sua vida. Ele viu os maustratos a que foi submetida. Ele sabia onde ela estava e sentia o que ela sofria. Ele a viu. Ele lhe falou. Ele a socorreu. Ele a confortou. Ele a orientou. Ele permitiu que ela sobrevivesse. Ao orar a Deus, Hagar respondeu a Deus. Mesmo no desespero mais desolador, nossa oração ainda assim é uma resposta.

5. Hagar nos diz como devemos orar. O que diz ela? Ela faz uma confissão de fé. De modo eloquente mas sucinto, ela diz quem Deus é. Ela não usa palavras como "onisciência" e "onipresença", mas seu canto afirma precisamente que Deus sabe de todas as coisas e que Deus está presente em todos os lugares, mesmo nos cantos mais escuros em que somos jogados para ser esquecidos. Pela fé, ela sabe, como ensinaria Jesus Cristo, que nem um fio de sua cabeça cairá sem que Deus veja (Lucas 21.18). Não importa se ainda a dúvida deixa suas sombras, é o louvor que nos dará força para saber que Deus se interessa por nós. O Deus que vê é o Deus que sabe onde e como estamos. Então, não oramos no vazio, mesmo quando não ouvimos resposta alguma, mesmo quando não vemos Deus em ação. Ele nunca nos desampara (Salmo 9.10). Quando continuamos afirmando quem Deus é, há cura para o abuso, seja ele sexual, mental ou físico. "Sim, a cura tem de ser possível. Do contrário, o soberano Deus de amor teria, com certeza, intervindo. Onde a cura começa? Com o reconhecimento de El Roi, o Deus que vê. Ele está acordado. Ele vê tudo". [ARTHUR, Key. Lord, I Want to Know You. Citado por SHORB, Ann.The God Who Sees. Disponível em <http://www.ccesonline.com/dev/thegodwhosees.htm>. Acessado em 2.9.2011.] Deus, o guarda de nossas vidas, não dorme, nem cochila. É dele que vem o socorro.
Pode olhar para Hagar e cantar:

Deus "não permitirá que você tropece;
o seu protetor se manterá alerta,
sim, o protetor de Israel não dormirá;
ele está sempre alerta!
O Senhor é o seu protetor;
como sombra que o protege,
ele está à sua direita.
De dia o sol não o ferirá,
nem a lua, de noite.
O Senhor o protegerá de todo o mal,
protegerá a sua vida.
O Senhor protegerá a sua saída
e a sua chegada,
desde agora e para sempre".
(Salmo 121.3-8 — NVI).

Hagar pode orar.
Nós também.

***

Senhor, como Hagar,
sei que conheces minha condição
em que a dor está muito intensa.
Busco-te por toda a direção
e não vejo tua prometida presença.
Assim mesmo, como Hagar,
canto que vês minha aflição.
Por isto, em nome de Jesus,
peço que me venhas logo curar.

***

TEXTOS BÍBLICOS PARA MEDITAÇÃO
Salmo 113.7-9
Salmo 121.7-9
Mateus 6.6-8
Efésios 2.4-10
Filipenses 4.12-13, 19