Quando abrimos o Evangelho de Marcos, encontramos uma situação recorrente e que nos intriga: Jesus orava.
Temos algumas de suas orações reproduzidas e temos narrativas sobre outras.
A lição é imediata: se Jesus orava, que dizer de cada um de nós.
Uma pergunta mais sofisticada se impõe: por que Jesus orava, se ele era Deus?
Outras perguntas surgem, sobre a natureza da oração. Eis quatro delas, sem qualquer hierarquia:
1. Se Deus é soberano, perfeito e amoroso, nossa oração realmente pode mover o coração de Deus? Isto é, ele não necessita disso. Por que orar para que Deus console os corações de pessoas ou famílias enlutadas?
2. Talvez a oração por outros não seja algo que "determine" ações de Deus, mas produza transformação no nosso coração e no nosso relacionamento com ele. Seria isso?
3. Existe realmente uma relação de proporção entre Deus atender um pedido e quantidade de oração?
4. Seria necessário um momento para orar, ou você pode fazer do seu dia uma oração?
Estas perguntas (1 + 4) são importantes porque nos ajudam a compreender a própria dinâmica da oração.
Respondamos a cada uma delas, a primeira embutida na quarta.
A ORAÇÃO NOS OFERECE UM PARADOXO
1. Se Deus é soberano, perfeito e amoroso, nossa oração realmente pode mover o coração de Deus? Isto é, ele não necessita disso. Por que orar para que Deus console os corações de pessoas ou famílias enlutadas?
Deus é soberano, perfeito e amoroso.
Nós somos dependentes, imperfeitos e nem sempre amorosos, mas também somos livres. Por isto, podemos querer a companhia de Deus e podemos não desejá-la, como o casal da Queda.
Podemos nos achar capazes de fazer as coisas por nós mesmos, sem a ajuda de Deus.
Somos livres e Deus nos respeita. Ele poderia não ter respeitado a escolha de Adão e Eva, mas respeitou porque foi escolha feia por pessoas é livres.
Diz a Bíblia que é da vontade de Deus que todos os seres humanos se salvem (1Timóteo 2.4), mas só serão salvos os que desejarem. A oferta é para todos, mas ela se torna salvação nos que a recebem.
Deus é soberano, perfeito e amoroso. Ele vê as situações de perigo e, muitas vezes, nos livra delas sem que peçamos ou mesmo sem que saibamos que corremos perigo. Ele "é capaz de fazer infinitamente mais do que tudo o que pedimos ou pensamos, de acordo com o seu poder que atua em nós" (Efésios 3.20).
Assim mesmo — e talvez por isto mesmo — devemos pedir. Deus nos instrui para orar. Jesus nos manda orar e nos diz que já sabe de tudo o que precisamos, antes de pedirmos (Mateus 6.8). E ainda assim nos manda orar. Então, oremos.
Orar é depender. Quando oramos, temos um encontro com a realidade: não somos soberanos; não somos perfeitos; não somos efetivamente amorosos. Graças a Deus, podemos contar com aquele é tudo isto.
Orar é nos relacionar. Quando oramos, nós nos relacionamos com Deus. Ele deixa de ser um deus distante e indiferente, mas um Deus presente e atuante. O Deus relacional considerar quem somos. Quando oramos, nós nos postamos prontos para receber o que Deus tem para nos dar.
Andrew Murray escreveu que "muitas igrejas não sabem que Deus governa o mundo por meio da oração dos seus santos". (A ideia vem de uma interpretação de 1 Coríntios 6.2 — "Vocês não sabem que os santos hão de julgar o mundo?") John Wesley foi firme quando disse que "Deus não faz nada senão em resposta à oração". 1
Há um paradoxo na oração, mas é Deus quem o põe.
A ORAÇÃO MUDA E NOS MUDA
2. Talvez a oração por outros não seja algo que "determine" ações de Deus, mas produza transformação no nosso coração e no nosso relacionamento com ele. Seria isso?
Deus é o Deus da parceria. Ele nos quer ver juntos com ele na direção do mundo.
Servir ao Deus relacional quer dizer que ele nos quer parceiros dele no mundo; assim, quando oramos a Deus, nós nos tornamos parceiros de Deus.
Nossas orações não determinam o que Deus faz, mas nossas orações nos colocam como partes do projeto de Deus.
Nossa oração não faz bem a Deus, mas nos faz muito bem.
Quando oramos por uma pessoa, seu problema passa a ser nosso. Somos transformados em pessoas solidárias, não mais egoístas.
Quando oramos por uma causa, a causa se torna nossa. Somos transformadas em pessoas com um grande sentido de comunidade, apesar do nosso individualismo.
