AINDA ARDE O CORAÇÃO

Eu o vi.
O sol ainda não era pleno. Na sexta-feira, tínhamos preparado os perfumes e fomos ao túmulo no primeiro dia da semana. 
Aquele que nos dera a própria vida perdera-a na cruz. Também vi. Muitos vimos. Desde o jardim do Getsêmani, ele vinha perdendo sangue, mas eu não estava lá. Eu estava quando carregou a barra da cruz pelas vielas até o alto da morte. Ele foi açoitado até cair, misturado ao sangue, em poça. Eu mesma gritei para o Cireneu.
— Ajuda, Simão!
Os soldados que batiam nele com chicotes de ferro na ponta não tinham razão para ter raiva de Jesus, mas batiam com a vontade do ódio. Não entendo. Eles sabiam o que ele fez. Não sei se sabiam o que fez comigo. Eu nunca esquecerei, e nem desejo. Eu vivia atormentada. Passava mais tempo inconsciente do que acordada. Primeiro, um demônio me derrubou ainda na minha cidade. Um a um, até serem sete, foram me tomando. Sete demônios me possuíam. Quando me diziam o que eu fazia sem saber, fui para Cafarnaum, envergonhada, mas lá todos já sabiam. (Nossas cidades eram quase coladas.)
Quando me encontrei com Jesus, ele quis saber minha história. Contei. Ele perguntou se eu queria ficar livre. Acho que gritei, quando lhe disse sim.
Ele me levou para a casa de Marta, Lázaro e Maria de Betânia (eu sou Maria de Magdala), pediu para os discípulos subirem para a "kataluma" e orarem de joelhos. Enquanto eles oravam, ele foi mandando embora cada um dos meus demônios. Na verdade, não me lembro de nada; Marta me contou. Lembro-me que me pediu para voltar para Magdala. Estive lá uns dias, mas eu precisava estar perto de Jesus. Voltei.
Quando ele veio para Jerusalém, onde estive para algumas Páscoas, acho que sabia o que o esperava. Lá no norte, eram só os fariseus que o incomodavam. Aqui são os donos do templo. Têm medo que os dízimos caiam. Outros, mais histéricos, acham que Roma podia massacrar a cidade por causa de um impostor. Eles achavam que um homem que curava e ensinava daquela maneira era um impostor. Iriam perder os dízimos, mas iarim receber de graça a vida, como eu ganhei.
Depois que ele morreu e foi enterrado, fiquei confusa. Ele nos tinha avisado, mas foi tudo muito rápido e não pudemos fazer nada. Nós não fizemos nada. Pelo menos, levamos os perfumes, mas não foram usados. O corpo a ser perfumado estava vivo. Quando o vi, o rosto contra sol, o rosto brilhando como o de Moisés no Sinai, eu me ajoelhei e só falei uma palavra:
— Raboni.
E ele se foi. Foi a segunda fez. 
A primeira foi quando subiu o Gólgota.
A terceira foi quando respirou profundamente, encheu o peito, a shekiná desceu e ninguém mais o viu.
Meu coração ainda arde.
 
ISRAEL BELO DE AZEVEDO