Êxodo 1.8: QUANDO AS COISAS MUDAM

Nem sempre nossa vida segue em linha reta.
Nem sempre vemos as promessas de Deus se cumprindo em nossas vidas.
Muitas vezes somos atordoados por dificuldades que parecem além de nossa capacidade de compreender ou resistir.
Aconteceu assim com o povo hebreu no Egito, apesar da promessa de que Canaã era sua terra para sempre.
Há semelhanças entre a experiência daquele povo e a nossa.

A HISTÓRIA
O livro de Gênesis nos deixa no Egito. O livro do Êxodo começa também no Egito.
Há um longo intervalo entre o fim (Gênesis) e o começo (Êxodo).
Antes de fixar residência no Egito, Jacó, como ele mesmo lembra (Gênesis 47.9), morou em muitos lugares.
Ele nasceu, provavelmente em meados do século 19 a.C., no sul de Israel, mais especificamente em Beer-Laai-Roi (cuja localização é desconhecida, mas deve estar ao sul de Berseba), no deserto de Neguev. De Berseba, para fugir do irmão Esaú, estabeleceu-se por 20 anos em Padã-Harã (ou Harran, ao norte do país, no que hoje seria a Turquia, perto da fronteira com a Síria), distante cerca de 900 km.
Seu projeto era voltar para a região dos pais (Canaã), o que faz, não mais na região de Berseba, mas em Siquém (Gênesis 33.18), hoje Nablus, mais ao norte (hoje território palestino), e distante uns 150 km. E nesta viagem que se reencontra com Esaú.
De Siquém, ele se mudou para Betel (Gênesis 35.1), apenas 50 km ao sul. Dali foi para Migdal-Eder ou Torre de Éder (Gênesis 35.21), mais 50 km ao sul. Por fim, chegou a Hebrom, na terra de seu pai e seu avô (conforme lemos em Gênesis 35.27: "Veio Jacó a Isaque, seu pai, a Manre, a Quiriate-Arba — que é Hebrom –, onde peregrinaram Abraão e Isaque"). O próximo destino de Jacó foi, passando por Berseba outra vez (Gênesis 46.1 — ARA), Gósen (Gênesis 46.28), no Egito. Diferentemente das outras peregrinações, a viagem para o Egito foi para não morrer de fome. Como sabemos, quando estava em Hebrom, seus filhos venderam seu preferido José como escravo. No entanto, Deus fez as coisas ruins (inveja e violência) convergirem para o bem, de modo que José tirou a família da miséria, levando-a (66 pessoas) para Gósen.
Gósen não está indiscutivelmente identificada, mas ficava, certamente, no delta do rio Nilo, um pouco ao norte onde hoje está Cairo, a capital do país. Seu filho José devia morar na capital (Menfis ou Tebas).
Possivelmente na capital, quando José estava com 40 anos, Jacó teve um encontro com o Faraó, como lemos (Gênesis 47.7-12):
 
"Trouxe José a Jacó, seu pai, e o apresentou a Faraó; e Jacó abençoou a Faraó. Perguntou Faraó a Jacó:
— Quantos são os dias dos anos da tua vida?
Jacó lhe respondeu:
— Os dias dos anos das minhas peregrinações são 130 anos; poucos e maus foram os dias dos anos da minha vida e não chegaram aos dias dos anos da vida de meus pais, nos dias das suas peregrinações.
E, tendo Jacó abençoado a Faraó, saiu de sua presença.
Então, José estabeleceu a seu pai e a seus irmãos e lhes deu possessão na terra do Egito, no melhor da terra, na terra de Ramessés, como Faraó ordenara. E José sustentou de pão a seu pai, a seus irmãos e a toda a casa de seu pai, segundo o número de seus filhos". (Gênesis 47.7-12 — ARA)

Jacó morreu 17 anos depois no Egito, com 147. Seu filho José estava então com 57 anos.
Seus descendentes ficaram no Egito, na região norte, distante perto de 600 km da Canaã onde residiram Abraão, Isaque e Jacó, prometida como terra definitiva dos seus descendentes.
Durante um tempo, tudo correu bem para o povo no Egito, com o Faraó fixando-lhe regras bastante favoráveis, em função de José:

—  Teu pai e teus irmãos vieram a ti. A terra do Egito está perante ti; no melhor da terra faze habitar teu pai e teus irmãos; habitem na terra de Gósen. Se sabes haver entre eles homens capazes, põe-nos por chefes do gado que me pertence. (Gênesis 47.5– -6 ARA)

Durante a vida de Jacó e de José no Egito. Aos 30, José estava trabalhando no governo. Aos 40, sua família chegou. Tudo correu bem pelos próximos 70 anos.

