PREDESTINAÇÃO: O QUE A bÍBLIA DIZ (Sylvio Macri)

RESUMO HISTÓRICO

Apesar de estar sempre presente nas discussões antes da Reforma Protestante, foi somente com o advento desta que a doutrina da predestinação ou eleição tornou-se um assunto polêmico, gerando disputas intermináveis no seio dos diversos segmentos protestantes, e até mesmo perseguições e divisões.

Tudo começou com João Calvino, fundador da Igreja Reformada, o qual ensinava que Deus elegeu uma parte dos seres humanos para a salvação e outra para a perdição. Teodoro Beza, seu discípulo e sucessor, explicitou melhor esta posição criando os conceitos da eleição incondicional (ou supralapsarianismo) e da graça irresistível. O primeiro conceito afirma que Deus, antes da fundação do mundo, estabeleceu um decreto eterno, pelo qual determinou que a raça humana iria cair no pecado, bem como determinou quais as pessoas que seriam salvas e as que seriam deixadas na condenação do pecado. Quer dizer, Cristo veio salvar aos que Deus de antemão escolheu para isso. Seu sangue beneficiou a estes somente; para os reprovados, o sacrifício de Jesus não tem nenhum proveito. O segundo conceito ensina que o Criador concedeu aos escolhidos os meios de salvação e nenhum deles é capaz de resistir à sua graça. Crer, perseverar na fé e ser salvos são coisas para eles inevitáveis.

Contra estas posições levantaram-se diversos teólogos dentro da própria Igreja Reformada, sendo o principal deles Tiago Armínio, da Holanda, gerando uma corrente teológica chamada Arminianismo, cujos postulados básicos são os seguintes: Deus, por meio de um decreto eterno e imutável resolveu salvar, através de Jesus Cristo, a todos que o aceitem como Salvador e lhe sejam fieis até o fim, e condenar os que rejeitem esta salvação. Jesus Cristo é o Salvador do mundo, havendo efetuado um sacrifício por todos os homens e, em particular, pelo indivíduo. A redenção é universal, mas só se salvam os que se arrependem e crêem nele. Ninguém pode, por si só, fazer qualquer bem ou atingir a salvação; o pecador necessita da graça de Deus, sem a qual nada lhe é possível, todavia ela não é irresistível. Deus, por sua graça, assiste ao crente e o ajuda a tudo vencer, caso deseje auxílio divino e não permaneça inativo. Armínio ensinava também que o crente pode cair da graça. A posição de Armínio também foi chamada de infralapsarianismo.

A discussão atingiu a todos os segmentos da Reforma Protestante, e, havendo se iniciado pela Suíça e ido para a Holanda, espalhou-se pela Bélgica, Alemanha, França e Inglaterra, onde mais tarde surgiu o metodismo, que abraçou o arminianismo, inclusive quanto à queda da graça. Até mesmo o catolicismo romano foi atingido, no qual surgiu um grupo denominado jansenistas, que fundaram uma dissidência, a Velha Igreja Católica dos Países Baixos.                     

Entre os batistas, mais que nos outros grupos, por causa das suas características de independência e autonomia, sempre houve muita controvérsia sobre o assunto. Basta dizer que na Inglaterra, já no século dezessete, havia os batistas gerais, que eram arminianistas, e os batistas particulares, que eram calvinistas. Os batistas brasileiros são originários dos batistas do sul dos Estados Unidos, que não são exatamente unânimes sobre o assunto. Como exemplo, citamos dois teólogos famosos: o Dr. E.Y. Mullins, que foi presidente do Seminário Batista de Fort Worth, o maior do mundo, e o Dr. W.T. Conner, que foi catedrático de Teologia Ssitemática do mesmo seminário.  O primeiro, Mullins, afirma: “Ora, a eleição que Deus faz dos homens para a salvação não é aquela coisa arbitrária ou caprichosa que algumas das mais antigas e avançadas formas da doutrina da soberania afirmavam ser… Qualquer doutrina da soberania divina deve salvaguardar a liberdade do homem. A soberania de caráter santo e amoroso manifesta-se a si própria constituindo o homem um ser moral livre. Entrou o pecado, e a natureza humana desviou-se tanto da linha reta que, sem a preveniente graça de Deus, escolhe inevitavelmente o mal. Mas, nem a graça preveniente, nem a graça regeneradora, nem a graça sob qualquer das suas formas, operam sobre a vontade de um modo compulsório, mas sempre em conformidade com o seu estado livre. A vontade responde e o homem escolhe para si mesmo o dom gratuito da salvação, que lhe é oferecido por Deus”. O segundo, Conner, diz: “Eleição não quer dizer que Deus tenha instituído um plano geral de salvação e decretado que qualquer um que quisesse seria salvo e, portanto, o homem que quiser ser salvo é eleito por colocar-se a si mesmo dentro do escopo do plano de Deus. É verdade que Deus tem decretado que qualquer um que quiser será salvo; todavia, a eleição é alguma coisa mais específica e pessoal do que isto. Queremos dizer que Deus tem decretado trazer alguns à fé em Jesus Cristo como Salvador, sobre os quais o seu próprio coração tem sido preparado desde a eternidade, os quais são objeto do seu amor eterno.”

