ACADEMIA DA ALMA 8 — AME A VIDA (6/10)

A vida em 10 atitudes, 6

AME A VIDA

 

PARA MEMORIZAR

“Não matarás".

(Êxodo 20.13 — ARA)

 

PARA PENSAR

"Embora sejamos passíveis de ímpetos destrutivos de cólera, podemos também reagir de modo racional a quaisquer insultos, problemas ou atos contrários a nós".

(Leonard FELDER)

 

PARA VIGIAR

Como sei que a violência é constitutiva da natureza humana, vigiarei para não gritar com o outro, não desclassificar o outro, não humilhar o outro, não odiar o outro, não matar o outro.

 

PARA ALCANÇAR

Serei um promotor da paz e um defensor da vida. Se eu me irar, não pecarei.

 

Equilibrando-me na carroceria de uma caminhonete, seguia para a aldeia dos suruí em Rondônia, quando um inseto cheio de cores voou até o meu braço e, antes que pudesse me fazer mal, assim eu pensava, levantei o outro braço para massacrá-lo com a palma da minha mão.

Não pude prosseguir. Meu braço foi contido no alto pela mão de um índio, que me perguntou:

— Que mal ele lhe fez?

O suruí me deu uma lição, ao preservar a vida daquele inocente inseto, que pôde continuar voando. Não precisamos matar para viver.

Ele ele estava levando às melhores consequências o sexto mandamento: "Não matarás" (Êxodo 20.13), a partir do qual se desenvolveu o respeito pela vida.

 

1. ACULTURA DA GUERRA

 

Apesar da instrução divina, a maior parte dos dias da humanidade tem sido de guerras, numa clara desobediência ao mandamento, defendida em nome de deuses e estados e ideias. Ainda hoje, conquanto nos digamos civilizados, vivemos na cultura da guerra, o tempo quando se pode matar e que torna herói quem mata.

É muito emblemático que um livro que fez grande sucesso no mundo dos negócios se chamasse "Marketing de Guerra". [1]Nele, os autores propõem que "a melhor estratégia de defensiva é a sua coragem para atacar", uma vez que "a concorrência é o inimigo e o objetivo é ganhar a batalha". Eles derivam seus princípios de estratégia militar desenvolvidos pelos general Carl Clausewitz (1780-1831), a quem dedicam o livro por considerá-lo "um dos maiores estrategistas de marketing que o mundo já conheceu".

É também emblemático que, num cenário evangélico, também tenha feito sucesso um livro cujo título é "Oração de guerra", no qual Peter Wagner desenvolve as estratégias da batalha espiritual nos mesmos moldes dos princípios militares, como cobertura (vindo daí a atração exercida pelos "apóstolos" modernos, que dão "cobertura espiritual" aos seus liderados…) e ataque ao inimigo no seu território, [2]tomados como ensinados na Bíblia, embora inspirados em metáforas lidas literalmente.

É igualmente emblemático o uso de metáforas para o câncer, segundo as quais há um inimigo (o câncer), um comandante (o médico), um combatente (o paciente), os aliados (a equipe de saúde) e  e as armas (como a cirurgias e as quimioterapias). [3]Por isto, continua oportuna a crítica de Susan Sontag. "As metáforas relativas as idéias de controle e comando, na realidade, não são tiradas da economia, mas da linguagem militar". Elas estigmatizam a doença. "Todo médico e todo paciente atento está familiarizado com essa terminologia militar. Assim, as células do câncer não se multiplicam simplesmente; elas são 'invasoras'. (…) A partir do tumor original, as células do câncer 'colonizam' regiões distantes do corpo, estabelecendo primeiro minúsculos postos avançados ('micrometaìstases') cuja presença é admitida, embora não possam ser detectados. Raramente as 'defesas' do corpo são suficientemente vigorosas para obliterar um tumor que estabeleceu sua fonte de suprimento de sangue e consiste em bilhões de células destrutivas. (…) As perspectivas são de que 'a invasão do tumor' prossiga ou de que as células defeituosas eventualmente se reagrupem e preparem um novo assalto ao organismo". [4]Sontag protesta: "a doença não é uma metáfora". Segundo ela, "a maneira mais fidedigna de encarar a doença – e a maneira mais saudável de estar doente – é aquela mais expurgada do pensamento metafórico e mais resistente a ele. Porém é quase impossível fixar residência no reino dos doentes sem ter sido previamente influenciado pelas metáforas lúgubres com que esse reino foi pintado". [5]Para Sontag, a guerra é metáfora lúgubre para a doença. Há outros problemas com as metáforas para o câncer.  A dicotomia entre a vitória e a derrota não corresponde bem ao complexo conjunto de resultados do tratamento. Quando o tratamento falha, muitas vezes se atribui, dentro do quadro da metáfora militar, a responsabilidade ao soldado, isto é, ao paciente. Ademais, não há invasor inimigo estrangeiro, porque as as células cancerosas se desenvolvem a partir do próprio corpo; visualizá-lo como um inimigo implicitamente condena o paciente. Como a antiga visão de doença decorrente do pecado interior, câncer implica alguma falha interna. [6]

Por isto, a obediência ao sexto mandamento começa pela transformação de nossa linguagem para que não seja bélica. Para que precisamos chamar uma pessoa dedicada e determinada de "guerreira"?

 

2. REVERÊNCIA PELA VIDA

 

Precisamos valorizar a vida de modo absoluto, sem ressalvas, sem atalhos, sem exceções. Em lugar de diminuir o alcance do mandamento, devemos ampliá-lo, para incluir, como sugere o hebraico, as infelizes ideias de matar alguém ou a si mesmo; quebrar, machucar, esmagar ou oprimir ou humilhar alguém fisicamente ou verbalmente, ações que acontecem quando a raiva predomina. [7]

Amar a vida é uma forma de adorar a Deus, o Doador da vida. Quem não ama a vida, a sua e do outro, não ama a Deus, podemos afirmar (parodiando 1 João 4.20). No caso específico da vida humana, ela foi feita à imagem e semelhança de Deus. Cada vida criada agora atualiza o ato criador original de Deus. Cada gesto nosso a favor da vida ou contra ela deve ser visto à luz do primeiro dever humano dado por Deus, que era cultivar e guardar o jardim (o habitat do ser humano, que o inclui) em que vivia (Gênesis 2.15). A terra se cultiva. O ser humano se guarda. Como Caim, temos esquecido de guardar os habitantes do jardim. O primeiro homicida não entendeu que era tutor (guardador, preservador, cuidador) do seu irmão (Gênesis 4.9).

