SEMINÁRIOS DE TEOLOGIA, 2 — A BÍBLIA COMO FONTE DE AUTORIDADE

A BÍBLIA COMO FONTE DE AUTORIDADE


Israel Belo de Azevedo

 

A teologia cristã é uma atividade em que o humano se encontra com o divino. Seja qual for o seu escopo (teologia bíblica, quando descreve a mensagem dos livros da Bíblia em seu contexto; teologia histórica, quando narra o desenvolvimento do pensamento cristão e reflete sobre o significado da história humana; teologia sistemática, quando organiza os ensinos bíblicos segundo tópicos; ou teologia prática, quando aplica as verdades bíblicas ao tempo e ao lugar dos teólogos e seus leitores), a teologia precisa derivar sua autoridade da Bíblia, senão será filosofia, logo completamente humana.

Na Bíblia, o divino se encontra com o humano. Como o modo de Deus atuar no mundo é sempre dialógico (em parceria com o ser humano) e dinâmico (num processo), aBiblia é, por excelência, o lugar desta parceria, que começa com a Revelação(com Deus se comunicando com o ser humano).

Ele se revela na natureza, na encarnação e escrituração (através da qual a sua vontade se tornou universal e claramente acessível). Embora habite "em luz inacessível, a quem homem algum jamais viu, nem é capaz de ver" (1Timóteo 6.16), Deus se mostra na sua Palavra, que podemos ler objetivamente.

Deus se revela.[1]A Bíblia é o lugar da revelação, é o lugar onde Deus se mostra, onde se desesconde. Quando esta revelação se torna Escritura, ela se torna acessível a todos os homens.

 deixa de ser oculto. Neste processo, Deus convocou homens conhecidos e anônimos (e talvez mulheres, anônimas) para a tarefa de registrar o que Ele desejava dizer, de um modo perene, profundo e claro. Em seu trabalho, eles foram inspirados por Deus.

A inspiração foi um processo, já terminado (por isto, lemos que nada devemos acrescentar à Biblia, cf. Apocalipse 22.19), pelo qual Deus em geral: 

 

.CAPACITOU (dando-lhes habilidades para escrever, como no caso dos historiadores, a exemplo dos cronistas de Israel e do evangelista Lucas, que tiveram que pesquisar ou testemunhar o que viram);

. INSPIROU (soprando sobre eles um sentimento que os fazia respirar o ar dos pulmões de Deus ou pensar os pensamentos de Deus, de modo a dizerem coisas maior que eles mesmos e adiante a cima do seu tempo),

. GUIOU, conduziu os autores para usar outros textos da sua cultura para afirmar as verdades singulares reveladas. Vemos esta orientação em cena nos apóstolos que se apropriaram do dos textos do Antigo para nos legar o Novo Testamento),

. em alguns casos, DITOU(como na experiência de alguns profetas, quando alguns deles não tendo noção do que diziam/escreviam, como podemos ler em Isaías 52-53).

 

Os autores continuaram humanos, com seus contextos, seus conhecimentos, suas personalidades, seus idiomas, seus temores. Deus superintendeu o trabalho deles.

O processo se assemelha à encarnação de Deus em Jesus, que era Deus e homem ao mesmo tempo. Como homem, vestiu-se como as pessoas de sua época e falou a língua e a linguagem do seu tempo). Como Deus, fez milagres e ensinou como ninguém antes ou depois.

O processo dinâmico que Deus usou realça que a Bíblia é divina e humana ao mesmo tempo.

A Bíblia é divina.

 

1. A Bíblia é divina porque é um projeto de Deus. Nela está a revelação do que Deus é e do que quer nos dizer.

 

2. A Bíblia é divina porque os seus autores foram inspirados por Deus e nos legaram um texto cuja final responsabilidade autoral pertence ao próprio Deus.

3. Esses textos foram preservados de modo fidedigno (digno de confiança). Não há contradição na Biblia, nem inexatidão, nem erro. Ao longo dos séculos, pessoas têm procurado procuraram os erros da biblia, mas não conseguem, porque é um livro divino e Deus não erra.

