MENTORIA PASTORAL – TEMA 1: AUTONOMIA, HETERONOMIA E TEONOMIA

MENTORIA ESPIRITUAL

TEMA 1: AUTONOMIA, HETERONOMIA E TEONOMIA

 

Israel Belo de Azevedo

 

 

"Autonomia absoluta inevitavelmente leva à tirania". (Jack Provonsha)

 

Depois da Queda (Gênesis 3), somos como ovelhas sem pastor, imagem querida dos profetas do Antigo Testamento para descrever a realidade que fez Jesus chorar.

Mais que ovelhas sem pastor, somos ovelhas que, perdidas, querem se pastorear a si mesmas.

 

DOIS AMORES

 

Agostinho cunhou o par de opostos (cidade dos homens e cidade de Deus) para definir as possibilidades humanas: “dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até o desprezo de Deus – a terrestre; o amor de Deus até o desprezo de si – a celeste”. [1]

O “amor de si mesmo” é a autonomia, entendida, definida por Paul Tillich, como “a obediência do indivíduo à lei da razão, lei que ele encontra em si mesmo como ser racional”. [2]Esta lei visa buscar uma estrutura sedimentada na própria razão e se elege a si mesma como racional. Esta lei “está enraizada na constituição do próprio ser” e é considerada como sendo sua própria ontologia.[3]

Este ‘ontos’ (ser) não é realmente autônomo, por causa da Queda mesma. À autonomia se impõe, ainda nos termos tillichianos, uma heteronomia, uma lei que se impõe de fora e que apreende e configura a realidade do ser. Esta lei é poderosa, especialmente quando se organiza sob a forma da ditadura, seja ela governamental ou mediática. A heteronomia dilacera a nossa autonomia, que permanece uma utopia indelével.

A terceira via é a teonomia, proposta e definida por Tillich não demanda “a aceitação de uma lei divina imposta à razão por uma autoridade suprema", mas “significa a razão autônoma unida à própria profundidade”. [4]

Da “teonomia” de Tillich, fiquemos com o termo, não com o conceito, porque não temos como construí-las sem a revelação, ou autoridade última.

Se, na política, a autonomia pode ser confundida com uma teocracia (que não passa de uma heteronomia mentida), na personalidade se desenvolve em meio a uma luta, a que o apóstolo Paulo chama de “batalha espiritual" (Romanos 7), como a nos recordar da impossibilidade de uma autonomia unida à profundidade, novamente por causa do pecado. Em outras palavras, “oEspírito Santo habita em nós, mas o pecado também habita em nós. Nosso coração é o palco de uma batalha espiritual. Nossa tarefa é escolher o lado nesta luta. Se escolhemos o Espírito Santo, ele triunfará. Se escolhemos o pecado, ele nos vencerá”. [5]

Assim, podemos manter o termo ‘teonomia’, ressignificando-o para a aceitação de um ‘nomos’ divino que não nos é imposto, mas desejado por nós. A teonomia é uma oferta (“venham a mim os cansados” — Mateus 1.28; “eis que estou à porta e bato” — Apocalipse 3.20; “a verdade os libertará" — João 8.32).

A palavra bíblica para teonomia, a partir do ser humano, é “temor a Deus” ou obediência, residência da verdadeira sabedoria (Provérbio 1.7).

 

A ILUSÃO DA AUTONOMIA

 

Na verdade, cultivamos ilusões.

Achamos que desejamos, pensamos e decidimos de modo autônomo.

A autonomia deve ser buscada como um ideal. O mundo real faz dela um desejo legítimo, mas precisamos manter os pés no chão.

Nossa autonomia está condicionada à biologia que herdamos. Não somos livres para escolher nossa altura ou a cor de nossa pele, por exemplo. A nossa biologia é uma espécie de campo de futebol, com suas quatro linhas que delimitam onde podemos jogar. Assim mesmo somos livres, relativamente livres.

Nossa autonomia está ainda condicionada ao ambiente em que nos movemos. O que ouvimos, lemos e vemos vai formando nosso gosto, nosso pensamento, nossa ideologia, nossa maneira de estar no mundo. Não não somos determinados pelo ambiente, mas grandemente influenciados por ele. Mesmo assim somos livres, limitadamente livres.

Não temos autonomia total, para sermos completamente soberanos, mas nos resta muito. O campo de futebol é ainda grande. Dá para jogar — e muito — no retângulo que nos cabe. Somos influenciados, mas não determinados.