O ENSINO BÍBLICO

Feito este resumo histórico, que serve de fundo para entendermos porque tanto se aborda esta questão, voltemo-nos para a Palavra de Deus, para que a nossa crença neste assunto não se baseie em sabedoria humana. A idéia da eleição atravessa todo o Velho Testamento, e refere-se tanto a um Messias eleito como a um povo eleito, conceitos que são aplicados pelos escritores do Novo Testamento a Jesus Cristo e à Igreja. Portanto, esta é uma característica básica da doutrina bíblica da eleição: refere-se sempre ao Salvador e à coletividade de pessoas que ele salva, e não ao ato individual de salvar cada um. Isto muda o entendimento acerca do propósito de Deus; nesse sentido, ele planejou constituir um povo, não eleger indivíduos específicos.

Faremos a seguir uma análise dos termos empregados no NT para designar eleição, predestinação, etc. Estas palavras podem ser divididas em dois grupos principais: os verbos e substantivos que designam uma escolha ou eleição, e os verbos e substantivos que designam a atividade divina com respeito a eventos futuros.

1. Palavras que descrevem a atividade de Deus com respeito a eventos futuros

A característica comum destes termos no texto grego é o prefixo pro, que significa antes, tanto no tempo como no espaço.

1.1. Conhecer de antemão, presciência

No texto grego são usados um verbo – proginosko , que significa “conhecer de antemão”, “saber antes”, “escolher de antemão” – e um substantivo – proginosis – que tem o sentido de “presciência”.

 O verbo aparece três vezes no NT, com referência à atividade divina. Nas cartas de Paulo (Rom. 8:29 e 11:2) demonstra a natureza da atividade de Deus em relação aos homens. Assume o aspecto de um relacionamento pessoal com um grupo de pessoas, que tem a sua origem no próprio Deus. Entretanto, o emprego do verbo sunergei (“concorrer”) em Rom. 8:28 e o contexto dos capítulos 9-11, deixam claro que esta relação não é unilateral, mas exige a participação do grupo, num processo sinérgico, interativo. Na primeira carta de Pedro a referência é a Cristo, que foi “conhecido” ou “destinado” antes da fundação do mundo, para significar a sua preexistência com relação ao mundo e aos homens.

O substantivo aparece em I Pd. 1:2, onde significa que a “presciência” de Deus é a base da eleição dos cristãos a quem é dirigida a carta; e em Atos 2:23, onde caracteriza os eventos que cercavam Jesus de Nazaré antes de, e até a sua morte, isto é, tais acontecimentos nunca estiveram fora do controle divino.

1.2. Predestinar

No texto grego é usado o verbo prohorizo, que significa “decidir de antemão”, “predestinar” e aparece seis vezes no NT referindo-se exclusivamente aos decretos de Deus.

Em Rom. 8:28-30 este verbo aparece juntamente com “propósito” (prothesis, no grego) e com “conhecer antes” (que vimos acima), detalhando as ações de Deus a favor daqueles que são chamados, e denotando claramente que Deus tinha um plano para a eleição e prévio conhecimento daqueles que iriam ou não ser chamados. Portanto predestinação aqui tem a ver com presciência. No contexto seguinte (que inclui os capítulos 10 e 11), Paulo irá explicitar como se dá este chamamento. Veja, por exemplo, 11:32 e 10:9 -13.

Em I Co. 2:7 fala da sabedoria de Deus, que ele “preordenou” para a nossa glória. A predestinação divina, portanto, é descrita como atividade sua para com os homens, que visa a comunhão deles com ele.

Em Ef. 1:5, onde fala da nossa adoção através de Cristo, está se referindo ao amor predeterminante de Deus; e em Ef. 1:11, aparece em conjunto com “propósito” (no grego, “prothesis”), a fim de caracterizar a herança que os próprios cristãos são, e que Cristo possibilitou. Tudo isto deriva da vontade de Deus, que realiza tudo conforme o conselho da sua vontade.

Em At. 4:27-28, afirma-se que as pessoas somente podem fazer a Jesus as coisas que Deus preordenou com vistas à realização do plano divino para a salvação, mesmo as coisas más.