Precisamos guarda a vida, contra todo tipo de utilitarismo que justifica a eutanásia quando o ser humano deixa de produzir, como se a dignidade não lhe fosse intrínseca mas dependesse dos benefícios que pode gerar. Precisamos defender a vida, contra todo tipo de desrespeito, inclusive o de justificar egoisticamente o assassinato de um feto a partir do desejo de uma mãe.

A vida é sagrada, não num sentido panteísta, mas no sentido que surgiu por uma vontade divina. Nossa tarefa é cuidar dela e não extingui-la. Devemos reverenciar a vida como um capítulo de nossa reverência a Deus, com o cuidado de não igualar a criação ao Criador. O médico Albert Schweitzer pode ter exagerado no princípio da "reverência pela vida", mas é melhor exagerar na defesa do bem do que relativizar o seu valor. Para ele, "a ética nada mais é do que Reverência pela Vida. A Reverência pela Vida me leva ao meu princípio fundamental de moralidade, vale dizer, que o bem consiste em manter, assistir e melhorar a vida e que destruir, ferir ou limitar a vida é mal". Suas palavras precisam nos tocar, na direção de uma ternura diante dos outros: "Eu sou vida que quer viver no meio da vida que quer viver. Assim como em minha própria vontade de viver há um desejo por mais vida e prazer, com medo da aniquilação e da dor, assim é a vontade de viver ao meu redor". [8]

Um poeta brasileiro canta a vida a partir da vida e do pensamento de Schweitzer, nos seguintes termos:

 

“REVERÊNCIA PELA VIDA

Tudo o que respira quer ir vivendo,

Seguir viagem pra algum lugar,

Quer atravessar o vazio do espaço,

Dar mais um passo pra continuar.

 

Tudo o que respira quer ter seus filhos

Criar sua prole e quem sabe amar.

Levantar seus olhos ao céu aberto

Sob a luz do velho sol cantar

E se encantar

 

Temos de aprender que a vida é sagrada

E que todo ser merece atenção

Todo sofrimento espera uma resposta, nossa reação.

 

Há que se cuidar da pétala que chora

Nunca machucar a abelha e sua flor

Proteger o ninho de um passarinho, q’inda não voou [frágil cantador]

 

Tudo o que respira quer ter a chance

De florescer logo de manhã

Uma borboleta, alegria alada,

E na emboscada a aranha tecelã.

 

Vida perigosa e tão preciosa,

Sutil mistura, beleza e dor,

Fino fio de seda perdido ao vento

Feito um pensamento só: viver

E deixar viver".

(Gladir Cabral) [9]

 

Assim, o "não matarás" é um radical convite à paz, logo à negação da guerra. Em toda e qualquer circunstância, nossa disposição deve ser: "Matar nunca, morrer se for preciso". [10]

 

 

3. A RECUSA DA VIDA

 

Numa forma de perguntas e respostas, o Catecismo de Westminster, preparado pelos protestantes reformados do século 17, avança que o sexto mandamento requer o cuidado de preservar a nossa vida e a dos outros. A preservação da vida do outro implica evitar em todas as ocasiões, as tentações e as práticas que "tendem a tirar, injustamente, a vida de alguém" e em defender as pessoas contra a violência. Demanda a disposição "para se reconciliar, suportando pacientemente e perdoando as injúrias, dando bem por mal, confortando e socorrendo os aflitos, e protegendo e defendendo o inocente". Ainda segundo o mesmo catecismo, a preservação da nossa vida inclui, entre outras atenções, o uso sóbrio da comida, dos remédios, do sono, do trabalho e do lazer. [11]

O sexto mandamento nos convida a não matar o outro e, num nível mais profundo, a não nos matar a nós mesmos. "Como uma pessoa se mata?", pergunta Harold Schulweis, que responde: "Há formas de escolher a morte, morrer mil mortes, remoer-se por meio das torturas da autorrecriminação e da culpa".

Diante de tantas formas de nos matar a nós mesmos, devemos nos examinar e lutar contra a que têm o potencial de nos destruir.

 

1. O descuido do corpo nos mata.

Quando não cuidamos do nosso próprio corpo, desobedecemos ao sexto mandamento. Cuidar de nossa saúde é nossa responsabilidade, que inclui a prevenção e a intervenção medicamentosa e cirúrgica.

Somos capazes de maltratar o nosso corpo. Muitas vezes, gastamos o nosso corpo como se fosse inexaurível. Muitas vezes, abusamos do sedentarismo que bloqueia nossas funções vitais. Muitas vezes, ingerimos drogas que entopem nossas veias ou destroem nossos órgãos.

Maltratamos nosso corpo quando nos alimentamos de modo errado. A comida não é inocente. Deve ser ingerida com e como prazer, mas de modo equilibrado na quantidade e disciplinado no tempo. A má nutrição mata. A obesidade mata. E essas mortes podemos evitar. É muito sintomático que uma das manifestações da depressão é a falta de vontade de viver que, muitas vezes, se expressa na falta de vontade de comer. A recusa ao alimento é uma recusa à vida. O excesso de alimento é uma antecipação da morte.

Nosso corpo precisa de movimento. Quando não o exercitamos, nós o vamos matando aos poucos.

Cuidar de nosso corpo é defender a nossa vida, a vida que nos foi dada para cuidar.

 

2. O trabalho excessivo nos mata.

O estilo de vida da maioria de nós é conduzido pelo dinheiro, ganho por meio do trabalho. Como queremos mais dinheiro, trabalhamos mais, às vezes até morrer.

Não só queremos ganhar mais dinheiro, queremos ganhar mais dinheiro do que os outros. Nesta corrida para a morte, arrebentamos nossos músculos e poluímos nossas mentes.

 

3. O vício nos mata.

Em busca de alegria ou prazer, somos capazes de ingerir drogas que nos viciam e nos matam, umas no curto prazo e outras, por vezes, tanto tempo depois, que sequer estabelecemos uma relação de causa e efeito (como no caso do tabagismo).

 

4. O estresse mata.

O conhecimento sobre os males do estresse deixou os laboratórios e alcançou as ruas. Todo mundo sabe que o estresse mata.

Como sabemos, "a condição de estresse é algo bem real para milhares de pessoas: desconforto físico, insônia, ansiedade, dispersão, descuido ou mesmo distúrbio alimentar. O estresse é o caminho para sintomas (e doenças) mais graves. Na melhor das hipóteses, ele vai matando um pouco por dia, solapando a alegria de viver e a capacidade de trabalho". [12]

Por isso, o cardiologia Adib Jatene dizia que o trabalho não aniquila ninguém, mas o aborrecimento mata.