Os condicionamentos à nossa liberdade nos devem levar a ser mais cuidadosos e mais humildes. A liberdade do outro, mesmo que limitada, pode nos levar a decisões antes não imaginadas. Nossas decisões também influenciam. Antes de gritar que somos livres, devemos olhar para o que nos tem condicionado. Antes de achar que somos bolas chutadas de um lado pelo outro pela biologia ou pelo ambiente, devemos estar muito atentos para não seguir à multidão, não sucumbir diante da onda, não aderir à moda.

Podemos imaginar que caminhamos sobre uma estrada, sob cuja superfície compactam dois níveis, invisíveis mais reais: as influências a que somos submetidos e as predeterminações (biológicas e psicológicas) que nos compõem.

Assim mesmo, somos responsáveis, exclusivamente responsáveis, pelas escolhas que fazemos dentro dos limites, alguns expansíveis (como o lugar em que nascemos, outros não (como a nossa estatura).

 

FONTE DE AUTORIDADE

 

A ideia de que existe uma autoridade última capaz de nos orientar é, cada vez mais, vista como obsoleta. Para boa parte das pessoas, ser moderno é ser independente. Para muitos, dar ouvidos a palavras de terceiros representa uma negação da própria autonomia.

Parece que o homem moderno se acha superior aos dos períodos anteriores, aos quais chama de "primitivos" ou "antigos", sejam os gregos com seus deuses humanizados, sejam os judeus-cristãos com seu Deus transcendente. Prestar atenção a estes "antigos" é ser antigo, dizem os modernos, crentes no ideário da autonomia, que acabou entronizada no panteão, o lugar dos deuses.

Os modernos dizem rejeitar todo tipo heteronomia, mesmo que tornada hierônima (isto é, sagrada), ou vista como teônoma, embora use as roupas que todo mundo usa, aprecie dizer o que todo mundo diz, cultive a ideologia que todos seguem. Se tem uma coisa que os ditos modernos fazem é seguir. Não por acaso, as redes sociais é tecida por "seguidores". Eles dizem que sabem o que lhes é melhor, mas o melhor é o que lhes dizem para fazer.

Precisamos admitir, com a difícil coragem da humildade, que quanto mais aumenta a consciência humana de sua autonomia, menos liberdade há.

Mais autonomia, mais crimes, mais dependências de drogas, mais crianças assassinadas dentro e fora do ventre, mais pessoas desrespeitadas.

Mais autonomia, menos amor.

A solução não é menos autonomia, porque, feitos parecidos com Deus, somos livres por natureza.

A solução, pensam alguns, é algum tipo de teocracia. Não, porque toda teocracia não passa de ditadura de um homem ou grupo exercida em nome de Deus, embora não o seja.

O melhor mesmo é a democracia, concordarão outros, mesmo sabendo-a o governo de alguns que conquistam o governo por força de algum tipo de persuasão.

Deixe cada um fazer o que quiser, gritarão outros com suas faixas ou com seus corpos.

Os sistemas — lembremo-nos — são apenas sistemas, naturalmente imperfeitos, naturalmente humanos.

Abrimos, então, os evangelhos e vemos Jesus chorando diante das multidões que caminhavam de um lado para o outro como ovelhas sem pastor. Eis o retrato da humanidade.

Se, autonomamente, ela se deixasse pastorear por Jesus, não precisaríamos chorar por ela. Não precisaríamos chorar por nós.

Melhor seria se admitíssemos que não somos autônomos. Somos idealmente autônomos, mas não somos autônomos realmente. Por isto, nossa autonomia deve começar com a autocrítica.

A boa autonomia é coisa da razão que se torna humilde ao ponto de reconhecer sua limitação e sua necessidade de Deus, a autoridade última, no sentido de maior. A boa autonomia é teonômica.

A autonomia teonômica parte do pressuposto que existe uma autoridade última, que decide entre o que é certo e o que é errado, entre o que é bom e o que é ruim, entre o que gera vida e o que produz destruição.

A autonomia teonômica vai à Bíblia em busca de orientação, para com ela tecer sua teologia e sua prática.

A autonomia teonômica procura ajuda, seja para aclarar suas ideias ou para equilibrar suas emoções.