Algum tempo depois, as coisas mudaram, como lemos (Êxodo 1.8-11):

"Depois o Egito teve um novo rei que não sabia nada a respeito de José. Ele disse ao seu povo:
— Vejam! O povo de Israel é forte e está aumentando mais depressa do que nós. Em caso de guerra, eles poderiam se unir com os nossos inimigos, lutariam contra nós e sairiam do país. Precisamos achar um jeito de não deixar que eles se tornem ainda mais numerosos.
Por isso os egípcios puseram feitores para maltratar os israelitas com trabalhos pesados. E assim os israelitas construíram as cidades de Pitom e Ramessés, onde o rei do Egito guardava as colheitas de cereais" (Êxodo 1.8-11 — NTLH)

O poder foi mudando de mãos no Egito. Segundo a Bíblia, "decorridos muitos dias, morreu o rei do Egito; os filhos de Israel gemiam sob a servidão" (Êxodo 2.23).

As coisas, portanto, mudaram para os hebreus.
Certamente, entre eles, nessa época, contava-se a história de Abraão, de sua chamada para habitar, com seus descendentes, em Canaã, mas estavam no Egito, numa situação adversa. Certamente, entre eles, contava-se a história de como Jacó e sua família foi salva da fome na mesma Canaã. Certamente, entre eles, havia quem lembrasse a promessa, de que o Egito não era a sua terra definitiva, mas Canaã. Como sairia o povo dali e voltaria para a terra da promessa, se o governo egípcio era tão poderoso?
Provavelmente, algumas famílias não esperavam mais o cumprimento de promessa alguma. Provavelmente, algumas famílias já estavam completamente aculturadas no culto egípcio, fazendo sacrifícios aos seus deuses. Provavelmente, muitos se perguntavam: como podia ser aquilo? onde estava o Deus de Abraão, Isaque, Jacó e José, que permitia que as coisas mudassem tanto e não houvesse mais esperança de uma vida livre?
Não ocorre o mesmo conosco hoje, quando as coisas mudam?

QUANDO AS COISAS MUDAM NAS NOSSAS VIDAS
As coisas, também hoje, mudam.
Como crer, se a vida fica de cabeça para baixo?
Muitas são as situações sob os quais o nosso corpo curva, pelo peso da decepção e da tristeza.

As coisas mudam. Educamos nossos filhos no caminho em que devem andar e eles se desviam, fazendo escolhas que julgamos mais próximas da morte do que da vida.
As coisas mudam. Dedicamos nossa vida a um cônjuge e, contra tudo e contra todos, ele nos trai. A amargura se torna a mãe de nossas manhãs.
As coisas mudam. Amamos e somos amados por nosso cônjuge, mas a morte nos separa e encerra nossa história de amor. Ficamos sós, reféns da saudade, que parece incurável.
As coisas mudam. Vivemos vidas regradas, longe dos vícios, mas a doença nos come por dentro até virar um diagnóstico, de morte próxima ou de uma vida cujo dia a dia é a degeneração galopante.
As coisas mudam. Seguimos saudáveis, cheios de sonhos, realizações e viagens, mas a depressão se aninha na nossa mente e doma nosso corpo.
As coisas mudam. Sempre trabalhamos, mas a demissão nos alcança, massacrando nossa autoestima, sem que consigamos nos recolocar no mercado profissional.
As coisas mudam. Sempre buscarmos viver de modo digno e generoso, mas a mentira e a calúnia põem no lixo a nossa credibilidade.

Aconteceu com o povo de Israel, um povo livre, praticamente nômade, vivendo das atividades agropastoris, transformado em povo escravo, trabalhando na construção civil, cercado num enorme campo de concentração. Os Faraós "lhes fizeram amargar a vida com dura servidão, em barro, e em tijolos, e com todo o trabalho no campo; com todo o serviço em que na tirania os serviam" (Êxodo 1.14–  ARA).