 

4. A Bíblia é divina porque coesa. Os estilos variam, os gêneros literários variam, mas a mensagem é coesa. O Antigo Testamento se encaixa com o Novo, o Pentateuco com os históricos, os proféticos com os apocalípticos, embora escritos num intervalo longuíssimo, por pessoas diferentes, no idioma, na experiência e na geografia.

 

5. A Bíblia é divina pela transformação que produz em seus leitores. Nenhum outro livro faz isto.

 

6. A Bíblia é divina porque todas as suas profecias se cumpriram ou vão se cumprir. A cada dia, profecias vão se cumprindo.

 

Ao mesmo tempo, a Biblia é humana.

 

1. A Biblia é humana porque é uma coletânea de materiais, em forma de histórias, poemas, cânticos, cartas, orações, recebidos por seres humanos que registraram estes textos a partir de sua memória ou de pesquisas que empreenderam. Por isto, todo conhecimento é bem-vindo, para compreendermos cada vez mais a Bíblia.

 

2. A Bíblia é humana porque ela foi preservada e canonizada por pessoas e comunidades, que não tinham naturalmente preparo o competência para tal. Por "preservada", estou me referindo à guarda, primeiro na memória (porque nasceu oral) e depois no texto. Certa vez, preguei sem dizer a versão que estava usado. No caso, era um texto traduzido do hebraico para o inglês e, por mim, do inglês para o português, texto este guardado e em encontrado em Qumran em 1948 (chamados de Manuscritos do Mar Morto). Quando acabei de ler, perguntei se notaram a diferença. Não notaram, porque não havia, porque fora preservado, sem corrupção, sem alteração. Era o mesmo texto.

 

3. A Biblia é humana porque foi canonizada, colocada na lista dos livros considerados inspirados. Os hebreus tinham o seu cânon (a sua lista de livros inspirados), composto por 39 livros, naquilo que chamam de Tanakh, que é um anagrama para as três divisões da Biblia.

O cânon protestante da Bíblia e o cânon judaico (TANAKH) contêm 24 livros (39 para os protestantes, pelos desdobramentos de alguns que são únicos para os hebreus, mas com o mesmo conteúdo ):

 

TORAH (LEI)– Pentateuco (5): Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio = 5 livros

 

NEVIN (Profetas) — (Primeiros) Proféticos (8): Josué, Juizes, Samuel (1 e 2 Samuel, para os protestantes), Reis (1 e 2 Reis, para os protestantes), Isaías, Jeremias, Ezequiel, Profetas Menores (Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias)  (21 )

 

KETUBIN (Escritos) — Hagiógrafos (Escritos Sagrados) — Proféticos (Posteriores) (11): Salmos, Provérbios, Jó, Cântico dos Cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiastes, Ester, Daniel, Esdras (Esdras e Neemias para os protestantes, conforme divisão feita em 1448 na Espanha) e Crônicas  (1 e 2 Crônicas). As divisões dos livros de Samuel, Reis e Crônicas foram feitas num Codex bíblico espanhol em 1448.

Ao verter a Biblia para o latim e contra a vontade do tradutor para o latim, Jerônimo (347-420), [2]a Igreja Católica incluiu outros sete livros na Vulgata: Sabedoria e Eclesiástico de Jesus ben Sirac, 1 e 2 Macabeus, Judite e Tobias, além de seis capítulos e dez versículos acrescentados ao livro de Ester e dois capítulos em Daniel.

Esses livros contém informações importantes para a historia do cânon. Escrevendo no terceiro século a.C., Jesus ben Sirac demonstra (na sua coletânea de provérbios chamada de Eclesiástico, publicado por seu neto no ano 132 a.C.) conhecer os livros judaicos, como vemos nos versículos abaixo:

 

Eclesiástico 47:9 — Davi "fez de todas as suas obras uma homenagem ao Santo e ao Altíssimo com palavras de louvor".

Eclesiástico 44:5 — "Com sua habilidade cultivaram a arte das melodias, publicaram os cânticos das escrituras".

Eclesiástico 47:17 — Salomão, "Encerraste enigmas em sentenças, teu nome foi glorificado até nas ilhas longínquas, e foste amado na tua paz".

Eclesiástico 49:12 — "Quanto aos doze profetas, refloresçam os seus ossos em seus túmulos, pois fortaleceram Jacó, e redimiram-se (da servidão) por uma fé corajosa".