 

O REALISMO NECESSÁRIO

 

O psiquiatra Elko Perissinotti, do Hospital das Clínicas de São Paulo, lembrou-nos que "todas as pessoas buscam independência, liberdade e felicidade, mas é preciso se conformar com uma pequena cota de cada; quem não se dá conta de que as três condições não existem em plenitude acaba se decepcionando". [6]

O exercício da liberdade dos outros se choca com a nossa independência, sendo verdadeira a recíproca. Ser independente implica em abrir mão de parte de nossa felicidade, que habitava uma certa zona de conforto, ameaçado pela presença do outro, embora, como lembra Ailton Desidério Gonçalves, nossa existência acontece precisamente na relação com este outro. [7]

Precisamos ser realistas, sabendo que independência, liberdade e felicidade são rivais. Por isto, nem sempre somos o que gostaríamos de ser e nem sempre fazemos o que achamos certo fazer (Romanos 7.21).

Podemos escolher o difícil caminho da obediência, embora a Queda possa também conspurcar o conceito.

Como escrevi em outro lugar, “se ser cristão é obedecer a Cristo, um homem autenticamente humano não pode ser cristão, já que precisa viver segundo os ditames da (sua) razão, não da razão de ninguém. A crítica é óbvia: um cristão é uma pessoa de segunda classe, que não pensa por si mesmo". [8]

Devemos cuidar para que essas declarações não pareçam indicar que podemos “condicionar o amor de Jesus para conosco ao nosso amor por Ele. A consequência é, no plano da oração, que nós determinamos — com nossa (in)fidelidade — o padrão de sua resposta. Se somos obedientes, conseguimos tudo. Se não estamos conseguindo, é porque não somos obedientes. Está aberta a porta para o legalismo, segundo o qual nós merecemos ser abençoados em função daquilo que fazemos. Numa só frase: Deus só abençoa a quem guarda os seus mandamento, pois Ele só ama a quem O ama". [9]Devemos cuidar para não navegar por estas águas.

Diante das propostas do mundo, podemos responder “eu também", mas nosso prazer (mesmo que doído ou “doido", dirão) é concordar com o “tu, porém” pastoral paulino (1Timóteo 6.11; 2Timóteo 3.10, 3.14, 4.5; Tito 2.1)

Felizes seremos se o nosso prazer for meditar dia e noite no ‘nomos’ do Senhor Deus (Salmo 1.2).

A verdadeira liberdade mora na casa da obediência às leis de Deus. Na obediência, a liberdade deixa de ser uma possibilidade, para ser uma realidade, nunca sem tensão.

 

 

QUESTÕES PARA REFLEXÃO:

 

1. Qual a principal batalha espiritual da sua vida?

2. Que significado tem, na sua vida pessoal, a sua chamada para compartilhar a graça de Deus?

3. É na obediência que a liberdade de realiza?

4. Você é obediente?

 

 


[1]AGOSTINHO. A cidade de Deus. Tradução de J. Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 1319.

[2] TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. Tradução de Getúlio Berteli e Geraldo Korndorfer. São Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 97.

[3] RIBEIRO, Augustine Lucas Andrade. Os conceitos de Teonomia e Cidade de Deus: um diálogo entre Tillich e Agostinho. Disponível em Discernindo, v.1, n.1, p. 67-74, jan.dez.2013. Colhi neste artigo as citações a Agostinho e Tillich.

[4]TILLICH, Paul, op. cit., p. 98.

[5] AZEVEDO, Israel Belo de. Gálatas 2.20: Quem vive em mim. Disponível em < https://www.prazerdapalavra.com.br/component/content/article/2487-galatas-220-quem-vive-em-mim.html>

[6]Citado por IRENE RUBERT, Irene. Controle emocional pode elevar nível de tensão, prejudicando a saúde física e mental. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2010/07/773340-controle-emocional-pode-elevar-nivel-de-tensao-prejudicando-a-saude-fisica-e-mental.shtml>

[7]Lembrança mencionada num encontro de pastores cariocas no dia 20.9.2010.

[8] AZEVEDO, Israel Belo de. João 14.15: amor é obediência. Disponível em < https://prazerdapalavra.com.br/mensagens/por-livros-da-biblia/novo-testamento/313-joao/capitulo-14/896-jo1415-amor-e-obedicia>

[9] AZEVEDO, Israel Belo de. João 14.15: amor é obediência

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