E o que este povo fez?
Uns perderam a fé.
Outros continuarem crendo em Deus. Em função desta fé, tomaram algumas atitudes.

1. Precisamos de uma atitude sábia diante das mudanças.
Não devemos ter medo de mudanças. Algumas podem ser boas, mesmo que doam, menos pelas coisas em si e mais por nós mesmos.
As mudanças não são todas ruins. Há mudanças boas, que, no início, parecem tragédia, mas o longo prazo as vê como bênção.
Devemos estar preparados para as mudanças, como um filho que sai de casa para tocar a sua vida, no respeito e na santidade ou como uma demissão que abre novas avenidas.
ou mesmo uma enfermidade que nos empurram para um estilo de vida mais adequado.
Devemos parar de reclamar quando isto ou aquilo não corre como imaginamos. Nem sempre imaginamos o melhor. Devemos nos autocriticar. Devemos prestar atenção às críticas que nos fazem, para que sejam instrumentos para que mudemos.
Eis, agora, algo difícil: devemos atentar para ver se as mudanças em nossas vidas não foram provocadas por nós mesmos, por falta de sabedoria ou falta de santidade, seja no comodismo ou na irresponsabilidade. Deus pode até intervir e nos livrar, mas muito provavelmente esperará que mudemos para que não continuemos errando e sofrendo.
O livro de Gênesis termina com os irmãos de José pedindo-lhe perdão (Gênesis 50.15-21). Eles sabiam que sua crueldade teve a ver com seus sofrimentos posteriores, sofrimentos que Deus reverteu.
Devemos também saber que nossa vida não está totalmente sob controle. Tornou-se uma frase feita dizer que Deus está no controle. Paulo nos lembra desta verdade, quando afirma que Deus pôs todas as coisas debaixo dos pés de Cristo (Efésios 1.22), que Eugene Peterson parafraseia assim: Cristo "está no comando de tudo e tem a palavra final a respeito de tudo" (Cf. A Mensagem).
Temos facilidade de cantar que Deus está no controle, mas temos dificuldade de viver esta verdade, porque ela significa que nós não estamos no controle.

2. Devemos rejeitar as mudanças ruins.
Um bom exemplo foi o que fizeram as parteiras dos hebreus. O Faraó tinha decretado que todos os meninos fossem mortos. Eis o que lemos: "As parteiras, porém, temeram a Deus e não fizeram como lhes ordenara o rei do Egito; antes, deixaram viver os meninos" (Êxodo 1.17 — ARA)
Elas não aceitaram o infanticídio generalizado. Deus aprovou a decisão delas. Segundo a Bíblia, "como as parteiras honraram a Deus, ele permitiu que elas também constituíssem família". (Êxodo 1.21 — A Mensagem)
No entanto, quando as coisas mudam, realmente para pior, trazendo dor real e injustiça real, não devemos aceitar. Nosso modelo podem ser as corajosas parteiras do Egito. Correram riscos e deram ao mundo um Moisés.