 

5. Nossos traumas nos matam.

Ao longo da vida, vamos ouvimos o que não devemos, fazendo o que não devemos, vendo o que não devemos, sendo amados de modo certo e amados de modo errado, odiados com razão e odiados sem razão. Pessoas que nos amam nos fazem mal, mesmo involuntariamente. Num mundo de massa, somos indivíduos únicos. Como mariscos entre o mar e o rochedo, vão ficando marcas suaves e marcas dolorosas. Umas nos enchem de alegria e outras nos povoam de medo. Umas nos fazem voar e outras nos fazem desejar o fundo da caverna.

Não podemos escolher todas as experiências, selecionando só as boas, mas podemos decidir o que fazer com as ruins. A primeira e boa decisão é parar de negar que temos problemas. A segunda é procurar ajuda, ajuda que nos permita superar as dificuldades que nos matam.

 

6. A baixa autoestima nos mata.

Depreciar a nós mesmos é uma forma de morrer aos poucos. Quando nos desvalorizamos, esquecemos que somos imagem e semelhança de Deus. Quando nos escondemos na bagagem como Saul (Samuel 10.22), podemos perder a oportunidade de sermos reis.

Por razões diversas, aceitamos conceitos a nosso respeito, valorizamos palavras indevidas ditas sobre nós que são contra nós e vamos permitindo que a vida escorre debaixo dos nossos pés. Precisamos defender nossa própria vida.

Pode ser que queiramos nos esconder, "mas a maneira de combater a vergonha e de honrar quem somos é compartilhar nossas experiências com alguém que tenha conquistado o direito de ouvi-las – alguém que goste de nós, não apesar das nossas vulnerabilidades, mas por causa delas". [13]

 

7. O comodismo nos mata.

Por medo ou por apego à tradição, podemos nos condenar à morte. E isto vale para pessoas e organizações.

No plano pessoal, chegamos a reconhecer que precisamos mudar, mas não temos coragem. Nosso emprego não tem futuro, mas temos medo de arriscar e vamos definhando. A qualidade de vida de nosso casamento é péssima, mas temos medo de mexer nele e vamos nos isolando um do outro até cairmos no abismo entre nós.

Tomemos um exemplo do mundo empresarial. Durante décadas o cenário cultural do Rio de Janeiro tinha uma estrela de primeira grandeza: era a livraria DaVinci, no centro da cidade. Depois de 63 anos de atividade, fechou as portas em 2015. A herdeira que fechou a livraria admitiu, com amargura:

— Optei por um modelo de negócio familiar que não é mais rentável. Diferentemente de outras livrarias, não vendemos outros produtos como games e crédito para celular, nem café servimos. Foi uma opção errada e eu assumo a responsabilidade. [14]

Possivelmente, a família quis manter o negócio por um apego à tradição. Não quis mudar. Preferiu morrer.

É claro que apenas um fator não explica uma derrota, nem uma vitória, mas um fator para a morte de uma organização é a crença de que o sucesso obtido até agora vai continuar indefinidamente. No plano pessoal ou organizacional, podemos achar que "um choque pode até acontecer", mas não seremos abalados. [15]

 

8. A arrogância nos mata.

Por que grandes empresas quebram e viram pó, depois de terem sido gigantes em seu nicho?

Muitas falecem por arrogância, que faz com que esqueçam, por exemplo, a concorrência. Em sua arrogância, não percebem outras empresas, menores no início, mas que começam a fazer melhor o que as grandes faziam, arrebatando os clientes com suas preferências e recursos.

No plano pessoal, não é muito diferente. O arrogante não vê, porque tem olhos apenas para si. O arrogante fecha portas, até aquelas que não abriu. O arrogante é estrela que brilha por um tempo até se tornar cadente. O arrogante não se atualiza por achar que não tem com quem aprender. O arrogante não se relaciona com pessoas: no máximo, usa-as por um tempo, até ser descartado por elas. O arrogante se condena à solidão. A solidão é uma forma de morrer.

 

9. A inveja nos mata.

A frase está nos adesivos dos automóveis: a inveja mata. Nós a conhecemos. O sentimento é tão forte que Deus postulou um mandamento para que a evitemos (Êxodo 20.17) e não adotemos os procedimentos dos que parecem vitoriosos, ao lançarem mão do recurso da violência (Provérbios 3.31). "O rancor é cruel e a fúria é destruidora, mas quem consegue suportar a inveja? (Provérbios 27.4).

Ainda segundo a Bíblia, a inveja destrói o tolo (Jó 5.2), porque "o coração em paz dá vida ao corpo,mas a inveja apodrece os ossos" (Provérbios 14.30). Na realidade, "onde há inveja e ambição egoísta, aí há confusão e toda espécie de males" (Tiago 3.16).

 

10. A raiva nos mata.

A raiva que sentimos por pessoas que nos feriram demonstra nossa incapacidade de perdoar.

A raiva nos mata porque nos impede de manter relacionamentos.

A raiva pode, em casos extremos, a nos levar a matar outros seres, mas pode provocar nossa própria morte num plano emocional.

Por isso, precisamos prestar atenção ao mandamento bíblico, segundo o qual podemos nos irar, mas não pecar.

Há situações que nos alcançam o coração (quando acontecem conosco) ou os olhos (quando sobrevêm aos outros) que nos deixam irados, desejos que venha fogo do céu e destrua os agentes da maldade.

É um conforto saber que podemos nos irar. De fato, precisamos nos irar. Quando nos iramos, damos nomes aos nossos problemas, clareamos nossas emoções, identificamos nossas adversidades. A ira pode ser sadia.

Quando nos iramos, ficamos indignados contra a injustiça, diante da qual a fúria é legítima. Na verdade, é nosso dever nos irar contra todos os gestos que atentam contra a dignidade de uma pessoa. Estamos certos quando nos indignamos contra os agentes (indivíduos, comunidades ou instituições) que usam a força, seu poder, sua língua ou seu braço para massacrar inocentes. Mesmo nestes casos, nossa ira não pode nos levar a pecar.

Iramo-nos e pecamos quando nos deixamos possuir por uma raiva absoluta e cega, que passa a nos controlar poderosamente, como se saísse sangue dos nossos olhos no calor da hora.