1.3. Propor, propósito

No texto grego temos o verbo protithemi, que significa “propor”, “demonstrar”, “fazer conhecer”; e o substantivo prothesis, cujo sentido é “plano”, “propósito”, “vontade”. O verbo aparece duas vezes descrevendo a atividade divina em relação aos homens, e o substantivo cinco vezes com esta mesma finalidade.

Em Rom. 3:25 Deus “propôs” Cristo como propiciação pelos nossos pecados, isto é, no seu planejamento a salvação se efetuaria através do oferecimento de Jesus com o sacrifício pelos homens, para propiciar a graça de Deus. Em Ef. 1:9, Deus “fez-nos conhecer” o mistério da sua vontade.

O substantivo aparece em Rom. 8:28 e 9:11 com o mesmo sentido, isto, é tanto a esperança e a certeza do cristão como a escolha de Jacó, baseiam-se na, e são sustentadas pela, atividade prévia de Deus, e não por qualquer capacidade humana de tomar decisões. Aqui, a palavra serve para caracterizar a atividade de Deus entre os homens como sendo livre e baseada somente na sua vontade. O cumprimento da promessa é o ato livre de Deus, tanto em Israel como na Igreja.

Em Ef. 1:11, a existência da igreja é descrita como resultado de uma decisão feita por Deus, que é uma resolução precedente, tanto no tempo como no espaço. Como em Rom. 8:28 e seguintes, temos aqui várias palavras que ressaltam a prioridade da vontade de Deus.

Em Ef. 3:11 a palavra serve para descrever a atividade de Deus em Cristo como o cumprimento de um “propósito eterno”, acerca do qual os homens nada têm a opinar, tanto no tempo como nas suas intenções.

Em I Tim 1:9, o “propósito” exclusivo de Deus está diretamente ligado à graça que nos foi dada em Cristo. E novamente aparece a idéia de um plano preordenado.
 
2. Palavras que denotam uma escolha ou eleição

2.1. Escolher

Há apenas uma ocorrência do verbo haireomai no texto grego que tem o sentido de “escolher” como se referindo a uma atividade divina, que é II Ts. 2:13. Aqui Deus “escolheu” a igreja para a salvação desde o princípio. O contexto nos mostra que Deus considera como chamados ou escolhidos aqueles que creram na verdade. Os que não creram serão julgados e reprovados.  

1.4. Eleger

Neste grupo temos um verbo e dois substantivos. O verbo é eklegomai, que significa “eleger”, “escolher”, e os substantivos são ekletos, que significa “eleito”, “escolhido”, e ekloge, cuja tradução é “escolha”, “eleição”.

O verbo ocorre dezesseis vezes no NT com o sentido de Deus ou Cristo elegendo, e o substantivo “eleito” ou “escolhido” aparece vinte e duas vezes. O substantivo “eleição” aparece seis vezes referindo-se ao ato divino da eleição. Não sendo possível, neste trabalho abordar todas as passagens, faremos algumas considerações gerais.

1. As declarações acerca da eleição exprimem a verdade de que a existência do povo de Deus só pode ser explicada com base no plano de Deus (presciência), sua vontade e sua atuação. Em Mt. 22:14 Jesus afirma que muitos são os chamados, mas poucos são os escolhidos. Quer dizer, a salvação é oferecida a todos, mas nem todos serão salvos.

2. As referências à eleição de Israel, por Jesus e por Paulo, evidenciam que tal eleição foi um ato livre da vontade de Deus, motivado por sua graça e, que, apesar da rejeição por parte de Israel da sua escolha, Deus não retira a sua promessa enquanto durar a dispensação da graça. Por outro lado, continua no NT a mesma linha de pensamento do VT, de que a eleição é condicionada ao cumprimento de exigências que Deus estabeleceu e independem da decisão humana, a não ser a única decisão de aceitar estas exigências.

3. Quando descreve a transfiguração de Jesus, Lucas muda a palavra “amado” que aparece em Mateus e Marcos, para “escolhido” (Lc. 9:35), querendo mostrar que a totalidade da ação eletiva culmina em Cristo. Jesus é o escolhido de Deus. O alvo final de toda a eleição prévia era preparar o caminho para a revelação dele. Se acrescentarmos a isto o ensino de Pedro, descobriremos que através dele também se revela a falta de entendimento entre os homens, e mesmo entre o seu povo. Jesus é aquele que foi rejeitado e lançado fora pelos homens, mas que Deus transformou na principal pedra de esquina, aquele que não desaponta os que nele crêem.

 4. É sobre esta pedra de esquina que Deus edifica sua igreja com pessoas de todas as nações; a igreja é a geração eleita. Sempre que lemos acerca da eleição da igreja, o pensamento subjacente é o da base da sua existência em Cristo. João mostra que é Cristo quem escolhe e quem torna eficaz a eleição de Deus. Em Jo. 6:70; 13:18; 15:16 e 19, Jesus é o sujeito explícito do verbo escolher (com ênfase no pronome ego = eu). Em Cristo, o favor de Deus já foi outorgado ao homem e vem a ele através da chamada e da aceitação de Cristo.          

