OS BATISTAS E OS DONS ESPIRITUAIS (Sylvio Macri)

Há uma certa falácia, que tornou-se popular no meio evangélico, de que a doutrina do Espírito Santo é um assunto ao qual as denominações históricas não-pentecostais, isto é, batistas, presbiterianos, metodistas e outros, dão pouca importância. A posição batista sobre a doutrina do Espírito Santo é certamente diferente daquela dos irmãos pentecostais, mas nunca descuidada. Não temos nenhum receio de tratar dos dons espirituais, nem de qualquer doutrina bíblica, porque entendemos, e este é um princípio fundamental dos batistas, que ninguém tem a autoridade exclusiva de interpretação da Bíblia. Pelo contrário, cremos que todo e qualquer ser humano deve ter livre acesso à Palavra de Deus e liberdade para interpretá-la de acordo com a sua própria percepção.             

As igrejas batistas surgiram há quatro séculos e desde então têm mantido uma posição bem definida sobre os chamados dons do Espírito Santo. Os batistas aceitam o ensino de Paulo nos capítulos 11 a 14 de I Coríntios, no sentido de dar lugar aos maiores dons, isto é, aos que são mais úteis para a edificação da igreja e o serviço ao próximo.  Por isso, ao longo da nossa história não tem havido, em nossas igrejas, manifestações espetaculares de dons de cura, milagre, línguas, etc., e não realizamos campanhas nesse sentido. Nem por isso somos igrejas de segunda classe, como muitos tendem a pensar. Ninguém em sã consciência poderá ignorar a fé, a obra e a influência dos batistas na evangelização do mundo, na educação e na defesa dos direitos humanos.

Não só neste assunto, mas em todos os outros, os batistas mantêm uma interpretação equilibrada dos ensinos bíblicos. Com respeito a todas as doutrinas bíblicas, os batistas, dada à sua origem não exatamente protestante, seguem uma linha de interpretação milenar, que se estende retrospectivamente até à igreja primitiva. Tal linha de interpretação caracteriza-se por buscar um equilíbrio em toda a Bíblia. Isto é, todo e qualquer assunto deve ser discutido e abordado com base no consenso de toda a Palavra de Deus, e não apenas em textos isolados. Todo e qualquer ponto doutrinário deve fundamentar-se no mais amplo contexto bíblico que seja possível. Idéias preconcebidas e experiências pessoais devem ser descartadas, se contrariam o ensino bíblico. Aliás, as interpretações arbitrárias e as experiências pessoais são as matrizes de todas as heresias.
         
Os batistas surgiram justamente deste propósito de aproximar-se ao máximo do ensino bíblico. E, ao longo destes quatro séculos, não encontraram justificação para a ênfase nos dons espetaculares, e nem mesmo para a sua prática. A nossa posição é que os dons espirituais que Paulo chamou de “maiores dons” são muito importantes e ainda vigentes na igreja local. É preciso marcar de uma vez por todas na nossa mente a importância do uso e desenvolvimento desses dons espirituais na igreja, como expressão da unidade e da utilidade do corpo de Cristo na face da terra. No caso específico dos dons de cura, milagres, línguas e interpretação de línguas, e experiências a eles ligadas, o contexto geral da Bíblia não favorece sua prática como hoje se vê, pelas seguintes razões:
       
1. O livro de Atos, apesar de mencionar o falar em línguas em algumas ocasiões, não afirma serem tais experiências resultado de um dom específico. Também não menciona a prática generalizada dos dons espetaculares pelas igrejas primitivas (apenas menciona curas realizadas pelos apóstolos).

2. Paulo escreveu 13 cartas a diversos destinatários. Somente em uma delas, 1a. aos Coríntios, tratou de dons espetaculares. Nem mesmo na 2a. carta aos Coríntios voltou ao problema. Instruindo aos pastores Timóteo e Tito, tratou apenas dos dons de pregar, evangelizar, ensinar e ministrar. Estes são os dons mencionados nas outras cartas. As cartas aos Romanos e aos Efésios têm, cada uma delas, uma lista de dons espirituais, sem os dons espetaculares.

3. Os apóstolos Pedro, João, Tiago e Judas, e o autor da carta aos Hebreus não citam os dons espetaculares, mas freqüentemente se referem à prática da pregação, do ensino, do cuidado pastoral, da ministração ao próximo e da evangelização.

