A bem-aventurança do deserto em nossa vida (José Maurício Cunha do Amaral)

Texto:Isaías 58.11

Introdução

O deserto faz parte de nossas vidas. Por mais que queiramos, evitá-lo não será possível. A parte mais difícil de se estar no deserto é não conseguir identificar a porta de saída. Você sabe onde ele começa, mas não, onde acaba. Paul Miller em seu livro “O poder de uma vida de oração” nos diz que “nossos desertos são feitos sob medida por Deus” (p.194). Para José, seu deserto começou quando foi traído por seus irmãos e amargou numa prisão do Egito injustamente. Moisés, por exemplo,  viveu quarenta anos anos de sua vida tranquilamente na região desértica de Midiã apascentando os rebanhos de seu sogro Jetro, para depois peregrinar duramente por mais quarenta, pela região desértica de Sim rumo à Terra Prometida. Davi ao fugir de Saul correu para o deserto para não ser morto por ele, e Jesus iniciou seu ministério sendo tentado por satanás nele. Como se pode ver, o deserto é um tema forte na Bíblia. Não podemos simplesmente eliminá-lo de nossa experiência de vida. Por algum tempo, longo ou curto, estaremos lá! Mas ao contrário do que muitos podem pensar, o deserto não é apenas um lugar de angústia. Ele é também um lugar de recolhimento, de crescimento espiritual, mas acima de tudo, um lugar de reflexão e aprendizado.

1- O deserto nos faz crescer

Pode parecer estranho, mas Deus leva para o deserto todas as pessoas que ama, porque o deserto é um lugar de cura para os nossos corações errantes. Os quatrocentos e trinta  anos de escravidão no Egito fez com que o povo de Israel se tornasse um povo incrédulo e sem esperança. Depois de tanto sofrimento, será que esse Deus que demorou tanto a agir iria mesmo resgatá-los das mãos do faraó?  Talvez essa tenha sido a grande dúvida. Não sei qual seria a minha reação se eu estivesse no meio daquele povo, mas talvez eu reagisse da mesma maneira que eles. Durante a  peregrinação no deserto todos os vícios que foram incorporados ao longo de uma convivência de quatro séculos, com uma outra cultura, uma outra língua, outros deuses, fez com que a solidão do deserto fosse aos poucos trazendo a dura realidade que agora teriam que enfrentar. E uma outra terra onde pudessem adorar ao seu Deus livremente começa a dar lugar à saudade de um lugar onde, apesar da servidão, podiam cultivar suas cebolas e cuidar de seus filhos, sem perecer de fome ou sede. O deserto, portanto, teve um caráter pedagógico que era revelar o sentimento do coração daquele povo: “Recordar-te-ás de todo o caminho, pelo qual o Senhor teu Deus te guiou no deserto estes quarenta anos, para te humilhar, para te provar, para saber o que estava no teu coração, se guardarias ou não os seus mandamentos” (Deuteronômio 8.2). Chegou o momento em que o povo precisaria confiar de todo o coração no El-Shadai, o “Deus Todo Poderoso”. Ao fazer uma uma retrospectiva, no Salmo 78, da ação de Deus, Asafe descreve com todos os detalhes, as grandes maravilhas que ele realizou em favor do seu povo. Em nenhum momento Deus deixou de cumprir o que prometeu. E foi exatamente por causa da incredulidade deste povo, que toda uma geração que saiu do Egito e que tinha vinte anos para cima, não entrou na terra Prometida, exceto Josué e Calebe,  porque murmurou contra o Senhor: “Eles nunca entrarão na terra que jurei dar aos seus antepassados. Nenhum daqueles que me abandonaram verá aquela terra. Vocês serão mortos , e os corpos de vocês serão espalhados pelo deserto. Vocês reclamaram contra mim, e por isso nenhum de vocês que tem vinte anos de idade ou mais, entrará naquela terra. Eu jurei que os faria morar lá, mas nenhum de vocês, a não ser Calebe, filho de Jefoné, e Josué, filho de Num” (Números 14.23,29-30). O deserto pode nos trazer desesperança, mas é lá, que nós aprendemos a enfrentar o sol escaldante e a escassez de água. Muitas vezes, Deus permite que nos aconteçam experiências dolorosas para que possamos aprender a confiar mais nele.
Foi a partir do ano 311 d.C, na época em que a paz  conquistada pelo imperador Constantino estava sendo implantada, que um grupo de cristãos procurando se ajustar às mudanças sociais e religiosas do império, começa um movimento religioso que procurou rejeitar os novos valores, não apenas os valores mundanos da sociedade pagã daquela época, mas principalmente, os valores mundanos que adentraram na própria igreja. Esse movimento que teve início no século IV ficou conhecido como monasticismo e se caracterizou pelo seu radicalismo, tanto na leitura da Bíblia e obediência ao ensino bíblico, como na renúncia às instituições  religiosas e seculares.

É óbvio que quando falamos em nossa cultura hoje de um movimento de reclusão e reação como forma de protesto contra o mundanismo, isso não faz muito sentido. Vários grupos religiosos que em outras épocas agiram dessa forma tiveram resultados desastrosos. Mas foi na Idade Média que os monges buscaram na clausura dos monastérios o isolamento da vida cotidiana como forma de se tornarem mais santificados. Nem um extremo, nem outro. Por outro lado, precisamos reconhecer o grande legado deixado pelos chamados Pais do Deserto, que com sua vida de isolamento e penitência, resgataram preciosos valores de uma vida à sós com Deus.  