Iramo-nos e pecamos quando, no afã de eliminar a maldade, apelamos para a violência com o objetivo de aniquilar fisicamente o seu autor.

Iramo-nos e pecamos quando não perdoamos quem errou, mesmo quando pede perdão.

Iramo-nos e pecamos quando agimos tomados pelo desejo de vingança contra alguém, não de justiça para todos os envolvidos na situação.

O pai que disciplina seu filho com vigor não peca, se não age com raiva.

O chefe que orienta seus liderados com firmeza não peca, se não extrapola para a cólera.

O confronto com quem errou deve ser acompanhado de generosa acolhida, não rancorosa rejeição.

O amor, que se expressa por vezes de modo intenso, indignado, irado, deve ser sempre uma forma de levar o outro viver, não de fazê-lo morrer.

 

Quem ama a sua vida cuida do seu corpo e da sua mente (1 Coríntios 6.19). Quem ama a sua vida ama o trabalho, mas não o idolatra (2 Timóteo 2.6). Quem ama a sua vida renuncia aos vícios e se põe no caminho da recuperação para não ser destruído por eles (1 Coríntios 6.12). Quem ama a sua vida cuida da sua saúde emocional, para não ser implodido pelo estresse (Mateus 6.25). Quem ama a sua vida convive com seus traumas, mas não permite que eles drenem a alegria de existir (Salmo 51.12). Quem ama a sua vida tem um conceito equilibrado de si mesmo (Romanos 12.3). Quem ama a sua vida não se acomoda ao que já alcançou (Filipenses 3.13). Quem ama a sua vida não postula superioridade sobre seus iguais (Filipenses 2.3). Quem ama a sua vida não deseja o que o outro tem porque o outro tem (1 João 2.16). Quem ama a sua vida não se deixa dominar pela raiva (Provérbios 29.11).

Quem ama a vida ama a paz.

 

4. A TRISTE ARTE DE MATAR O OUTRO

 

Se a vida é sagrada, destruí-la é pecado.

Idealmente, não deve haver exceções ao "Não matarás". Quando abrimos exceções para as guerras e para as penas de morte, nós nos apropriamos daquilo que não podemos dar: a vida. Quando achamos que algumas pessoas devem morrer, nós nos deixamos tomar pela a ideia que somos melhores do que elas. Quando decretamos a morte para uns e a vida para outro, usurpamos o lugar de Deus.

Quanto às exceções ficam aquém do número de dedos de uma das mãos. Podemos matar se for para preservar a vida; é o caso, por exemplo, do policial que atira num sequestrador para evitar que a vítima morre. Assim mesmo, o tiro tem que ser a única opção possível, esgotadas todas as outras. Em alguns casos de guerra, de guerra justa, justifica-se matar, também em último caso, não por causa de valores como defesa de território ou de imposição de uma ideologia, e nos casos considerados juntos nunca os inocentes, apenas os que estão guerreando também. Alguns abortos podem ser admitidos, se a vida da mãe estiver correndo sério e definitivo risco de morte. Quanto à eutanásia, a ponderação de Laura Schlesinger  é equilibrada: "Embora que no judaísmo e no cristianismo a eutanásia é considerada claramente como um assassinato, o status da eutanásia passiva é menos claro. Muitas instituições religiosas creem que, não importa o motivo ou os meios, a eutanásia direta é moralmente inaceitável. Estas mesmas tradições geralmente consideram legítimo descontinuar os procedimentos médicos que são onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionais ao resultado esperado. No assim chamado modo passivo, não se tem a vontade de provocar a morte, que é aceita como inevitável. Os cuidados básicos não podem ser negados". [16]Em todos os casos, "devemos nos preocupar com a imprecisão inerente dos seres humanos que estão tratando de advinhar o futuro de uma enfermidade ou que estão sujeitos a motivos erradas ao tomarem as decisões". [17]

 

O apelo a violência é, infelizmente, uma constância do ser humano, esquecido que Caim estava errado: somos guardadores de nossos irmãos.

 

1. A raiva mata.

O primeiro homicídio ocorreu por causa da raiva, que nasceu da rivalidade por atenção, aprovação e afeto de Deus. "Apesar dos esforços de Deus para ajudar Caim a encarar o que lhe parece difícil na vida, Caim assassina a Abel. Deus, então, dá a Caim a oportunidade de confessar e se arrepender, mas ele prefere mentir sobre o paradeiro de Abel: 'Não sei' (onde está Abel). Porventura, sou eu guardador do meu irmão? (Gênesis 4.9). A resposta cósmica a esta pergunta é: 'Sim!'". [18]

Ouvir o conselho de Esther Carrenho nos ajuda na defesa da vida:

"A raiva é uma força que podemos canalizar para o que é positivo. Se ficamos indignados com as injustiças sociais, podemos protestar contra aqueles que têm o poder, tanto político quanto financeiro, de mudar as coisas. O que o Evangelho não aceita é que a energia da raiva seja canalizada para a destruição. Faz-se necessário, então, que revisemos as motivações das nossas indignações. Se for por causa da nossa própria pessoa, que possamos crescer até o ponto de sabermos que não somos mais que pó – e pó não é muita coisa, mesmo. E que nos avaliemos para a descoberta da finalidade que damos aos sentimentos da raiva. Isso porque, como é uma força, a raiva não some pelo simples fato de negarmos ou de fingirmos que ela não existe. [19]

Fica claro no sexto mandamento que, "embora sejamos passíveis de ímpetos de cólera destrutivos, podemos também reagir de modo racional a quaisquer insultos, problemas ou atos contrários a nós". [20]

 

2. A rejeição mata.

Somos pessoas muito sensíveis.

Por isto, as palavras que nos dizem ou dizem sobre nós, desde o berço (e talvez deste o ventre materno), são essenciais. Elas nos fazem nos sentir pertencentes ou estranhos. Elas nos acolhem ou nos repudiam. Eis como nos sentimos.

Um menino que ouve do seu pai ou da sua mãe que não vai dar certo na vida lutará a vida inteira para dar certo e talvez dê errado, a menos que se trate.

Uma menina que escuta que sua chegada ao mundo transtornou a vida dos seus pais carregará uma culpa que não pelo resto da vida, a menos que seja curada.

Uma criança entregue para adoção precisará de afeto redobrado da mãe ou do pai do coração para se sentir realmente amada.

Uma pessoa recém-chegada a um novo grupo precisa ser recebida com carinho para se sentir pertencente a ele.

