AS TABUINHAS DE HARÃ — Capítulo I (Ignacio Resende)

1.    A primeira pista

O professor Hasselman, da Universidade de Petrópolis, trabalhava arduamente, em seus períodos de férias, às suas próprias custas, descendo e subindo a serra de ônibus, da cidade imperial ao Rio, com o objetivo de resgatar parte ainda não esclarecida dos motivos secretos da vinda da família real portuguesa para o Brasil.
A fonte principal de suas pesquisas estava na Biblioteca Nacional, no Rio. Havia também, uma farta documentação disponível nos palácios da Quinta da Boa Vista e Imperial de Petrópolis, antiga residência de verão do Imperador Pedro II.
O professor usava os dias do início da semana para as visitas à biblioteca e aos palácios; normalmente, de segunda à quarta feira e, no restante dos dias da semana, usava para catalogar as suas anotações com a finalidade de colocá-las em formato de um livro, cujo sonho era publicá-lo após a sua aposentadoria. Tinha um assistente, o estudante de mestrado em História, o jovem Otávio Mendes. Um rapaz brilhante que, nos primeiros anos do séc. XXI dava formato à sua dissertação sobre a chegada da família real portuguesa no Brasil em 1808 e, o choque social, cultural e econômico ocorrido na cidade do Rio de Janeiro, como consequência deste acontecimento histórico.
Em meio ao amontoado de documentos que o professor Hasselman encontrou, num dos porões do palácio da Quinta da Boa Vista, estava um bloco de anotações das pesquisas científicas, patrocinadas pela coroa portuguesa, conduzidas pelo professor Ramalho, um dos mais conceituados arqueólogos lusitano, a respeito da origem da cidade de Harã.
A razão que levou o rei consorte Pedro III de Portugal, avô de Pedro I do Brasil, a encomendar essa pesquisa sobre a existência da cidade de Harã, era seu entusiasmo pelo êxodo do pai de Abraão, Terá, da cidade de Ur para a localidade que a Bíblia chama de Harã. Ele queria saber se essa cidade realmente existiu e quem a fundou. Teria sido Terá, já que teve um filho chamado Harã, pai de Ló, seu neto?
Esse não foi o único trabalho do professor Ramalho, ali encontrado, pois, nesse bloco de anotações constava, ainda, outras pesquisas empreendidas por orientação e custeadas pelo rei consorte Pedro III. Uma delas, por exemplo, tinha sido a busca pelos rios Pizom e Giom que circundavam o jardim do Éden.

2.    A carta ao Rei

No bloco de anotações, em uma linguagem bastante técnica, o professor Hasselman e seu discípulo Otávio, leram um trecho que os deixaram muito intrigados. Dizia: “No centésimo dia de escavações, já sem esperanças e com os recursos financeiros à beira do esgotamento, encontramos enterrado a cerca de uns cinco metros de profundidade, um vaso de argila, revestido de betume com uma tampa, também de argila betumada, contendo umas tabuinhas de barro, escritas com caracteres para nós desconhecidos”.
A carta continuava dando todos os detalhes sobre como as tabuinhas foram trazidas para Lisboa, o que tornaria esta leitura muito cansativa. Vale, no entanto, mencionar que na equipe do professor Ramalho, havia entre os seus profissionais mais conceituados, um mestre inigualável em desenterrar antiguidades. No nonagésimo dia de escavações, ele tinha procurado o professor e sugerido, caso viessem a encontrar algum tesouro que o achado fosse repartido entre eles e o rei, ficando cada um com a metade da metade dos achados. Este fato foi mencionado na carta ao rei para que, quando estivessem em Lisboa, o rei pudesse julgar o caráter de mestre Antônio e, no entender do professor Ramalho, mandar executá-lo por essa proposta gananciosa, a qual o professor ouviu e dissimulou concordar, por medo de sofrer uma rebelião dos trabalhadores comandados por ele, ao qual se mostravam muito fiéis e obedientes. Na carta, constava ainda que mestre Antônio tão logo chegara a Lisboa, desaparecera misteriosamente com algumas daquelas tabuinhas com caracteres desconhecidos; fato que só foi observado mais tarde, após a abertura do vaso quando se deu falta de parte das tabuinhas nele contidas.