3. Devemos orar insistentemente a Deus.
O texto bíblico informa que os filhos de Israel clamaram a Deus (Êxodo 2.23). Entre os hebreus havia muitos que criam que Deus os ouvia; por isto, clamaram ao Senhor Deus, que pós em ação sua aliança com Abraão, Isaque e Jacó.
Quando demorou o gemido do povo? Esta é uma informação importante, diante da pressa que sempre temos pela resposta de Deus aos nossos clamores.
Êxodo 12.40-42 informa: "Ora, o tempo que os filhos de Israel habitaram no Egito foi de 430 anos. Aconteceu que, ao cabo dos 430 anos, nesse mesmo dia, todas as hostes do Senhor saíram da terra do Egito". (Êxodo 12.40-41 — ARA)
Neste caso, considerando-se que o povo viveu feliz no Egito pelo menos 70 antes depois da chegada de Jacó e sua família. Possivelmente, então, o povo gemeu por uns 360 anos, podendo ser um pouco menos porque pode decorrido uma geração até que o governo egípcio mudasse sua política para com os hebreus.
Temos o mesmo tempo na mente do apóstolo Paulo, que afirma que "Deus fez uma aliança com Abraão e prometeu cumpri-la. A lei, que foi dada 430 anos depois, não pode quebrar aquela aliança, nem anular a promessa de Deus" (Gálatas 3.17). Neste caso, a contagem começa com a promessa a Abraão, reduzindo o tempo do cativeiro para 40 anos, uma vez que da promessa a Abraão até à chegada do seu neto Jacó ao Egito decorreram 220 anos, havendo 70 anos de liberdade com José e, logo, 140 de cativeiro, assim mesmo um longo tempo.
Podemos imaginar, então, que, durante 140 ou 360 (430 menos 70 anos felizes) anos, o povo de Israel gemeu e, gemendo, clamou ao Senhor.
Eis que devemos fazer: clamar.
Deus nos atende sem que clamemos? Atende, excepcionalmente atende. A história da oração na Bíblia, no entanto, mostra que Deus espere que clamemos a ele na hora da dificuldade.
Podemos fazer isto sozinhos, mas devemos fazer isto publicamente no contexto da igreja. Eu sei que na igreja há pessoas que julgarão maldosamente as pessoas envolvidas. Nosso esquema mental sempre organiza as pessoas em boas e más, em inocentes e culpados. Se um filho escolheu o desvio, não faltará quem culpe os pais. Se o casal se separou, as pessoas tomarão partido de um dos lados. Em lugar de orar, muitas pessoas preferem julgar.
Este lamentável desvio à parte, quando oramos em público, levando a Deus nossas dificuldades (sejam quais forem), sem que precisemos entrar em detalhes, que Deus conhece muito bem, saímos fortalecidos, se a comunidade que ora é saudável. O apóstolo Paulo recomenda que levemos as cargas uns dos outros ("Levai as cargas uns dos outros e, assim, cumprireis a lei de Cristo" — Gálatas 6:2). Como levaremos as cargas uns dos outros, se não sabemos que os outros sofrem?
Imagino que o clamor do povo de Israel era o clamor do povo, não de pessoas isoladamente. Ouso pensar que, sofreria menos o povo, se começasse a orar antes. Talvez tenha gemido muito, buscando até mesmo soluções sem Deus, e só então orado. Quando o povo orou, Deus atentou para a sua condição (Êxodo 2.25).
O Novo Testamento claramente nos orienta: "Está alguém entre vós sofrendo? Faça oração. Está alguém alegre? Cante louvores. Está alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da igreja, e estes façam oração sobre ele, ungindo-o com óleo, em nome do Senhor. E a oração da fé salvará o enfermo, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados" (Tiago 5.13-15 — ARA).
O povo de Israel, orou, clamou, em voz alta, com gemidos. Deus mesmo conta o que sentiu e fez: "Certamente, vi a aflição do meu povo, que está no Egito, e ouvi o seu clamor por causa dos seus exatores. Conheço-lhe o sofrimento; por isso, desci a fim de livrá-lo da mão dos egípcios e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e ampla, terra que mana leite e mel (…). Pois o clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e também vejo a opressão com que os egípcios os estão oprimindo". (Êxodo 3.7-9 — ARA)
Eis o que devemos fazer: clamar.
Eis o que devemos fazer, se clamamos: continuar clamando.

NOS PASSOS DE JESUS
É assim que Jesus fazia. Há nos evangelhos 16 menções à prática da oração por meio de Jesus. Nove delas estão em Lucas (5.16, 6.12, 9.18, 9.28, 11.1, 22.31, 22.41, 22.44 e 24.30). Num delas, o evangelista diz que Jesus "se retirava para lugares solitários e orava" (Lucas 5.16 — ARA), indicando que orar era para Jesus um hábito. 
É assim que Jesus nos pede para fazer: "tudo quanto em oração pedirdes, crede que recebestes, e será assim convosco" (Marcos 11.24 — ARA).
É assim que Jesus fez e nos ensina a fazer. Num momento difícil da sua vida, ele foi a um lugar habitual de oração (ao Jardim do Getsêmani, em frente à cidade velha de Jerusalém), levando consigo os seus discípulos. Ele orou em particular, mas pediu que seus amigos orassem também, ali perto dele. Sua oração era solitária e solidária (isto é: comunitária) ao mesmo tempo.
É o que devemos fazer.

ISRAEL BELO DE AZEVEDO