Uma palavra negativa, um gesto de indiferença, um olhar de reprovação, um golpe no corpo são formas de rejeição capazes de matar o outro, no sentido que o impede de viver de fato.

Precisamos cuidar de nossas atitudes, para que não sejam assassinas.

 

3. A maledicência mata.

Chamamos de fofocas os comentários que fazemos sobre os outros, mas a palavra não é boa. "Fofoca" é palavra de possível origem africana (bantu) e vem de "remexer"; fofocar é remexer na vida alheia. Neste sentido, é como um furto, porque se apropria de uma história de vida que não é a sua. "Maledicência" é melhor palavra pelo que tem de pior: é o ato de maldizer. Só a etimologia devia nos bastar.

A maledicência não pode ser apenas passatempo, como insinuam as publicações especializadas em fofocas. A maledicência mata.

Mesmo que seja verdadeira, a fofoca destrói porque é uma invasão da privacidade alheia. O maledicente compartilha notícias, falsas ou verdadeiras, sobre pessoas sem a autorização delas, a maioria que as pessoas não aprovariam. "A fofoca, portanto, é como um assassinato", pelo que "escutar fofocas equivale a permanecer impassível diante do assassinato do outro", vítima da maledicência. [21]Como diz a Bíblia, andar "como mexeriqueiro" é "atentar contra a vida do próximo" (Levítico 19.16).

É pecado ouvir fuxico; é pecado passar adiante uma informação não autorizada.

Com a proliferação da internet, há um outro tipo de maledicência, que vem no reencaminhamento ("forward", em inglês) de notas, algumas começando assim: "Não sei se é verdade, mas, pelo sim, pelo não, encaminho a mensagem que recebi…". Ora, quem repassa uma mentira é mentiroso. Assim, antes de passar, devemos conferir; na dúvida, só nos cabe deletar. Quando ouvimos algo desagradável sobre alguém, devemos perguntar-lhe se podemos ajudar.

Nos comentários postados nas redes sociais e nas páginas noticiosas, a maldade humana se revela em toda a sua intensidade em muitos comentários, geralmente anônimos, postados nesses meios. Predominam os xingamentos, os palavrões, num ódio gratuito, visando aniquilar pessoas ou ideias, em atos que poderíamos chamar de logo-homicídios.

 

4. A indiferença mata

O psiquiatra argentino Carlos Hernandez era diretor de um hospital psiquiátrico. Ele podia receber seus pacientes apenas como "loucos" e ministrar-lhe um remédio ou outra terapia. Ele decidiu construir um quarto perto do consultório para que os pacientes e seus familiares pudessem passar a noite. Era uma forma de acolher essas pessoas.

Ele disse que o psiquiatra e, por extensão, todas as pessoas, devem desenvolver, na vida e na profissão, algumas atitudes.

Para viver, precisamos ser tratados com TERNURA. Sem ternura, a vida não é possível. Ela dispensa palavras. Acontece no toque.

Para viver, precisamos ser recebidos com HOSPITALIDADE. Quando nos hospedam numa casa, somos tornados seus parentes. Quando somos reunidos numa mesa, a vida é partilhada conosco.

Para viver, precisamos experimentar o SILÊNCIO do outro. Quando nos escutam, nós sabemos quem somos. Conter as palavras é um gesto de generosidade. Quem cuida do outro ouve. Silêncio demanda aprendizagem.

Para viver, precisamos da COMUNICAÇÃO COMPASSIVA. Na hora de falar, cada palavra é envolvida em compaixão. A frase pensada será dita se o amor a aprovar. O conselho será dado se for realmente levantar o outro.

Precisamos, portanto, que o outro seja terno conosco e nos receba. Precisamos que o outro nos escute e use suas palavras como canais de compaixão.

E o outro?

O outro também precisa de nossa ternura. O outro precisa que coloquemos nossa mão sobre a sua pele e deixemos que o encontro nos conduza. O toque é a suprema comunicação.

O outro também carece que o recebamos. Quando acolhemos o outro, celebramos uma espécie de eucaristia, aquela que foi festejada por Jesus quando deu graças por ter os discípulos com ele durante a refeição.

O outro também cresce com o nosso silêncio, o silêncio de quem ouve, sem o julgar, sem o classificar, sem o diminuir. O silêncio é a chave do cuidado.

O outro também se fortalece quando nossas palavras lhe são ditas para levantá-lo. Nossas palavras são, neste caso, a vida que flui a partir de nós mesmos e alcança o coração do outro. [22]

A indiferença mata, mas a ternura, a hospitalidade, o silêncio e a comunicação compassiva geram vida.

 

5. O preconceito mata

Desmond Tutu, ganhador do prêmio Nobel da Paz em 1984 por sua luta contra o Apartheid, recordou o evento mais determinante da sua vida: "Quando eu era criança, vi um homem branco cumprimentar com o chapéu uma mulher negra. Peço que entenda que tal gesto era totalmente desconhecido em meu país. O homem branco era um bispo episcopal e a mulher negra era minha mãe". [23]

Somos naturalmente preconceituosos, embora nos aborreçamos profundamente diante dos preconceituosos quando somos as suas vítimas.

Quem vê o outro como igual tem o Espírito de Deus. Quem vê o outro como inferior distribui destruição. O autor de "Meia-Noite, Cristãos", Placide Capeau de Roquemaure (1847) canta que no nascimento de Jesus,

 

"O Redentor tirou todo o agravo.

Eis livre a terra, o céu se pode ver.

Torna um irmão quem antes era escravo.

O amor o medo fará desfazer".

 

Raramente admitimos, mas o preconceito tem a ver com a economia. Na verdade, a economia tem sua origem na psicologia. Quando os empregos diminuem, os nacionais querem fechar as portas para os imigrantes, mas não dizem que estão com medo de perder suas posições de trabalho; assacam frases feitas contra os estrangeiros, como "preguiçosos", "doentes", "sujos", etc. O preconceito estava dentro e aflorou. O preconceito só precisa de um pretexto para disparar a bala (palavra ou ato) que mata.

O preconceito mata o outro, sem direito de defesa.

O preconceito aniquila o outro, sem que tenha feito algo.

O preconceito massacra o outro, ao lhe negar o direito de ser.

O preconceito é uma quebra do sexto mandamento.

 

6. A humilhação mata

Parece que, para sermos alguém, precisamos negar que o outro também seja. Esta disposição interna nos leva a humilhar as pessoas, a salientar um defeito que imaginamos que tenha. Assim, chamamos as pessoas em função de sua altura, do seu cabelo ou da sua fala ou da sua profissão. As pessoas não têm nome, mas características. Um é baixinho. O outro é careca. Aquele é gago. Ela é negra. Ela é especial. Ela é feia.