Concluímos, portanto, que os dons espetaculares, pelo fato de terem sido mencionados apenas uma vez no caso particular da igreja de Corinto, não eram prática generalizada nas igrejas primitivas, nem devem ser nas igrejas de hoje, e não são essenciais para nossa fé.

Os maiores dons, ou os dons que realmente funcionam

I Coríntios 12:31 fala em “procurar com zelo os melhores dons”, mas na verdade o texto original fala em “maiores dons”. De fato, quando se fala em dons do Espírito Santo não se pode pensar em melhores e piores, pois tudo o que o Espírito nos dá é bom. Por isso, é bem mais apropriada a palavra “maiores”, pois ela traz o sentido de algo que tem maior utilidade para a igreja. O dom será tanto maior quanto maior proveito comum trouxer, ou maior edificação produzir para a igreja (veja I Co. 12:7 e 14:4).  

Quais são, pois, estes “maiores dons” de que fala o apóstolo Paulo? 

Para responder a esta pergunta é necessário, primeiramente, rever as listas de dons que temos na Bíblia, que só existem nas cartas de Paulo. Em I Coríntios, que foi escrita por volta do ano 54, temos duas listas. A primeira está em 12:8-10 e relaciona os seguintes dons: palavra da sabedoria, palavra da ciência, fé, dons de curar, operação de milagres, profecia, dom de discernir espíritos, variedade de línguas, interpretação de línguas. A segunda está em 12:28 e relaciona apóstolos, profetas, mestres, operadores de milagres, dons de curar, socorros, governos e variedades de línguas. Em Romanos, que foi escrita por volta do ano 57, temos os dons de profecia, ministério, ensinar, exortar, repartir, presidir, usar de misericórdia (Cap. 12:6-8). Em Efésios, que foi escrita por volta do ano 62, temos uma lista bem curta: apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres (Cap. 4:11).  
       
Vamos agora tentar elaborar uma lista dos dons que são comuns às listas que vimos acima. Para tanto, teremos que fazer algumas comparações ou analogias, pois nem sempre são usados termos exatamente iguais em todas as listas. Assim, restam somente os seguintes dons: nas quatro listas temos ensino (igual a palavra da sabedoria, palavra da ciência, mestre) e profecia (igual a profetas). Em três listas temos apóstolos (sempre o mesmo termo) e pastores (igual a governos, ministério e presidir). 

Levando em consideração que os outros dons aparecem apenas duas vezes nas quatro listas; que em I Coríntios temos duas listas no mesmo capítulo; que as cartas aos Romanos e aos Efésios foram escritas depois de I Coríntios, e ainda que Efésios era uma carta circular, escrita a várias igrejas, chegamos à conclusão de que os dons espirituais que Paulo considerava como mais importantes para a edificação da igreja eram os de ensinar, de pregar (profecia, inclui ser evangelista), de pastorear e de ser apóstolo (este foi temporário, como sabemos). Não por acaso, ensinar, pregar e pastorear são os dons mais exercitados hoje em dia em todas as igrejas. Estes são os maiores dons.

Para muitos crentes, se não para sua a maioria, os dons espirituais se resumem aos chamados “dons espetaculares”, isto é, os de cura, de línguas, de operação de milagres e outros semelhantes. Sem dúvida nenhuma, estes dons dão mais visibilidade àqueles que os têm. Por isso, muitos que não os possuem, querem tê-los. Em quase todos os casos estes dons se manifestam nas igrejas pentecostais, o que deixa uma impressão de exclusividade. Por que será que nas igrejas batistas estes dons não aparecem? A razão é simples, e basta analisar o assunto no Novo Testamento para descobri-la. Como vimos acima, o ensino, a pregação, o ministério pastoral e o ministério aos necessitados são amplamente citados no Novo Testamento, e torna-se evidente que eram os dons praticados na totalidade as igrejas ali referidas. Parece-nos que os dons espetaculares ficaram restritos à igreja de Corinto e, mesmo lá, essa prática não durou muito. Como diz o apóstolo Paulo em 1a. aos Coríntios, estes dons ocorreram numa fase “infantil” daquela igreja. Portanto, os batistas seguem a prática das igrejas primitivas, e não a prática exclusiva da igreja de Corinto nesse período. 

Mesmo nas igrejas pentecostais, os dons que realmente funcionam são os do ensino, da pregação e do ministério pastoral. Não é possível existir uma igreja cristã sem estes dons. Mas pode existir uma igreja sem os dons espetaculares. A prova disso são as igrejas batistas, que existem há 4 séculos sem eles.

