Israel Belo de Azevedo
O jornalista José Roberto Guzzo publicou na edição de 4.10.2017 da revista Veja, da qual já foi diretor, um artigo em que analisa a “fé evangélica".
O tema do autor é a liberdade religiosa: “Quem é contra a liberdade de religião no Brasil?". Responde Guzzo que, “com certeza”, tem mais gente do que pensamos. “É preciso ser realmente muito bobo, ou muito hipócrita, para achar que está tudo em ordem com a liberdade religiosa no Brasil quando as nossas classes mais altas, que também se consideram as mais civilizadas, sentem tanto desprezo, irritação e antipatia pela religião que mais cresce no país", a “‘fé evangélica”’, integrada pela “vasta constelação de igrejas, seitas e cultos de origem protestante que nas estatísticas já reúnem um terço da população brasileira — e na vida real podem estar além disso".
O ex-diretor de Veja debocha da “gente bem do Brasil” que vê “com horror crescente” o crescimento desse “povo, em grande parte do ‘tipo moreno’, ou ‘brasileiro’". Os evangélicos são mal vistos pelos “mais ricos, mais instruídos, mais viajados, mais capacitados a discutir política, cultura e temas nacionais", por esses que se apresentam “como esclarecidos, liberais, intelectuais, modernos, politizados, sofisticados e portadores de diversas outras virtudes”.
O articulista reconhece que é difícil perceber um “preconceito que se pretende bem disfarçado” e destaca uma evidência: “Os meios de comunicação, por exemplo, raramente conseguem escrever ou dizer a palavra ‘evangélico’ sem colocar por perto alguma coisa que signifique ‘ameaça’, ‘medo’ou ‘perigo’” — ou desonestidade, ódio ou corrupção (acrescento). Lembro mais: recentemente um ministro acusado de corrupto foi mencionado como ‘pastor” no principal telejornal do país, que nunca usou o mesmo título para um ex-ministro candidato a delator que é ‘médico’, para ficar apenas num exemplo.
Essa elite, prossegue o repórter, vê os evangélicos como “retrógrados, reacionários, repressores, fascistas e inimigos da democracia", entre outros epítetos.
Voltando ao tema da liberdade, Guzzo assinala que “o problema dos evangélicos está nas suas convicções como cidadãos. No fundo, é a mesma história de sempre. O que atrapalha o Brasil, na visão das pessoas que se consideram capacitadas a pensar, são os brasileiros. O povo brasileiro, de fato, é muitas vezes inconveniente — principalmente quando vota. Os intelectuais, preocupados, lamentam o crescimento da bancada evangélica — mas raramente se lembram de que ela só cresce porque cresce o número de eleitores evangélicos”. Obviamente, “toda essa massa de gente que vai ao templo é formada por brasileiros que têm direito de votar, votam em quem quiserem, e o seu voto, infelizmente para a sensibilidade da elite, vale tanto [para eles] quanto o voto dos pais que colocam seus filhos no Colégio Santa Cruz” (que —informo — cobra uma mensalidade em torno de R$ 3.000,00).
O articulista registra ainda a indignação contra “a escroqueria aberta, comprovada e impune que é praticada há anos em tantos cultos evangélicos espalhados pelo Brasil afora”. Os que fazem assim “são o joio no meio do trigo, e há tanto joio nas igrejas evangélicas que fica difícil, muitas vezes, achar o trigo”.
Ele responde às preocupações perguntando se “épossível separar religião de vigarice?". Guzzo responde: “Possível, é — pensando bem, é perfeitamente possível. O impossível é escrever leis que resolvam o problema de maneira eficaz, racional e coerente com a democracia”. “O que fazer se o cidadão acredita que vai ficar rico, ou obter algum prodígio parecido, pagando o seu dízimo ao pastor? Os postes das cidades brasileiras também estão cobertos de cartazes com promessas de benefícios do tarô, dos búzios, da ‘amarração’ garantida". Trata-se de “propaganda 100% enganosa, mas fica assim mesmo — e talvez seja bom que fique, pois imagine-se o que acabaria saindo se nossos poderes públicos tentassem se meter nisso”.
Para as cabeças que se acham politicamente corretas, ironizadas pelo colunista, é desapontador “ver os cultos evangélicos crescendo, enquanto em Nova York e no resto do mundo bem-sucedido as pessoas vão a concertos de orquestras sinfônicas e não admitem a circulação de preconceitos”. Essas pessoas, que é claro não foram ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro (em homenagem à Reforma Protestante) para ver coros, orquestras e pianistas tocando peças “de qualidade” ficam frustradas porque “não podem exigir que os evangélicos sejam proibidos de existir; secretamente, bem que gostariam que eles sumissem por conta própria, mas essa não é opção disponível na vida real”.
Guzzo conclui: “Num momento em que apoiar a diversidade passou a ser a maior virtude que um cidadão pode ter, fica complicado sustentar que no caso dos evangélicos a diversidade não se aplica. Não há outro jeito. Se você defende a ‘arte incômoda’, digamos, tem de estar preparado para conviver com a “‘religião incômoda’”.
Houve uma reação apressada em muitos círculos evangélicos, que se esqueceram de perceber o tom totalmente irônico do autor contra as elites brasileiras, não contra os evangélicos. A linguagem é indireta, como se ele assumisse os preconceitos denunciados, embora o autor seja claro em os condenar.
A única crítica que dirige contra os evangélicos é a mesma que muitos fazemos, diante dos pregadores que prometem o que o Senhor Deus não promete, em suas propostas de troca de ofertas por bênçãos.
Não devemos descartar a ameaça real contra a liberdade religiosa no Brasil. O perigo vem do poder legislativo e executivo, quando criam leis ou baixam portarias que pretendem impor padrões morais à sociedade, como temos visto, por exemplo, na chamada questão de gênero, obrigando pais e professores a fazer o que está contra a sua consciência.
Uma área crítica é o esforço coordenado dos mesmos dois poderes rumo a um controle das igrejas (as ruins e as boas, lembremos — mas como separar o joio do grito, perguntemos, junto com J.R. Guzzo), num atentado ao pétreo princípio da separação entre igreja e estado
Quanto à crítica de Guzzo, a única que faz, de que há líderes religiosas escroques, temos que reconhecer que ele está certo em alguns casos e, ao mesmo tempo, cuidar para que a gestão dos recursos entregues em nossas igrejas sejam realmente usados para os fins a que se destinam, apresentados e conferidos com total transparência. Tanto quanto o juízo, por vezes injusto das elites e dos governos, devemos temer o juízo de Deus, que espera que façamos o que é certo, mesmo que protegidos pela lei dos homens a fazer o contrário.