Somos capazes de eleger algumas características como ruins, para humilhar as pessoas, às vezes como uma forma de diversão.

Parece que as melhores piadas têm, necessariamente, que humilhar as pessoas?

Por que nossas brincadeiras na escola escolhem palavras que encolhem os colegas? Mesmo entre as crianças, aí do que manca, aí do que usa óculos de grau forte, aí do gago, aí do gordo, aí do tímido.

Quem atenta para a advertência do sexto mandamento não humilha o outro. Quando humilhamos uma pessoa em público nós lhe tiramos a motivação para viver. Se ela estiver errada, não será estimulada a se arrepender e mudar. Quando publicamente destruímos a reputação de alguém, seu "caminho da volta se faz mais difícil pelas impressões negativas permanente que deixamos nas testemunhas do deboche público". [24]

Humilhar é uma forma de matar. Para controlar nosso ímpeto, devemos nos imaginar no lugar daquele a quem humilhamos.

Não há graça em palavras divertidas que humilham. Palavras matam. Palavras que humilham aniquilam.

 

7. A falta de perdão mata

Nossos erros com as pessoas interrompem relacionamentos, até mesmo os mais sólidas. A esperança de restauração desaparece quando não há perdão entre as partes.

A falta de perdão mata. Nosso ideal deve ser outro. Em sua oração, Jesus nos ensinou a pedir assim:

"Pai, perdoa-nos as nossas ofensas, assim como perdoamos os nossos ofensores" (Mateus 6.12).

Todos nós precisamos do perdão de Deus. E Jesus já providenciou este perdão, oferecendo-o na cruz, quando ele mesmo se ofereceu para morrer em nosso lugar. A morte dele é a nossa vida.

Perdoados, precisamos viver a dinâmica do perdão, perdoando-nos a nós mesmos, perdoando os outros, quando somos feridos por eles. Quem perdoa é livre, porque o perdão fecha a ferida. Quem não perdoa sangra.

Precisamos ser membros da comunidade dos perdoados que perdoam, que são aqueles que prestam atenção às seguintes palavras:

 

1. Para integrar a comunidade dos que perdoam, seja menos exigente com as pessoas.

2. Para aprender, seja menos crítico das pessoas.

3. Para ser justo, ouça antes de julgar.

4. Para ser honesto consigo mesmo, lembre-se que a ofensa que recebeu, você poderia tê-la feito.

5. Para avaliar suas decisões, saiba que você nunca se arrependerá por ter perdoado, mas poderá se arrepender por não perdoar (ou por ter julgado mal uma pessoa ou a pessoa morrer antes de vocês celebrarem a reconciliação).

6. Como um teste prático agora, deseje reencontrar no céu o "desafeto" de agora, até porque lá você não poderá escolher onde vai viver ou quem vai se relacionar. Lá é o céu, não o inferno.

7. Para ter forças para viver na dinâmica do perdão, olhe para o exemplo de Jesus.

8. Para seguir pela estrada boa, deseje seguir o exemplo de Jesus.

9. Para não se perder na vida, peça a Jesus para ser igual a ele.

10. Para demonstrar a sua fidelidade diante do Deus perdoador, "orgulhe-se" de perdoar, e não de cobrar dívidas ou devolver as ofensas. Você é assim: "duro", "justo", mas pode não ser assim. Você pode perdoar assim como é perdoado.

 

O perdão é como uma estrada que podemos percorrer de mãos dados com aqueles a quem ofendemos e nos perdoaram, com aqueles que ofenderam e perdoamos, guiados pelo Espírito de Deus.

 

8. O legalismo mata.

Temos que ser honestos: a religião mata.

Foi a religião que crucificou Jesus.

Para os contemporâneos de Jesus, o "eu, porém, lhes digo" era um sacrilégio, porque o que foi dito aos antigos era imexível. Jesus, na verdade, não mexeu, apenas interpretou o que foi dito aos antigos como devia ser, desde o início: com amor.

Pela lei dos antigos, um cego era culpado de sua cegueira: ele e/ou seus pais fizeram mereciam o castigo da cegueira. Se Jó estava sofrendo, algum pecado cometera.

O legalista é refém de um esquema mental segundo o qual Deus governa o mundo com regras que nem ele mesmo muda e que, mais ainda, ele retribui a cada um segundo o mérito de cada um. A salvação, portanto, que é graça pura de Deus, é vista como pura retribuição aos gestos humanos.

É muito difícil negar o esquema porque ele é universal e atemporal, embora não seja novitestamentário. No Novo Testamento, aprendemos que a salvação é um presente de Deus e que a fé é a resposta humana. O legalismo mantém a visão dominante que a fé é uma espécie de obra que atrai, como a salvação, que vem como prêmio.

No afã de fazer mais salvos, o legalista fulmina os que não merecem a salvação. O legalista pode até ser bem intencionado, no seu desnecessário esforço de por uma certa ordem nas coisas e de defender Deus contra os que abusam do seu amor.

O legalista se casou com a verdade, com a sua verdade, mas nada sabe sobre o amor de Deus. O legalista não tolera o erro e chega ao ponto de matar quem está errado. O legalista não tolera quem pensa diferente dele, pois só ele crê certo…

O legalista estabelece os alvos, o que pode ser bom, mas não tolera os que não o alcançam. Para o legalista, só há uma chance, não duas ou mais.

O legalista não olha para a desigualdade, como se houvesse oportunidades iguais para todos.

 

9. A desigualdade mata.

Não há oportunidades para todos. Por causa do pecado, a desigualdade é o fio que conduz a história.

O século 21 o mar Mediterrâneo, que liga a rica Europa à pobre África, se tornou um cemitério de adultos e crianças africanos, todos em busca de oportunidades que o seu continente lhes nega. A desigualdade leva ao desespero, que é explorado por traficantes de seres humanos.