 

O cronista de 2Macabeus (c. 124 a.C.) indica claramente que os livros do Antigo Testamento já eram lidos. Em 2Macabeus 2,13, fala de como Neemias formou uma biblioteca, reunindo tudo o que se referia aos reis e aos profetas, as obras de Davi e as cartas dos reis a respeito das ofertas.

Do mesmo modo, somos informados que Judas reuniu todos os livros espalhados pelas guerras que nos sobrevieram, e essa coleção se encontra em nosso poder. Por conseguinte, lemos: "se tendes necessidade de um desses livros, enviai-nos mensageiros que vo-los levarão".

 

Teologicamente, no entanto, esses livros não podem ser considerados inspirados por Deus por algumas razoes:

. Não eram livros que estavam no cânon hebraico. São livros tardios. O último livro, que é Malaquias, é do ano 404 antes de Cristo. A Sabedoria de Jesus ben Sirac faz uma síntese de outros livros de sabedoria, nada tendo nele que já não esteja em outras livros.

. A segunda razão é que, se a Biblia foi inspirada por Deus, como cremos, não pode se contradizer. Alguns apócrifos, por exemplo, recomendam práticas de feitiçaria, o que evidencia que não foram inspirados. A Biblia diz que nosso destino após esta vida é traçado aqui na terra. Depois que morremos, nada pode ser feito.

Alguns apócrifos, no entanto, ensinam que podemos orar pelos mortos: "tendo feito uma coleta, mandou 12 mil dracmas de prata a Jerusalém, para serem oferecidas em sacrifícios pelos pecados dos mortos. (…) É, pois, um santo e salutar pensamento orar pelos mortos, para que sejam livres dos seus pecados". (2Macabeus 12.43-46)

Recomenda-se apelar a magias para a obtenção de certos resultados. Em Tobias, um anjo recomenda: "Se tu puseres um pedacinho do seu coração sobre brasas acesas , o seu fumo afugenta toda a casta de demônios, tanto do homem como da mulher, de sorte que não tornam mais a chegar a eles. E o fel é bom para untar os olhos que têm algumas névoas, e sararão"

Atribui-se às esmolas um poder que anula a graça: "É boa a oração acompanhada do jejum, dar esmola vale mais do que juntar tesouros de ouro; porque a esmola livra da morte (eterna), e é a que apaga os pecados, e faz encontrar a misericórdia e a vida eterna". (Tobias 12.9)

Vem dos apócrifos o ensino sobre o purgatório: "As almas dos justos estão na mão de Deus, e não os tocará o tormento da morte. Pareceu aos olhos dos insensatos que morriam; e a sua saída deste mundo foi considerada como uma aflição, e a sua separação de nós como um extermínio; mas eles estão em paz (no céu). E, se eles sofreram tormentos diante dos homens, a sua esperança está cheia de imortalidade". (Sabedoria 3.1-4) [3]

Assim, portanto, o cânon para o Antigo Testamento é o mesmo para judeus e evangélicos.

Mais tarde, os cristãos fizeram o mesmo, colocando 27 livros do chamado Novo Testamento.

Sobre isto, há muita ficção. Nestes arroubos ficcionais, colocam-se lutas que não existiram. Esse cânon foi se formando naturalmente. Só alguns hereges contestavam, mas a igreja foi aceitando, num processo que pode ser assim ilustrado. Uma igreja recebia uma carta do apostolo Paulo. Essa carta era copiada e enviada para outra igreja. Eles não tinham nenhuma duvida que era a Palavra de Deus. Assim foi com carta após carta e com os evangelhos também. No ano 112, já temos claras evidências que a lista dos livros canônicos do Novo Testamento tinha 27 livros, o mesmo conjunto que temos hoje. Mais tarde, no século 4, alguns concílios, quando começava a surgir a Igreja Católica, chancelaram isto, que já era comum nas igrejas, sem discussão, exceto pelos hereges, como Marcião, que era gnóstico, não cristão, e por isto rejeitava os livros que eram contra a sua doutrina.

Essa formação foi suave, tranquila. Por isto, procuram-se datas para a canonização e nao se acha. Tudo se deu de forma natural.

