FIÉIS DEPOSITÁRIOS (Sylvio Macri)

Em I Coríntios 4:2, Paulo diz: “Ora, além disso, o que se requer nos despenseiros é que cada um seja encontrado fiel”. No verso anterior a este, referindo-se a Apolo, a Pedro e a si mesmo, Paulo tinha dito: “Que os homens nos considerem como ministros de Cristo, despenseiros dos mistérios de Deus”. (Obs.: em I Pd.4:10, o termo “despenseiros” se estende a todos os crentes). J. B. Phillips, em Cartas às Igrejas Novas grafa, no v. 1, “fiéis depositários” em vez de “despenseiros”, e “segredos” em lugar “mistérios”. Já o v. 2, na versão de Phillips, ficou assim: “Ora, a primeira condição que se exige dum depositário, é que se mostre digno da confiança que nele depositam”. Outras versões trazem o termo “encarregados” (Almeida Séc.21, NTLH, NVI e Dios Habla Hoy). As versões mais usadas no Brasil trazem a palavra “despenseiros”, já um tanto arcaica (Almeida Revista e Corrigida – SBB e IBB; Almeida Revista e Atualizada – SBB; e Almeida Revisada – IBB).

A versão de que mais gosto, por entender que expressa melhor o sentido do original, é a de J. B. Phillips, daí o título acima. Somos fiéis depositários da mensagem de redenção (anteriormente um mistério, mas agora) revelada em Cristo e da jóia multifacetada que é a graça de Deus. Na língua em que foi escrita originalmente a 1ª. Carta aos Coríntios, a palavra usada é “oikonomos”, que literalmente quer dizer “aquele que tem a missão de dirigir (ou ditar as normas em) uma casa”, ocupação da qual um bom exemplo bíblico é aquela de José na casa de Potifar (Gn.39:1-9). Esta e muitas outras palavras do Novo Testamento têm como raiz o termo “oikos”, normalmente traduzido por “casa”. Assim, expressões tão diversas na nossa Bíblia em língua portuguesa, como morar, habitar, moradia, estrangeiros, edificar, edifício, mordomia, etc., têm, na língua grega, a mesma origem e são muito semelhantes foneticamente.

A organização do trabalho nos tempos bíblicos era muito diferente daquilo que temos hoje. A indústria, o comércio, a agropecuária, as atividades financeiras e outras, tinham como sede e local de trabalho a própria residência do artesão, comerciante, banqueiro, agricultor, criador de gado, etc., que ali praticava o seu negócio com a ajuda de seus familiares, agregados e escravos. Esse local era chamado de “oikos” (casa) e, por extensão, o grupo de pessoas que ali viviam e trabalhavam também era chamado de “oikos”, a “casa” de fulano ou beltrano. Num só capítulo de Atos, o de número 16, encontramos dois exemplos desse uso: a “casa” de Lídia – comerciante de tecidos, e a “casa” do carcereiro. Este último, parece que morava numa dependência da cadeia pública de Filipos.

Ora, um homem ocupado com seu negócio precisava de alguém que administrasse a sua residência, que cuidasse das provisões, da alimentação, da limpeza, dos reparos, etc. E, como essa não era uma atividade para as mulheres, tal missão era confiada a um dos escravos. Em relação ao dono da casa ele era um escravo, mas em relação aos seus conservos era um supervisor. É claro que o escolhido para tal cargo era o escravo que se mostrasse mais bem treinado para tanto, porém, como bem diz a tradução de Phillips, a primeira condição exigida de tal pessoa era a fidelidade. A melhor capacitação, infelizmente, não pode substituir a fidelidade.

Jesus usou essa figura do “fiel depositário” em diversas parábolas: a dos Dois Servos (Mt. 24:45-51), a dos Talentos (Mt. 25:1-12), a do Servo Vigilante (Lc. 12:35-48), a do Mordomo Infiel (Lc. 16:1-13) e a das Dez Minas (Lc. 19:11-27). Paulo, além de I Co. 4:1,2, usa o termo também em I Co. 9:17 e Tt. 1:7. Pedro, como já vimos, usa-o em I Pd. 4:10. Em todas essas passagens a idéia é de uma pessoa a quem um proprietário nomeia para cuidar de seus bens e supervisionar seus escravos. Periodicamente, o proprietário se assenta com seu administrador para uma eventual prestação de contas e, evidentemente, espera encontrar tudo em ordem, porque a relação é de confiança. Esse ajuste de contas sempre fica bem claro nas parábolas de Jesus acima citadas. Portanto, a principal característica dessa pessoa é que ela não precisa de supervisão direta, não só por sua competência, mas, principalmente, por sua lealdade ao senhor, e sua honestidade e integridade no trato com as coisas alheias; ou, numa só palavra, por sua fidelidade. É interessante que esta questão da necessidade de supervisão direta é mencionada por Paulo em Cl. 3:22: “Escravos, em tudo obedeçam àqueles que são seus donos aqui na terra. Não obedeçam só quando eles estiverem vendo vocês, procurando com isso conseguir a aprovação deles. Mas obedeçam com sinceridade, por causa do temor que vocês têm pelo Senhor” (grifo meu – Versão NTLH).