Em segundo lugar,
 
2- O deserto nos ajuda no processo de santificação

Se queremos crescer espiritualmente precisamos buscar uma vida de santificação e o deserto nos ajuda neste processo. Ricardo Barbosa em seu livro “O caminho do Coração” nos diz que: ”O deserto é o lugar onde os ídolos são quebrados” (p.126). A tendência do nosso coração é de se apegar a tudo aquilo, que de certa forma, nos dá um sentimento de proteção. A estabilidade econômica e familiar nos dá o falso sentimento de que tudo está bem na nossa vida. Mas basta sofrermos uma derrota numa dessas áreas para admitirmos que Deus foi embora com a estabilidade.

a) O deserto é um lugar de mudanças

Mas com ao passar algum tempo no deserto você percebe que a sua vida está mudando, que as coisas estão ficando diferentes. Veja, por exemplo, a oração de Davi no deserto: “Ó Deus, tu és o meu Deus; eu te busco ansiosamente. Minha alma tem sede de ti, meu ser anseia por ti em uma terra seca e exaurida, onde não há água” (Salmo 63.1). Nas palavras de Davi, a sua busca de Deus passou a ser algo intenso.

b) O deserto é um lugar de mais comunhão com Deus

Mas além de uma mudança que acontece no nosso comportamento em relação a uma busca incessante de Deus, o deserto torna-se um canal de comunicação entre você e Deus que muitas vezes esteve interrompido. Outra vez, a experiência de Davi nos serve de exemplo. Após o reconhecer o seu pecado, ele ora Senhor dizendo: “Cria em mim um coração puro, ó Deus, e renova dentro de mim um espírito estável. Não me expulses da tua presença, nem tires de mim o teu Santo Espírito. Devolve-me a alegria da tua salvação e sustenta-me com um espírito pronto a obedecer” (Salmo 51.10-12). Ele queria reatar outra vez a sua comunhão com Deus.
Se por um lado o deserto representa o sofrimento, onde o ar seco e parado cria em nós uma sensação de desamparo, é ali que nós aprendemos a depender mais de Deus. Passamos a orar mais e quase sem perceber, passamos a orar no meio da noite quando acordamos, na rua, na condução. A água límpida encontrada no oásis do deserto nos aproxima mais de Deus e nos reanima para enfrentarmos, muitas vezes, um vale sombrio. É o que nos diz o salmista no Salmo 23: “Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas” (Salmo 23.2).

Em último lugar,
 
3- O deserto nos faz florescer

Pode num lugar seco e inóspito como o deserto, uma planta  sobreviver viçosa? Alguns grupos de plantas se tornaram especialistas em viver nas regiões secas, entre os quais estão os cactos que são plantas da família das Cactáceas, e que mesmo atravessando longos períodos sem chuvas, conseguem permanecer verdes e vigorosos. Suas formas são variadas, a maioria tem espinhos e alguns dão flores muito vistosas. O profeta Jeremias (17.6) usa figura de um arbusto (tamargueira) isolado no deserto para ilustrar a vida de uma pessoa cuja confiança está depositada numa outra pessoa, e não em Deus. Mas o profeta Isaías nos fala de um outro contexto: uma jardim em pleno deserto: “e serás como um jardim regado e como um manancial cujas águas nunca faltam” (Isaías 58.11). Deus nos compara a um oásis – que são verdadeiros paraísos no meio do deserto. Formados graças à proximidade com fontes ou nascentes de água, neles, a vegetação se desenvolve graças à fertilidade do solo. Geralmente, os oásis se formam em regiões com depressões, nas quais o lençol de água subterrâneo (lençol freático) está mais próximo da superfície. Quando por razões que não compreendemos, perdemos o emprego, perdemos um ente querido, ou perdemos a saúde, por exemplo, Deus sempre  providencia um oásis para que possamos resistir as agruras do deserto.

Conclusão

Conta-se que um rei foi certa manhã ao seu jardim e encontrou as plantas murchando e morrendo. Perguntou ao carvalho, que ficava junto ao portão, o que significava aquilo. Descobriu que a árvore estava cansada de viver, porque não era alta e elegante como o pinheiro. O pinheiro, por sua vez, estava desconsolado porque não podia produzir uvas, como a videira. A videira ia desistir da vida porque não podia ficar ereta e nem produzir frutos delicados como o pessegueiro. O gerânio estava agastado porque não era alto e fragrante  como o lírio. E o mesmo acontecia em todo o jardim. Chegando-se ao amor-perfeito, encontrou sua corola brilhante e erguida alegremente, como sempre. “Muito bem, meu amor-perfeito, alegro-me de encontrar no meio de tanto desânimo uma florzinha corajosa. Você não parece nem um pouco desanimada”, disse o rei. “Não, não estou. Eu não sou de muita importância, mas achei que, se no meu lugar o senhor quisesse um carvalho, um pinheiro, um pessegueiro ou um lírio, teria plantado um deles, mas sabendo que o senhor queria um amor-perfeito, estou resolvido a ser o melhor amor-perfeito que posso”. Essa historinha talvez seja o retrato da nossa vida. Mas a grande lição que podemos tirar da experiência no deserto, é que mesmo em condições adversas nós podemos florescer. Deus quer nos moldar. E o deserto pode ser o lugar usado por ele.
Bibliografia:
Miller, Paul E. O poder de uma vida de oração. Trad. Eulália P. Kregness. – São Paulo: Vida Nova, 2010.
Sousa, Ricardo Barbosa de. O caminho do Coração: Ensaios sobre a Trindade e a Espiritualidade Cristã. – Curitiba: Encontro, 2004. p.126


JOSÉ MAURICIO CUNHA DO AMARAL