O MANUAL DO CRISTÃO (Sylvio Macri)

A Bíblia nos leva a Cristo e Cristo nos leva à Bíblia. “A fé vem pelo ouvir, e o ouvir, pela palavra de Cristo.” (Rm.10.17). Ouvimos falar de Cristo e cremos nele através da mensagem da Bíblia. Aprendemos de Cristo e nos tornamos semelhantes a ele através do estudo da Bíblia (II Tm.3.16,17). Quando aceitamos a Cristo como Salvador, ingressamos imediatamente em um programa permanente de crescimento espiritual cujo manual instrucional e operacional é a Bíblia. É nela que encontramos as normas, as instruções, o passo a passo, os procedimentos, o “suporte técnico” e os critérios para avaliar a vida cristã. Também nela encontramos a ajuda para corrigir as falhas de execução. Em suma, ela é o autêntico manual daquele que deseja chegar “ao estado do homem feito, à medida da estatura da plenitude Cristo.” (Ef.4.13b). Para crer em Cristo, precisamos da Bíblia. Para ser como Cristo, precisamos ainda mais da Bíblia.    
 
Foi pensando nessa inegável realidade que a liderança da Convenção Batista Brasileira escolheu o tema para o ano de 2012 – “Ser como Cristo praticando a Bíblia.”
 
Isto quer dizer que precisamos ter a mesma visão que Cristo tinha da Bíblia. 
 
Muita gente que se senta nos bancos das igrejas não se apercebe do fato de que Jesus jamais leu o Novo Testamento. Nunca pararam para pensar que Jesus não poderia mesmo lê-lo, porque foi escrito vários anos após sua morte e ressurreição. A Bíblia que Jesus e os escritores do Novo Testamento usaram foi o Velho Testamento. E este exatamente como está no formato editado pelos evangélicos e judeus, sem os livros apócrifos. Aliás, esta terminologia – Velho e Novo Testamento – surgiu somente no século II d.C.
 
Toda a doutrina cristã foi depreendida do Velho Testamento. Durante o ministério terreno de Jesus seus discípulos tiveram muita dificuldade para entender a Bíblia como ele a entendia. Somente após a ressurreição é que compreenderam corretamente as profecias sobre o Messias, com a ajuda dele próprio (Lc.24.27). Ao converter-se, Paulo, que era rabino, precisou repensar o Velho Testamento do ponto de vista de Cristo, o que ocorreu durante seu “período de silêncio” – provavelmente dez a doze anos (Gl.1.15-24; II Co.11.32,33).    
 
Tanto para Jesus como para os apóstolos, o Velho Testamento teve um contexto imediato e outro mais amplo: seus tipos, modelos e profecias só encontraram sua plenitude na história de Jesus Cristo (Atos 2.14-36;3.11-26;13.16-41). Por isso deve ser sempre lido e interpretado à luz de Cristo e sua missão. Mais ainda, faz parte de uma revelação progressiva, que ainda está em andamento (Hb.8.1-10.18;I Co.13.12), e só se completará após o Juízo Final.
 
Jesus aceitou a inspiração e a autoridade da Bíblia, e prometeu semelhante inspiração aos seus apóstolos, o que ocorreu após o Pentecostes. Os apóstolos também aceitaram tal inspiração e autoridade (I Pd.1.21; II Tm.3.16).  Trinta e um livros do Velho Testamento são citados diretamente no Novo, e muitas dessas citações designam os autores exatamente como o Velho Testamento o faz, sem nenhuma dúvida a respeito. Aliás, está claro na Bíblia que ela foi inspirada (“soprada”) pelo Espírito Santo, mas os escritores são homens que Deus usou em épocas, situações e com características pessoais diferentes. A autoria divina não elimina a personalidade e as circunstâncias humanas, como, por exemplo, a educação formal e o estilo de escrever.
 
Foi no sermão do Monte – Mateus 5.17-20- que Jesus declarou explicitamente sua visão da Bíblia. Para Jesus a Bíblia era para ser cumprida. Esta era a sua missão: cumprir as Escrituras. (v.17). Por pelo menos dezenove vezes os evangelhos, principalmente o de Mateus, registram que tudo o que aconteceu com Jesus foi para que se cumprissem as Escrituras. A obediência de Jesus o levou a sérias conseqüências, como prisão, julgamento injusto e morte de cruz, mas ele foi até o fim, porque seu propósito era cumprir as profecias da Bíblia (At.3.18) e completar o plano de Deus para a salvação dos pecadores (Hb.5.7-9).
 