Em tempos modernos, em que a escala das atividades econômicas é infinitamente maior que nos tempos bíblicos, em que o negócio e o trabalho não se localizam mais na “casa” e sim em instalações industriais e agro-industriais, em centros comerciais e financeiros, mesmo assim e, mais do que nunca, permanece viva e operante a prática da delegação da responsabilidade com base na competência e na fidelidade, as quais são medidas através de avaliações de desempenho e auditorias físico-financeiras periódicas. O moderno gerente nada mais é do que um “fiel depositário” dos recursos produtivos e logísticos que o empregador confia a ele para a consecução de parte de seus objetivos globais.

O conceito de “fiel depositário” também se aplica a uma atividade específica da economia moderna, que é a armazenagem: uma empresa ou pessoa que não tenha espaço suficiente para guardar os seus bens, confia-os a um terceiro, que se torna responsável pela guarda e integridade dos mesmos. Aliás, nos últimos anos, não apenas a armazenagem, mas também a distribuição das mercadorias passou a ser delegada a terceiros, às empresas de logística. Bens que são objeto de disputa judicial também são confiados a um “fiel depositário”.

Como se vê, a aplicação da idéia é extensa, mas antes de finalizar este texto, gostaria de abordar outro aspecto muito interessante desse assunto: quando Paulo diz que somos “despenseiros dos mistérios de Deus” e Pedro diz que somos “despenseiros da multiforme graça de Deus”, estão falando do objeto do nosso encargo. Para designar esse objeto há uma palavra na língua grega, da mesma raiz “oikos”, e muito ligada a “oikonomos”. Essa palavra é “oikonomia” ou “oikonomian”, que foi traduzida na nossa Bíblia, versão Almeida, por “mordomia” (Lc.16:2: “Dá contas da tua mordomia”) e “dispensação” (Ef. 1:10: “Para a dispensação da plenitude dos tempos”; Ef. 3:2: “Dispensação da graça de Deus”; Ef. 3:9: “Dispensação do mistério que desde os séculos esteve oculto em Deus; Cl. 1:25: “Fui constituído ministro segundo a dispensação de Deus, que me foi concedida para convosco, a fim de cumprir a palavra de Deus”).

Na “economia” de Deus, antes da fundação do mundo, ele planejou enviar, na plenitude dos tempos, o Redentor, Cristo Jesus, no qual faria convergir todas as coisas, dando-nos assim gratuitamente as riquezas da sua graça e fazendo-nos conhecer o mistério da sua vontade (veja Ef. 1:3-14. Na versão NTLH a palavra “oikonomian” é traduzida por “plano”). E, apesar de anjos desejarem muito desempenhar essa missão (I Pd.1:12), Deus também planejou que os crentes seriam, à medida que se convertessem, o que poderíamos chamar de “operadores logísticos” da comunicação do seu mistério (revelação do seu plano redentor) e da distribuição da sua graça (seu serviço aos homens). Um “operador logístico” (despenseiro) fiel é aquele que não somente conserva o produto íntegro, como também o distribui com integridade.

Como complemento desse pensamento, o apóstolo Paulo usa a palavra “ministro”. Em I Co. 4:1, diz que ele e outros líderes mencionados eram “ministros” e “despenseiros” (“oikonomos”), e Cl. 1:25 diz que ele era “ministro da dispensação” (“oikonomian”). Em bom português poderíamos dizer: “ministro da economia de Deus”. Duas palavras gregas são usadas aqui para “ministro”: a primeira, em I Co.4:1, é “hiperetes”, usada para designar os remadores que ficavam na parte de baixo de um grande navio – um trabalho para escravos. A segunda, em Cl. 1:25, é “diakonos”, usada para designar os diversos serviçais de uma casa, principalmente os que serviam à mesa – também um trabalho para escravos. O sentido é que nem Apolo, nem Pedro, nem Paulo, nem qualquer outro, seja qual for a sua função na igreja, é tão importante que deva ser considerado mais do que um simples remador de segunda classe ou um lavador de pratos. E, no entanto, somos todos “despenseiros da multiforme graça de Deus”. Que Deus nos abençoe para que assim sejamos. E com fidelidade!

Pr. Sylvio Macri
Igreja Batista Central de Oswaldo Cruz

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