É tanta a diferença que Winnie Byanyima, presidente de uma ONG que monitora a desigualdade

perguntou:

— Vocês querem realmente viver em um mundo em que 1% das pessoas possui mais do que o resto de nós, somados? [25]

Em 2015, com tendência de piora, o 1% mais rico detinha um patrimônio superior aos 99% restantes. Como escreveu um jornalista brasileiro (Clovis Rossi), "a riqueza do 1% passou de 44% em 2009, ápice da crise global, para 48% em 2014. Ou seja, a crise comeu parte da renda dos 99% restantes, mas não a dos ultrarricos". [26]

A denúncia do profeta Amós, há quase 3 mil anos, parece tirada das organizações sociais proféticas de hoje:

"Ai de vocês que gostam de banquetes, em que se deitam em sofás luxuosos e comem carne de ovelhas e de bezerros gordos! (…) Bebem vinho em taças enormes, usam os perfumes mais caros, mas não se importam com a desgraça do país" (Amós 6.4-6)

De onde vem esta riqueza toda? Pode vir de fonte honesta, mas se multiplica com a exploração da mão de obra. Só lhes interessa o lucro, que vem, entre outras estratégias, pelo pagamento de salários iníquos em comparação aos seus ganhos ou pelo engano.

Um homem prestes a se aposentar, depois de 40 anos de trabalho braçal, foi convencido por um gerente a receber pelo seu banco como conta corrente. Ele provavelmente bateu sua meta, mas o banco ficava com 10% do valor da aposentadoria, a título de remuneração dos serviços do banco, serviços nunca prestados porque desnecessários. Quando transferiu sua conta para um banco público, passou a receber 100% da sua já miserável aposentadoria.

A desigualdade torna humanos menos humanos, arrastando-se apenas para sobreviver. Não podemos aceitar a desigualdade como natural. É um atentado contra o sexto mandamento.

 

10. A corrupção mata.

Uma das formas mais perversas de homicídio é o desvio do dinheiro público (que é para todos) para o benefício de alguns por meio de atos corruptos. O procurador da República Deltan Dallagnol calcula que anualmente o montante do desvio pela corrupção alcance 200 bilhões de reais por ano, um valor que "permitiria triplicar o orçamento federal com a saúde ou a educação" e "quadruplicar todo o orçamento nacional (somando união, estados e todos os municípios) com segurança pública".

Dallagnol estima ainda que "seria possível tirar da faixa de miséria os dez milhões de habitantes que não recebem mensalmente o mínimo necessário para comprar alimentos que equivalham às calorias de que precisam para SOBREVIVER. Basta fazer a conta: dez milhões poderiam receber mil reais por mês, durante 12 meses". Assim, "além de matar por suprimir hospitais, remédios, alimentos, saneamento básico, segurança pública e escolas, a corrupção mata porque o agente corrupto fica com o rabo preso e não pode fiscalizar duramente o serviço mal prestado. Se a estrada ficou esburacada após curto tempo, paciência, porque ele não pode ir cobrar da empresa que pagou propina pra ele… Hoje é o desconhecido que tem um acidente e morre em função do buraco da estrada. Amanhã é nosso vizinho. Depois pode ser nosso filho, filha, ou outro familiar querido. Enfim, não temos dúvidas de que corrupção mata. Quando tratamos do problema da violência urbana, e estudamos os fatores, ali está a corrupção, a falta de educação, a desigualdade social, etc. vemos que estes últimos fatores são diretamente influenciados pelos níveis de corrupção". [27]

 

5. A ARTE DE MATAR

 

Ao longo da vida, matamos e fazemos viver, mesmo que não disponhamos de armas capazes de ferir.

Matamos quando vivemos na perspectiva de que a única pessoa que interessa seja a gente mesma. Só o nosso prazer se impõe. Só a nossa história importa. Só os nossos desejos são prioridades. Quem está ao nosso redor vai definhando como uma folha pisada no chão.

Matamos quando a bactéria da insensibilidade nos toma o corpo todo, de modo que não vemos o outro, não prestamos atenção ao outro e, se vemos, não lhe damos a atenção que precisam, como nós também precisamos, mas vamos empurrando a existência como se não necessitássemos.

Matamos quando, escravos das realizações pessoais, só enxergamos metas a bater, dinheiro a ganhar, sexo a desfrutar, aplausos a receber, como se não fossem conquistas que o vento leva num vento ligeiramente mais forte.

Matamos quando, não compreendendo a dinâmica da alma, condenamos os que sofrem, não damos a mão para os que estão atravessando o vale da sombra da ansiedade, da insegurança, do pânico ou da depressão, achando superficial e covardemente que, para atravessá-lo, basta a esta pessoa tomar coragem.

Matamos quando nos recusamos a mudar os padrões, que podem vir de longe na história da nossa família, mas são ruins porque motivados pela satisfação dos próprios instintos, mesmo que assassinos.

Diferentemente, porém, podemos fazer viver.

Fazemos viver quando o outro, em casa ou fora de casa, nos importa, como alguém realmente igual a nós.

Fazemos viver quando, revisando nosso jeito de ser e de agir, entregamos ao outro a bola para que ele faça o gol e celebre.

Fazemos viver quando nos recusamos a ser insensíveis, embora tenha sido esta a herança que nos tenha no tocado no latifúndio da infância. Então, decidimos sorrir, abraçar, ouvir, apesar do modo como fomos moldados.

Fazemos viver quando aceitamos as pessoas como elas são e as ajudamos a ser o que precisam ser.

Desejemos sempre fazer viver. No que depender de nós, a vida do outro, hoje e amanhã, valha a pena.

 

Contra a cultura da guerra e a favor da cultura da paz,

 

1. Acredite no que Jesus diz quando nos chama a sermos pacificadores. Deseje ser um pacificador. Ame a vida — a sua e a dos outros — nunca a morte. "Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus" (Mateus 5.9).

 

2. Aparte brigas. Não estimule as lutas, sejam corporais, gestuais ou verbais.

 

3. Consuma produtos de paz. Não consuma produtos (livros, filmes, programas de televisão) que exaltem a força ou a brutalidade, como jogos de guerra, lutas sangrentas entre pessoas.

 

4. Use suas palavras para abençoar. Se vier o desejo de maldizer, peça a Deus a virtude do silêncio.

 

5. Argumente. Não grite. Não levante a mão contra o outro. Uma vitória obtida no grito será derrota amanhã.

 

6. Valorize a igualdade entre os seres humanos e sua diversidade. Não humilhe as pessoas.

 

7. Eduque seu temperamento. Se ele for explosivo, ponha-se na academia de Jesus, para abrandá-lo. Ponha sua força a serviço dos fracos. Quando se irar, não peque.

 

8. Com realismo, olhe para você mesmo, a partir dos olhos de Jesus para com você. Não ceda a modismos que preconizem a eliminação das pessoas indesejáveis, como o da frase: "Bandido bom é bandido morto". [28]Éramos todos bandidos até a cruz nos tirar da cadeia. A pena de morte contra nós foi extinta, graças a Deus. Não concorde que "o dente por dente" seja a sua ideologia, nem que "a lei do talião" seja a sua.