No mesmo texto Jesus declara que para ele a Bíblia era regra de fé. Ela é a Palavra do Deus Eterno, e portanto é também eterna; não passará, ainda que tudo o mais passe (v.18). É também a Palavra do Senhor da história. Nos versículos 19 e 20, menciona três vezes o reino dos céus, que sabemos ser a realização final da vontade de Deus e de seu senhorio. Por isso, quando no deserto foi tentado por Satanás a questionar sua missão e seus sofrimentos, respondeu por três vezes: “Está escrito” (Mt.4.1-11). Ele cria na palavra eterna do Pai e a obedecia.   
 
Ainda no mesmo texto Jesus diz que para ele a Bíblia era regra de vida. Não letra morta, mas palavra vivificada pelo Espírito (Rm.7.6; II Co.3.6). No versículo 20 Jesus diz que suas exigências éticas estavam muito acima do farisaísmo, que era o padrão dos judeus. E no resto do capítulo ele mostra o que quis dizer nesse versículo: por seis vezes usa a expressão “ouvistes que foi dito (….) eu porém vos digo”, para ensinar que sua ética considera não somente os atos mas, antes deles, as intenções do coração, de onde procedem, realmente, os pecados (por exemplo, condenável é não somente “matar”, mas também “odiar”). É o que John Stott chamou de “moralidade profunda”, muito além da moralidade literalista dos fariseus.
 
“Ser como Cristo praticando a Bíblia” quer dizer também que devemos tornar-nos cada vez mais semelhantes a Jesus por praticar seus ensinos.
 
Jesus praticou a Bíblia e tornou-se nosso Salvador e modelo; ao praticarmos nós também a Bíblia, nos tornaremos como ele. Na Primeira Carta de Paulo aos Tessalonicenses ele afirma que os irmãos daquela igreja se fizeram semelhantes a Cristo pelo modo com que praticaram a Bíblia (I Ts.1.6-10 e 2.13). Paulo diz que eles receberam a Bíblia como Palavra de Deus e não de homens, e usa dois verbos diferentes: o primeiro para descrever uma aceitação formal, isto é, com a razão; o segundo para falar de uma aceitação informal, interna, com a alegria que vem do Espírito Santo. Era um sentimento tão forte que lhes permitia suportar as tribulações advindas da perseguição por parte dos judeus e dos pagãos. Para sermos semelhantes a Jesus precisamos receber a Bíblia como a Palavra de Deus infalível, infinitamente acima do padrão que eles praticavam no paganismo.
 
Paulo diz também que os tessalonicenses se submeteram à atuação da Palavra de Deus. O termo que ele usa é “energia”, a mesma palavra que temos em português para designar a força elétrica. Trata-se de um poder tremendo, que operou neles uma transformação tão radical que se tornou conhecida em toda a Macedônia e Acaia. Para sermos semelhantes a Cristo, precisamos permitir que opere em nós o poder da Palavra do Deus vivo e verdadeiro, o que somente será possível com a ajuda do Espírito de Cristo (Jo.14.26;16.8-12,13).
 
Por causa da perseguição, Paulo saiu às pressas de Tessalônica e foi para Atenas. Mas, preocupado, enviou Timóteo de volta à cidade, pois temia que a igreja, ainda tão tenra, não suportasse as “tribulações”, palavra que significa “grande aperto”. As boas notícias trazidas, pelo auxiliar, de que eles estavam firmes na fé e no serviço, alegraram-no tanto que afirmou: “Eu revivi.” (I Ts.3.8). Receberam a Palavra em meio a duríssima adversidade, mas mantiveram-se firmes. Para sermos semelhantes a Jesus precisamos perseverar na Palavra, sejam quais forem as circunstâncias (Hc.2.2-4;3.17-19).        
 
Os crentes de Tessalônica tornaram-se um modelo de testemunho. A cidade ficava às margens da Via Ignatia, a principal estrada que levava a Roma, e por isso a história de sua conversão propagou-se pelo mundo romano. É muito interessante a expressão que Paulo usa para falar disso: o testemunho dos tessalonicenses foi como um som poderoso que se espalhou para todos os lados. Em todo lugar se ouvia a repercussão da sua conversão. Para sermos como Cristo, devemos repercutir a Palavra de Deus em nossas vidas, o que será cada vez mais natural à medida que nos tornemos iguais a ele.
 
Porém, saibamos de antemão que ser como Cristo, praticar a Bíblia tal como ele a praticou e ensinou a fazê-lo, tem o seu custo. É uma atitude radical, é contracultura no mais puro sentido. Haverá estranheza, admiração, repúdio e perseguição. Mas o mundo espera (desesperadamente) que se lhe ofereça uma alternativa ao vazio existencial, à inutilidade consumista, à superfluidade de valores e à podridão moral e espiritual em que vegeta. Falharemos novamente?     
 
Pr. Sylvio Macri