Mais ainda, a Bíblia nos diz que nossas orações podem mudar o curso da história. A família de Ló foi salva porque Abraão orou por ela. Pedro foi liberto da prisão porque sua igreja estava orando por ele.
É interessante que o Antigo Testamento nos diz que Deus se arrependeu de algo que ia fazer. Quando o povo fez um bezerro de ouro para adorar, Deus desejou eliminá-lo, mas a oração de Moisés levou Deus a desistir deste intento (Êxodo 32).
Quando o povo de Israel cavou a própria sepultura com o seu pecado, Deus decidiu deixar que fosse destruído por um inimigo, mas Ezequias e outras pessoas oraram e Deus se arrependeu da desgraça que proferira contra eles (Jeremias 26.19) por causa de oração de Ezequias.
No final do livro de Jó, temos a seguinte situação: Deus se disse indignado com os amigos de Jó por terem falado o que não deviam. Surge uma oportunidade: "Vão agora até meu servo Jó, levem sete novilhos e sete carneiros, e com eles apresentem holocaustos em favor de vocês mesmos. Meu servo Jó orará por vocês; eu aceitarei a oração dele e não lhes farei o que vocês merecem pela loucura que cometeram. Vocês não falaram o que é certo a meu respeito, como fez meu servo Jó” (Jó 42.7-8). Jó orou e Deus aceitou a sua oração e não deu àqueles homens o que mereciam.
A oração, portanto, muda a história. Somos parceiros de Deus nela.
Quando não muda a história, a oração nos muda. Paulo não teve o espinho da sua carne tirado, mas foi ensinado por Deus a conviver com o problema.
A oração muda o coração de Deus. Como, se ele é onisciente e imutável. Este é um mistério, mistério de amor.
A ORAÇÃO NOS PREPARA PARA RECEBER O QUE DEUS QUER NOS DAR
3. Existe realmente uma relação de proporção entre Deus atender um pedido e quantidade de oração?
Nós oramos e Deus é soberano.
Quanto mais oramos, mais nos envolvemos. E Deus é soberano.
Quanto mais oramos, mais estamos em condição de receber o que Deus tem para nós. E Deus é soberano.
Quanto mais pessoas oram, mas pedidos chegam a Deus, que é soberano.
Jesus nos manda insistir. Quando insistimos num pedido, Deus vê que realmente precisamos daquilo, mas ele é soberano.
Deus pode atender uma necessidade, que não virou pedido; pode responder a um pedido feito por uma única pessoa e não atender outro formulado por milhões de pessoas. Deus é soberano.
Se temos uma pessoa com necessidade, não importa quantos já estejam orando por ela. Oremos também. Deus é soberano, soberano e bom.
Na verdade, eis algo que precisamos aprender. "Toda oração, cristicamente compreendida, é respondida, pois, antes de ser uma prática religiosa ou uma lista de pedidos, a oração é o lugar da comunhão e da intimidade com Deus. Então, conhecendo a sua vontade soberana, clamamos e pedimos em sintonia com os seus projetos". 2 Assim, "quem ora com o discernimento do Espírito Santo, pede somente o que é da vontade de Deus e, sendo desta forma, terá seus pedidos sempre respondidos". 3
Temos um caminho a percorrer: o de orar menos com pedidos e mais com o desejo de aprender a vontade de Deus para nossas vidas. Este é o grande pedido. Parte está respondida objetivamente na Bíblia. Parte vem da comunhão com Deus. A oração, portanto, é "uma experiência da escuta da vontade de Deus". 4
A ORAÇÃO É MAIS QUE O CONHECIMENTO DE UM JEITO DE ORAR
4. Seria necessário um momento para orar ou você pode fazer do seu dia uma oração?
Fazer do nosso dia uma oração não nos tira dos momentos particulares de oração. Pelo contrário, se passamos o dia orando, com os olhos abertos enquanto fazemos as nossas coisas ou simplesmente fazendo com que nossa vida seja mesmo uma oração, mais precisaremos de momentos de oração que vão ser os fundamentos sobre os quais a oração constante seguirá.
Há três textos em Marcos (outros havendo nos demais Evangelhos) que nos mostram como Jesus fazia:
Marcos 1.35-37 — "Tendo-se levantado alta madrugada, saiu, foi para um lugar deserto e ali orava. Procuravam-no diligentemente Simão e os que com ele estavam. Tendo-o encontrado, lhe disseram:Todos te buscam".
Marcos 6.46-47 — "E, tendo os despedido, subiu ao monte para orar. Ao cair da tarde, estava o barco no meio do mar, e ele, sozinho em terra".