5. A decisão da eleição está arraigada nas profundezas da natureza de Deus, como a sua presciência e o seu propósito, como vimos anteriormente. Em Ts. 1:4, Cl. 3:12, II Pe. 1:10 a graça de Deus se vincula a um imperativo no sentido de viver nesta graça, demonstrando-se ser alguém que Deus santificou. Isto porque apenas se e quando a fé é posta em prática, é que se torna evidente a eleição. Como disse Jesus em Jo. 15:16, a eleição é uma comissão para o serviço que produz frutos, para a obediência e para uma vida de temor a Deus e confiança nele.

6. Insistimos naquilo que dissemos acima: a característica básica da doutrina bíblica da eleição é referir-se ao Salvador e à coletividade de pessoas que ele elege, e não ao ato individual de eleger cada um. Quer dizer, o propósito de Deus, no sentido de “plano”, era e é constituir um povo, não eleger indivíduos específicos, ainda que cada um de nós, individualmente, tenha que ser chamado a fazer parte desse povo. Por isso mesmo é que temos o livre arbítrio de atender ou não a esse chamado.
 
Observação importante:

Os teólogos costumam usar dois conceitos para significar a limitação humana em descrever as ações de Deus. O primeiro é antropomorfismo (que vem do grego antropos = homem + morfos = forma), que é o recurso de atribuir a Deus formas visíveis e compreensíveis à mente humana. Por isso se diz que Deus tem mãos, pés, boca, olhos, ouvidos, etc. (poderíamos adicionar aqui o zoomorfismo, que é atribuir a Deus formas de animais, e o geomorfismo, atribuição a Deus de formas geográficas). O segundo conceito é o do antropopatismo (do grego antropos = homem + pathos = sentir, comportar-se), que designa a maneira humana de atribuir a Deus modos de agir próprios do ser humano, tais como andar, falar, se arrepender, etc. Nesse sentido se aplica a Deus a idéia de tempo e espaço, porém sabemos que para ele não existem limitações quanto ao tempo, ao espaço, ao conhecimento, etc. Por isso, toda a discussão sobre a predestinação é supérflua, tendo em vista que para o Senhor, não existe passado, futuro ou presente. Estas são categorias humanas, utilizadas pelos escritores bíblicos para descrever as ações de Deus na falta de termos mais adequados à nossa compreensão. Portanto, é mais adequado entender que Deus tem conhecimento prévio de tudo o que vai nos acontecer, e por isso sabe desde já qual será a nossa decisão a respeito da salvação em Jesus. Explicando melhor: tanto o que nos aconteceu no passado, como o que vai nos acontecer no futuro, para Deus é como se estivesse acontecendo agora. 

 

ALGUMAS OBJEÇÕES À PREDESTINAÇÃO INCONDICIONAL

Argumentos Lógicos

1. Ao invés de glorificar a Deus faz com ele se torne arbitrário, parcial e injusto.

2. Deus passa a ser culpado pela entrada do pecado no mundo e pela queda do homem, bem como pela impossibilidade de uma parte da humanidade alcançar o perdão dos pecados.

3. A obra redentora de Cristo perde seu sentido, já que não há perdão a oferecer, nem reconciliação a ser feita.
 
4. Também deixa de ter sentido a proclamação do evangelho e a obra missionária.

5. O crente perde a motivação de viver em retidão e dar testemunho de Cristo.

6. Visto que Deus determinou quem será escolhido, o homem somente poderá ter certeza da sua salvação no dia do Juízo Final.

Argumentos bíblicos

1. Deus quer que todos os homens, em todos os lugares, se arrependam (Atos 17:30).

2. Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê seja salvo.  (Jo. 3:16).

3. Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo (Rm. 10:13).

4. Todo o que vier a Jesus jamais será lançado fora (Jo. 6:37).

5. A ordem de Jesus é: Ide e pregai o evangelho a toda criatura (Mc. 16:14)

6. O evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê. (Rm. 1:16).
   
7. A graça se manifestou, trazendo salvação a todos os homens. (Tito 2:11).

8. Todos pecaram e destituídos estão da gloria de Deus; sendo justificados gratuitamente pela sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus. (Rm.3.23,24)

Bibliografia: “Arminianismo e Metodismo”, José Gonçalves Salvador; “Os Axiomas da Religião”, E. Y. Mullins; “O Evangelho da Redenção”, W.T.Conner; “Dicionário de Teologia do Novo Testamento”, vol. II e III.

Pr. Sylvio Macri
Rio, 1999