3.    O alfabeto das tabuinhas

O rei Pedro III, após receber as tabuinhas restantes que correspondiam a cerca de 80% do volume do vaso, determinou ao seu ministro de Ciências que, providenciasse especialistas para que fosse decifrado o conteúdo dos achados. O professor Ramalho acreditava que o local onde as tabuinhas foram achadas correspondia ao mesmo local onde, no passado, se localizava a antiga cidade de Harã. Para chegar a essa dedução, ele se baseava em alguns velhos mapas que lhe foram entregues pelo rei.
O encontro ao acaso naquela escavação, daquele vaso, tão bem protegido por betume e contabilizando um total de cem tabuinhas de barro, foi para o professor Ramalho, a certeza de que suas escavações poderiam ser finalizadas precocemente mediante o sucesso da descoberta desenterrada. Sua preocupação, agora, estava centrada em encontrar um expert para decodificar o material encontrado e, então, se decidiria pela importância ou não do achado e se deveria continuar as escavações, levando-se em conta que o dinheiro para esta expedição já estava se esgotando.
O ministro Raposo Perdigão, a quem o rei encarregara da responsabilidade com as traduções, tinha em seu ministério uma equipe de paleolinguístas (estudiosos de línguas antigas ou extintas), mantida por ordem do rei para situações como essa agora apresentada. É fato que essa equipe não havia recebido até então, material de tão elevada importância, porém, estava bem preparada para a tarefa, uma vez que estava familiarizada com as línguas faladas e escritas da Mesopotâmia.
O líder da equipe, o renomado criptografista professor Rodolfo, como era conhecido nos meios acadêmicos, ao receber aquelas oitenta tabuinhas tomou as seguintes providências imediatas:
a) reproduziu todas as tabuinhas sem deixar que nenhuma saísse de seu escritório até que fossem todas devidamente catalogadas e copiadas;
b) dividiu as tabuinhas em dez lotes de oito peças e as entregou aos seus colaboradores mais especializados e de maior confiança;
c) determinou alta prioridade na execução dos trabalhos e notificou o passe livre ao professor Ramalho, autor da descoberta, para plena circulação no acompanhamento das análises de seus conteúdos;
d) fixou, ainda que, a cada dia haveria uma reunião às 17:00 horas para a troca de informações da equipe designada acerca do andamento dos trabalhos;
e) finalmente, estabeleceu um prêmio definido pelo rei em vinte moedas de ouro da coroa, para o primeiro que conseguisse decifrar o alfabeto usado nas tabuinhas e sua equivalência com o português.  
Dizer aqui sobre o esforço daquela equipe seria cansativo para o leitor e pouco acrescentaria ao objetivo desta narrativa. É claro que, o valor do prêmio, correspondia ao salário de um ano de cada um daqueles especialistas, levando-os assim a um ardor pessoal no empenho dos trabalhos para alcançar os resultados esperados nesta sutil e atraente missão.
Na reunião do quinto dia, o técnico Laureano foi o último a chegar no derradeiro momento que antecedia as 17:00 horas. Estava com um ar vitorioso e trazia em um quadro, anotações a giz que, após apresentadas aos participantes, arrancaram manifestações calorosas de todos os presentes com o resultado alcançado por ele.
Após inúmeros testes, por volta das 20:00 horas o professor Rodolfo declarou solenemente que o alfabeto, enfim, havia sido decodificado.
Novamente todas as oitenta tabuinhas foram reunidas e, escolhidas dez delas aleatoriamente para que, cada um dos pesquisadores, após receberem a correlação dos ideogramas com o português, passasse a transcrever o conteúdo decifrado, colocando os resultados em dez diferentes relatórios.
Novamente foi fixado um prêmio, agora de valor bem menor, correspondente a duas moedas de ouro, para o pesquisador que apresentasse a primeira das dez decodificações, e estivesse de acordo com o exame da banca julgadora, observando-se primordialmente a fidelidade ao texto do escritor das tabuinhas. Três dias depois, o pesquisador Laureano, apresentou o primeiro texto resultante de sua tradução.

4.    O conteúdo da primeira tabuinha

Laureano fez a seguinte leitura: “Minha décima visita a Noé. Decidi registrar nesta tabuinha, a visita ao meu notável ancestral, em razão do que dele ouvi acerca de seu avô Matusalém, o qual, segundo me disse, durante o jantar, foi o homem que teve vida mais longa antes do dilúvio universal.
Quando ele começou a falar sobre seu avô, citou o carinhoso e respeitoso nome que usava, quando o visitava, ainda adolescente, na companhia de seu pai Lameque. Ele falou:
– Meu avô Salém era um homem muito bem humorado. Possuía cerca de sessenta filhos e muitos netos, que dizia ter perdido a conta; Ele gostava muito de falar sobre as suas atividades em metalurgia e de suas descobertas, através de experiências práticas, cujo objetivo era desenvolver uma liga metálica estável.  Uma vez, enquanto jantava, nos contou que tinha desenvolvido uma nova liga a qual chamou de bronze, resultante da fusão de cobre com estanho a uma determinada proporção e temperatura. Foi nessa conversa que ele disse ter ouvido uma frase lapidar da qual não me esquecerei: ‘se a ciência é filha da observação e da experiência, é através delas que se alcançam as descobertas’.
E continuou Noé a narrativa sobre a família de seu avô e a sua tristeza em relação aos seus outros filhos, meus tios, que apesar de advertidos, haviam escolhido outros caminhos, aos quais se recordava com lágrimas nos olhos, já que estes os separavam do Criador de Adão, o primeiro homem a viver na Pangéia.
 “Quando se recuperou da emoção das lembranças, disse a meu pai Lameque, que ele era a alegria de sua velhice”.
Terminada a leitura e entregue a Laureano o segundo prêmio de duas moedas de ouro, foi-lhe entregue, também, outra tabuinha, a número onze, correspondente a uma numeração que fora designada às tabuinhas pelo professor Rodolfo.
Já se tinha, portanto, traduzida a tabuinha número um. Era o momento ideal para que fosse formalmente informado o ministro Raposo Perdigão sobre as conquistas já a alcançadas.