A essência do serviço cristão

Em I Coríntios 12:5, Paulo usa a palavra “ministérios” (no original grego = “serviços”) para referir-se aos dons espirituais. Para ele dons e serviços são a mesma coisa. O objetivo dos capítulos 12 a 14 de I Coríntios é enfatizar que os dons são formas de serviços que o Espírito Santo proporciona aos crentes para benefício de todos, inclusive os que não pertencem à igreja.
 
Ao fim do capítulo 12, após ensinar que a diversidade de dons contribui para a unidade da igreja, e insinuar, nas entrelinhas, que a valorização de um único dom contribui para a divisão da igreja, Paulo aconselha os coríntios a valorizar os maiores dons, e acrescenta: “Ademais, eu vos mostrarei um caminho sobremodo excelente” (I Co. 12:31). Apresenta, então, o seu magistral poema sobre a suprema excelência do amor – I Co. 13:1-13, poema este que é uma das obras primas da literatura mundial.         

Paulo havia acabado de escrever longamente sobre os dons ou serviços, mencionando alguns à cuja prática os coríntios davam extrema importância, e agora passa a ensinar que o essencial não é o exercício dos dons, o essencial não é a execução dos serviços, mas o sentimento que nos move a isto.

E, para começar, ele toma como exemplo o dom que os coríntios consideravam como superior a todos os outros: o de falar em línguas estranhas. Mas, por uma questão de justiça, também toma como exemplo o dom que ele mesmo considerava como superior a todos os outros: o de profecia. E para ser ainda mais justo, termina com dois exemplos espetaculares: um, de extrema liberalidade – o fato de alguém dar todos os seus bens para sustento dos pobres; e outro, de extremo sacrifício – o fato de alguém entregar o seu corpo para ser queimado.             
       
Paulo afirma, surpreendendo os coríntios, que qualquer coisa que o crente faça sem que seja motivado pelo amor, mesmo a ação mais espetacular, é totalmente inútil.  Mais à frente vai dizer, no capítulo 14, que o dom de línguas é um dom “egoísta”, mas por enquanto prefere estabelecer o princípio de que a motivação para servir (exercer dons) deve ser sempre o amor. O amor é a garantia de que não seremos movidos por conveniência pessoal, inveja, ciúme, orgulho, egoísmo, vanglória, ressentimento, suspeita e injustiça. O amor é a garantia de que aguardaremos com paciência, se preciso sofreremos, que trataremos com benignidade e que nos alegraremos com a verdade, mesmo que ela seja contra nós.

Por fim, o apóstolo lembra aos coríntios que no céu não precisaremos de profecias, de línguas ou de ciência, mas precisaremos, sem dúvida, do amor, pois será o único sentimento capaz de expressar, em toda a sua plenitude, a vida face a face com o Senhor.

O dom de línguas é importante?

No capítulo 14 de I Coríntios Paulo propõe à igreja destinatária uma discussão sobre o dom de línguas. Os seus 40 versículos podem ser divididos em 5 partes, e cada uma apresenta um argumento para demonstrar que a resposta é não, o dom de línguas não é importante para a vida da igreja. Pode-se viver muito bem sem ele.   
 
O primeiro argumento está nos versos 1 a 5, nos quais Paulo afirma que o dom de línguas é um dom “egoista”, não no mau sentido, mas no sentido de que a única pessoa que é edificada por ele é a própria que fala (v. 4). Parece que a manifestação do dom dava-se principalmente nas orações e nos cânticos (veja v. 15). O que Paulo quer dizer, portanto, é que o exercício deste dom dá-se num nível individual, numa relação pessoal entre Deus e o crente, e não numa relação coletiva, entre Deus e a igreja.            

O segundo argumento encontra-se nos versículos 6 a 19. Paulo chega a ser contundente quando afirma que prefere falar 5 palavras numa língua inteligível, do que 10 mil em língua estranha (v. 19). O resumo deste trecho é que as manifestações de culto coletivo (não culto individual) devem ser racionais e inteligíveis. Cada pessoa, por mais indouta que seja, deve ser capaz de entender tudo o que se passa e que se fala na igreja, e ser capaz de dizer “amém”. Quando cultuamos a Deus, nossa inteligência não pode ser “desligada”.