 

4. A Bíblia é humana porque demanda estudo. Um dos princípios legados pela Reforma Protestante do século 17 é o livre-exame da Biblia, que deve ser feito com o uso da razão, para ser menor o preço que a interpretação pode gerar, ao possibilitar erros litúrgicos e morais. A liberdade da interpretação deve ser feita com responsabilidade. Na verdade, para quem estuda seriamente as Escrituras, as diferenças sao pequenas. Se pensarmos o conjunto dos ensinos cristãos como uma pirâmide, veremos que a base comum cristã é maior que as areas incomuns.

A interpretação bíblica tem regras, como na gramática da língua portuguesa. Não podemos dizer que a Biblia diz o que ela não diz. Nossa interpretação deve ser racional.

A Biblia não precisa de uma autoridade externa para legitimar uma interpretação. A Igreja Católica Romana tem outra perspectiva, por entender que a tradição, preservada pelo seu chamado magistério eclesiástico, é superior às Escrituras Sagradas, A Constituição Dogmática sobre Revelação Divina, baixada pelo Concílio Vaticano II, afirma que a Igreja "sempre considerou as Escrituras junto com a tradição sagrada como a regra suprema de fé, e sempre as considerará assim".Esta posição explica, por exemplo, desde o período medieval, a mudança do texto dos Dez Mandamentos, que, segundo o seu catecismo, são:

 

"1º – Adorar a Deus e amá-lo sobre todas as coisas.

– Não invocar o Santo Nome de Deus em vão.

'3º – Guardar domingos e festas de guarda.

– Honrar pai e mãe (e os outros legítimos superiores).

– Não matar (nem causar outro dano, no corpo ou na alma, a si mesmo ou ao próximo).

– Guardar castidade nas palavras e nas obras.

– Não furtar (nem injustamente reter ou danificar os bens do próximo).

– Não levantar falsos testemunhos.

– Guardar castidade nos pensamentos e nos desejos.

10º– Não cobiçar as coisas alheias."

 

Os Dez Mandamentos na versão católica do catolicismo, não guardam uma relação íntegra e fiel com o texto original (como em Êxodo 20). No catecismo, a intenção foi didática, simplificadora, mas o resultado é um afastamento da Biblia, que é suficientemente clara.

 

5. A Bíblia é humana porque demanda aplicação. A Bíblia será um grande livro, com magníficos ensinos, mas não cumprirá os seus objetivos, se não aplicarmos as suas verdades as nossas vidas.

 

6. A Biblia demanda decisão. Devemos decidir que a Biblia é o guia de Deus para aquilo que pensamos, para os princípios que elaboramos, para as nossas práticas pessoais e comunitárias.

 

Em síntese, devemos receber a Biblia com a fonte de autoridades de nossas vidas pela intenção dela. Trata-se de um projeto de Deus para se mostrar ao ser humano.

Devemos ler a Biblia por causa de sua sua inspiração. Nenhum livro foi escrito desse modo.

Devemos ler a Bíblia por sua coesão. Nenhum livro único é único, coeso, como a Biblia o é.

Devemos ler a Biblia por causa de sua fidedignidade. Nenhum livro foi alvo de tantos esforços iconoclastas e tem resistido com serenidade.

Devemos ler a Biblia por sua profundidade, Nenhum livro alcança alma a alma humana como a Palavra de Deus.

Devemos ler a Biblia por sua veracidade. O que ela escreve jamais foi desmentido e jamais o será.

Devemos ler a Biblia por sua capacidade de transformar seus leitores. Nenhum livro transforma. Os livros nos ajudam e nos inspiram, mas só a Bíblia nos transforma.



[1] Para nos ajudar na compreensão da palavra, lembremos que, não faz muito tempo, batíamos uma foto, cuja imagem era fixada num filme num rolo. Quando ficava cheio, o filme era revelada, revelando as fotografias batidas. O nome deste processo era revelação, isto é, o processo de desocultar a imagem.

[2] Jerônimoentendia que os livros apócrifos não podiam ser usadas para "estabelecer as doutrinas da Igreja".

[3]Para um estudo sobre a razão evangélica para rejeição aos apócrifos, consulte: http://www.icp.com.br/41materia2.asp