 

9. Avalie seu modo de ser para com os outros. Se alguém diz que você é rude, você é rude. Deseje ser suave.

 

10. Entre a verdade e o amor, fique com o amor, que nunca exclui a verdade.

 

 

ACORDE

Em busca da obediência ao bíblico "Não matarás",

 

1. Em que lugar o uso da  força (verbal ou física) ocupa na minha vida na solução de conflitos? (AUTOCONHECIMENTO)

 

2. Quando você se excede no trato com o outro, você toma a iniciativa de pedir perdão? (CONFISSÃO)

 

3. Você costuma orar a Deus pedindo que o Espírito Santo guie as suas reações? (ORAÇÃO)

 

4. Você se classifica como alguém que age por impulso ou com calma? (REFLEXÃO)

 

5. Você deseja ser alguém que promove e vive a cultura da paz, contra, por exemplo, a da guerra do "bateu-levou"? (DECISÃO)

 

6. Você se empenha para que, a partir de você, haja paz na terra? (EMPENHO)

 

 

PARA LER

 

BROWN, Brené. A coragem de ser imperfeito [recurso eletrônico]. Tradução de Joel Macedo. Rio de Janeiro: Sextante, 2013, edição eletrônica,

 

FELDER, Leonard. Os dez desafios. São Paulo: Cultrix, 2003.

 

SHETH, Jagdish N. Os maus hábitos das boas empresas. São Paulo: Bookman, 2008.

 

SCHLESSINGER, Laura C. Los Diez Mandamientos. Traducción por Ana del Corral. New York: HarperCollins, 2006. Edição eletrônica.

 

SONTAG, Susan. A doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

 



[1]RIES, Al, TROUT, Mark. Marketing de guerra. São Paulo: McGrawHill, 1986.

[2]WAGNER, Peter. Oração de guerra.São Paulo: Bom Pastor, 1996.

[3]REISFIELD, Gary M., WILSON, George R. Use of Metaphor in the Discourse on Cancer. Journal of Clinical Oncology, Vol 22, No 19 (October 1), 2004: pp. 4024-4027.

[4]SONTAG, Susan. A doença como metáfora. Tradução de Márcio Ramalho.Rio de Janeiro: Graal, 1984, p. 42.

[5]Cf. a contracapa de outra edição do livro. SONTAG, Susan. A doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[6]REISFIELD, Gary M., WILSON, George R., op. cit.

[7]Cf. FELDER, Leonard. Os dez desafios. São Paulo: Cultrix, 2003, p. 116-117.

[8]SCHWEITZER, Albert. Reverence for Live. Disponível em <http://www.schweitzer.org/2012/en/work-and-life/reverence-for-live>.

[9]CABRAL, Gladir. Albert Schweitzer. Disponível em <http://ultimato.com.br/sites/gladircabral/2013/10/09/albert-schweitzer>

[10]A frase retoma o pensamento do marechal Cândido Rondon, que, no seu trabalho com os indígenas, proclamava: "Morrer se preciso for… matar nunca!"

[11]Uma versão do catecismo pode ser lida em <http://www.monergismo.com/textos/catecismos/catecismomaior_westminster.htm>. William Douglas cita este catecismo, pioneiro na interpretação do sexto mandamento. DOUGLAS, William. O poder dos dez mandamentos.São Paulo: Mundo Cristão, 2011, posição 1710.

[12]OLIVEIRA, Maria Luiza de. O estresse mata o trabalhador um pouco por dia. Disponível em <http://www.boog.com.br/artigos/o-estresse-mata-o-trabalhador-um-pouco-por-dia>

[13]BROWN, Brené. A coragem de ser imperfeito[recurso eletrônico]. Tradução de Joel Macedo. Rio de Janeiro: Sextante, 2013, edição eletrônica, posição 989.

[14]LIMA, Caio. Clássica, Livraria da Vinci fechará no Rio após 63 anos. Folha de S. Paulo, 29.5.2015, ilustrada.

[15]SHETH, Jagdish N. Os maus hábitos das boas empresas.São Paulo: Bookman, 2008. Conforme resumo na revista Época Negócios, edição eletrônica, sem data.

[16]SCHLESINGER, Laura, op. cit., posição 3497.

[17]SCHLESINGER, Laura, op. cit., posição 3510.

[18]SCHLESSINGER, Laura C. Los Diez Mandamientos. Traducción por Ana del Corral.New York: HarperCollins, 2006. Edição eletrônica, posição 3218.

[20]FELDER, Leonard, op. cit., posição 116.

[21]SCHLESINGER, Laura, op. cit., posição 3578.

[22]Escrito depois de ouvir, em maio de 2015, a palestra informal do psiquiatra argentino Carlos Hernandez, no Congresso do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãosem Guararema, SP.

[23]Citado por FELDER, Leonard, op. cit., p. 127.

[24]SCHLESINGER, Laura, op. cit., posição 3735.

[25]Citado por ROSSI, Clovis. "No mundo, 1% mais rico terá mais do que 99% restantes, diz ONG". Disponível em <http://app.folha.uol.com.br/#noticia/511098>

[27]Deltan Dallagnol, em correspondência ao autor, em maio de 2015.

[28]Em 2015, formou-se um grupo no Facebook (Alerta Tijucano) visando alertar aos moradores da Tijuca (bairro da zona norte do Rio de Janeiro) para evitar lugares onde ocorriam mais assaltos. Uma das participantes pediu para sair, escrevendo: "Estou deixando este grupo. O que pensava ser um uma forma de alerta contra a violência se tornou um meio de disseminá-la. Vejo diariamente um discurso de ódio, de olho por olho, dente por dente,que não se enquadra em nada com minha forma de olhar o mundo. Há dois mil anos recebemos uma lição máxima de amor que infelizmente ainda não conseguimos aprender. Se já sofri de violência? Já… Quem nunca sofreu? Só não vou alimentá-la". Entre os comentários discordantes, queformaram a maioria, apareceram: "Já vai tarde. Vai serotária longe". "Adote um vagabundo e seja feliz". "É esse papo de religião. 2 mil anos, lição de amor. Para, né? Não é o lugar, nem condiz com a realidade". "Quem está disposto a matar para ter bens materiais merece ser escória da sociedade e todo ódio junto. Que a polícia enchendo de bala esses vermes".