O terceiro argumento está nos v. 20 a 25, em que Paulo diz que a ênfase no dom de línguas é uma infantilidade (v. 20). Se os coríntios fossem mais maduros não dariam tanta importância a ele. Pessoas imaturas, como as crianças, são muito atraídas por ações espetaculares, e não são capazes de avaliar as conseqüências do envolvimento com estas ações. Usando um exemplo do Velho Testamento, o apóstolo mostra que ao invés de levar os não crentes a crerem, as línguas os faziam endurecer o coração.   
       
No quarto argumento (v. 26 a 33) Paulo diz que não podemos transformar o culto numa manifestação confusa, sob a alegação de que estamos sob o domínio do Espírito Santo. O exercício do dom de línguas na igreja de Corinto havia tornado o culto numa grande confusão. O Espírito Santo é Deus, e não atua na confusão (V. 33). Devemos exercer domínio sobre nossas emoções, e não ser dominados por ela.

O último argumento (v. 34 a 40) discute uma questão muito importante: as nossas experiências pessoais, sejam línguas, visões ou sonhos, não são autoridade para firmar doutrinas. A nossa única autoridade é a Palavra de Deus. Em nenhuma das outras cartas que Paulo tratou do dom de línguas. O que ele quer dizer aqui, é que as outras igrejas também haviam recebido sempre o mesmo ensino dele (v. 36,37), e não tinham as mesmas práticas dos coríntios.

O zelo pelos dons espirituais

Em II Timóteo 1:6 Paulo exorta o seu discípulo a despertar o dom que havia nele. No caso de Timóteo, pelo que se depreende das informações do Novo Testamento, era mais de um dom, porque ele era pastor e evangelista.

A maior parte das versões mais recentes da Bíblia traduzem o verbo da exortação por uma idéia mais aproximada do original grego, que é a de “manter viva a chama do fogo”. É como se Paulo estivesse dizendo a Timóteo: ”Assopre sem parar o fogo do dom que está em você, para que a chama não se apague nunca”. Diz o escritor John Stott: “Do verbo grego anazopureo, que não aparece em nenhuma outra passagem do Novo Testamento, não se pode deduzir que Timóteo tenha deixado o fogo extinguir-se e que tenha, agora, de soprar as brasas quase apagadas, até que o fogo ressurja. O prefixo ana pode indicar tanto aumentar o fogo, como tornar a acendê-lo. Parece, pois, que a exortação de Paulo é para continuar soprando, para ‘atiçar aquele fogo interior’, para conservá-lo vivo até inflamar-se, e isso, presumivelmente, pelo exercício fiel do seu dom e pela súplica a Deus por constante renovação desse dom” (Tu Porém – A mensagem de II Timóteo, ABU, SP, 1983).         

O crente, portanto, é exortado pela Palavra de Deus a manter viva a chama dos dons que há nele, porém esta ordem não é uma licença para ele fazer o que lhe der na cabeça. Pelo contrário, na mesma passagem (I. Tm. 1:6,7) é dito que este “fogo” deve ser temperado e limitado pelo amor e pelo bom senso. Sabemos que os dons de Deus, tanto os naturais como os espirituais, são desenvolvidos pelo seu exercício permanente, na dependência e direção do Espírito do Senhor, e é deste “assoprar contínuo” que Deus se utiliza para fazer crescer o seu Reino neste mundo (Ver Mt. 25:14-30). Contudo, nossa abordagem do assunto será sempre balizada pelo que o apóstolo Paulo diz no versículo seguinte ao que citamos acima: “Porque Deus não nos deu o espírito de covardia, mas de poder, de amor e de moderação” (II Tm.1:7).

Para exercer os dons espirituais precisamos, sem dúvida, de poder do Espírito. Mas se por um lado, o “espírito de covardia” nada tem a ver com o cristão, por outro, os dons têm que ser permeados sempre pelo amor e pela moderação. A respeito de dons e amor, temos a excelente discussão de I Co. 13. Mas a palavra traduzida aqui por “moderação” aparece esta única vez em todo o N.T. e significa “auto-domínio,  auto-disciplina, auto-controle”, que é justamente o contrário de auto-exaltação e auto-exibição.  Portanto, apliquemo-nos em avivar os dons que há em nós, mas procuremos exercitá-los sempre com amor e moderação, e assim estaremos fazendo da maneira certa.

Pr. Sylvio Macri