“Jesus respondeu: Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus.” (João 3.5).
Jesus estava aqui respondendo a Nicodemos, identificado por ele como mestre em Israel (Jo.3.10) e pelo evangelista João como fariseu e autoridade entre os judeus (Jo.3.1). No capítulo 1, João relata que uma comitiva de sacerdotes e levitas foi enviada de Jerusalém com a finalidade de investigar João Batista (Jo.1.19 a 28). Em meio ao inquérito, perguntado sobre a razão de batizar pessoas no rio Jordão, João Batista disse: “Eu batizo com água.” (Jo.1.26), expressão que é explicitada por Mateus: “Eu vos batizo com água tendo por base o arrependimento” (Mt.3.11). No dia seguinte João acrescentou: “Aquele que me enviou para batizar com água disse-me: Aquele sobre quem vires descer e permanecer o Espírito, este é o que batiza com o Espírito Santo.” (Jo.1.33). Marcos reúne essas afirmações numa só: “Eu vos batizo com água; ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo.” (Mc.1.8).
Nicodemos viera procurar Jesus não como uma pessoa isolada, mas como representante de uma religião estabelecida, de uma elite religiosa a quem Jesus, por um lado, intrigava e, por outro, incomodava. O mestre fariseu, portanto, estava frente a frente com aquele que havia sido mencionado por João Batista. A renovação preparada por este, por meio da água, era agora completada por Jesus, por meio do Espírito. Quando Jesus respondeu a Nicodemos que ele precisava “nascer da água e do Espírito”, estava dizendo a um fariseu legalista, que viera procurá-lo na calada da noite, que ele precisava mudar de mente por meio da regeneração operada pelo Espírito, e precisava dar um testemunho público dessa mudança. Exatamente o que João Batista dissera a outros fariseus que o procuraram para serem batizados por ele: “Produzi fruto próprio de arrependimento. Não fiqueis dizendo a vós mesmos: Abraão é nosso pai!” (Mt.3.8,9a). O seu batismo era um mero símbolo do arrependimento, não a causa dele. Por sua vez, Jesus exigia o mesmo que João Batista: arrependimento e fé (Mc.1.15).
Em João 3.3 Jesus havia dito a Nicodemos: “Ninguém pode ver o reino de Deus se não nascer de novo”, e o fariseu não entendeu. Jesus, então, disse a mesma coisa de outra maneira: “Se alguém não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus.” Não há diferença entre “nascer de novo” e “nascer da água e do Espírito”. O Mestre usou essa expressão porque seria mais facilmente entendida por Nicodemos. Não nos esqueçamos de que a Bíblia este ultimo lia era o Velho Testamento, onde o derramar da água é uma metáfora para a regeneração pelo Espírito, como, por exemplo, em Ezequiel 36.25-27, onde lemos: “aspergirei água pura sobre vós” (v.25), “vos darei um coração novo e porei um espírito novo dentro de vós” (v.26), e “porei o meu Espírito dentro de vós” (v.27). Em Isaías 44.3, a metáfora vem em forma de paralelismo: “Porque derramarei água sobre o sedento e torrentes sobre a terra seca; derramarei o meu Espírito sobre a tua posteridade e a minha bênção sobre a tua descendência.” Em Zacarias 13.1 temos: “Naquele dia haverá uma fonte aberta para a casa de Davi e para os habitantes de Jerusalém, para remover o pecado e a impureza.”
A palavra “água” (no hebraico mayim, e no grego hydor) aparece 460 vezes no Antigo Testamento e mais de 70 vezes no Novo Testamento. Como se pode ver nos textos acima citados, “Os profetas esperavam, para o futuro final da sua nação, a aspersão escatológica com a água purificadora divina, que purificaria tanto a terra como o povo, deixaria de lado a idolatria e colocaria um novo Espírito nos corações (….). A água ficou sendo um figura do Espírito de Javé, que traz a pureza e erradica a maldade.” (Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. I, Ed. Vida Nova, SP, 1981, p.123). Este sentido escatológico atinge seu ápice em Ezequiel 47.1-12, na figura da água que “sai por baixo da soleira do templo” e se transforma num rio purificador, caudaloso e profundo. A figura de Ezequiel é reproduzida em Apocalipse 22.1-5, o “rio da água da vida”, que “nasce do trono de Deus e do Cordeiro”, no meio da praça da Nova Jerusalém.
Em João 4.14 Jesus disse à mulher samaritana que a “água viva” que ele dá se torna na pessoa que a recebe “uma fonte de água a jorrar para a vida eterna”, e em João 7.37 e 38, repetiu essa expressão: “Se alguém tem sede venha a mim e beba. Como diz a Escritura, rios de água viva correrão do interior de quem crê em mim”. Note-se que o evangelista faz questão de explicar no v.39: “Ele disse isso referindo-se ao Espírito que os que nele cressem haveriam de receber”. Os que recebem a Jesus nascem de novo, “não de linhagem humana nem do desejo da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo.1.13), que autentica esse novo nascimento com o seu Espírito (Ef.1.13). Usando uma metáfora semelhante, Paulo diz que somos salvos “mediante o lavar da regeneração e da renovação realizados pelo Espírito Santo” (Tt.3.5).
A igreja primitiva tomou os elementos dos rituais de purificação da Velha Aliança e os transformou no simbolismo do batismo cristão, que é uma metáfora da Nova Aliança, da transformação que ocorre no íntimo da pessoa, como ensina Paulo aos romanos, referindo-se ao ato da imersão batismal: “Fomos sepultados com ele na morte pelo batismo, para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos, pela glória do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida.” (Rm.6.4). E em 1Coríntios 12.13 ele usa a mesma metáfora de outra maneira, mas no mesmo sentido: “Pois todos fomos batizados por um só Espírito para ser um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres; e a todos foi dado beber de um só Espírito.” Nascer da água é nascer do Espírito, e nascer do Espírito é nascer da água, porque o Espírito é o rio de água viva no íntimo do cristão. De modo nenhum isto quer dizer que o ato físico do batismo pode regenerar alguém.
Encerramos com Apocalipse 22.17: “O Espírito e a noiva dizem: Vem. E quem ouve diga: Vem. Quem tem sede, venha; e quem quiser, receba de graça a água da vida.”
Pr. Sylvio Macri