Marcos 14:35-36, 39 — " E, adiantando-se um pouco, prostrou-se em terra; e orava para que, se possível, lhe fosse poupada aquela hora. E dizia:Aba, Pai, tudo te é possível; passa de mim este cálice; contudo, não seja o que eu quero, e sim o que tu queres.(…) Retirando-se de novo, orou repetindo as mesmas palavras".
Jesus precisava de momentos (longos momentos, é verdade) para oração. E não haveria alguém com menos necessidade do que ele destes momentos.
Vejamos sua prática, para aprendermos com ele.
Jesus tinha momentos de oração, geralmente longos. Devemos buscar fazer o mesmo.
Jesus orava sozinho. Devemos fazer o mesmo, sem desprezar a oração junto com outras pessoas.
Jesus orava em lugares desertos. Devemos fazer o mesmo, buscando um lugar que seja "deserto", isto é, com as condições que nos permitam nos concentrar na oração.
Jesus orava em lugares determinados, um deles era o jardim do Getsêmani. Em Lucas 22.39-40, lemos: "Como de costume, Jesus foi para o monte das Oliveiras, e os seus discípulos o seguiram. Chegando ao lugar, ele lhes disse: ‘Orem para que vocês não caiam em tentação’”. Devemos agir da mesma maneira, orando de modo disciplinado, em termos de lugares, horários e recursos (Bíblia, hinário, caderno de oração, etc.). No entanto, estar em lugares determinados e em horários programados, com uma Bíblia aberta e um caderno de oração nas mãos não garante que seremos atendidos, por termos preenchido os requisitos. Orar é estar com o coração contrito e quebrantado, como aprendemos com um salmista: "Os sacrifícios que agradam a Deus são um espírito quebrantado; um coração quebrantado e contrito, ó Deus, não desprezarás" (Salmos 51.17). A oração, portanto, começa com a consciência do nosso pecado. Assim, "quem ora ao Pai celestial ora com intimidade, desfrutando da ternura de Deus, mas ora também com um sentimento de quem está se permitindo ser moído e triturado pela profundidade do esplendor, conhecimento, amor, sabedoria, justiça e verdade findos desta fonte inominável". 5
Também devemos ter em mente que as regras sobre oração são as que menos importam. "Ele não cria regras impossíveis e sacrificiais. Ele nos anima a voltar pelo caminho mais natural da nossa interioridade em busca do mistério da presença de Deus, em comunhão com nossa essência pessoal". 6
Jesus orava sempre e sobretudo nos momentos que antecediam grandes realizações ou grandes decisões. Quando foi batizado, ele orou (Lucas 3.21). Quando decidiu revelar sua messianidade, ele orou (Lucas 9.18). Quando ensinou os discípulos a orar, ele estava orando ("Certo dia Jesus estava orando em determinado lugar. Tendo terminado, um dos seus discípulos lhe disse: “Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou aos discípulos dele”. — Lucas 11.1). Perto de subir para a cruz, orou. Pregado à cruz, orou.
Jesus orava sempre para manter seu relacionamento com o Pai. Se queremos manter um relacionamento com Jesus, devemos orar como Jesus orava. A vida de oração de Jesus
nos convida a sermos homens e mulheres de oração, oração com palavras, mas palavras que reflitam "uma prática de vida seguida em permanente temor e tremor diante de Deus.
PARA UMA PRÁTICA
1. Dependa de Deus. Quem depende de Deus ora.
2. Deseje orar e viver a vontade de Deus.
3. Denuncie o caráter possivelmente idolátrico e egolátrico da sua oração.
Analise o conteúdo da sua oração, para ser menos pedido e mais comunhão.
4. Discipline a sua vida para orar. Mude seus hábitos para ter mais tempo para orar.
Se você quer orar mais, comece com mais alguns minutos por dia, talvez no começo do dia, quando a concorrência é menor.
Se você quer orar melhor, veja as histórias de oração na Bíblia e os conteúdos delas, sobretudo as de Jesus.
ISRAEL BELO DE AZEVEDO
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1 DENISON, James C. Why pray to an all-knowing God. Disponível em <http://texasbaptists.org/files/2010/10/FifthAwakening03Pptversion.pdf>
2 QUEIROZ, Carlos. A oração nossa de cada dia. Viçosa: Ultimato, 2013, p. 66.
3 QUEIROZ, Carlos, op. cit., p. 42.
4 QUEIROZ, Carlos, op. cit., p. 67.
5 QUEIROZ, Carlos, op. cit., p. 53.
6 QUEIROZ, Carlos, op. cit., p. 32.