Quem lê, mesmo que superficialmente, a primeira carta que o apóstolo Paulo escreveu aos cristãos coríntios, a qual faz parte do Novo Testamento, percebe facilmente que ela teve como objetivo resolver uma série de problemas surgidos naquela comunidade depois que ele partiu para outros destinos missionários. Um desses problemas, talvez o maior, era a desunião da igreja, que se manifestava de várias maneiras: a divisão em grupos partidários (autodenominados seguidores de Paulo, ou de Apolo, ou de Pedro, ou de Cristo), a existência de ações judiciais de uns irmãos contra outros, as acusações mútuas com respeito à participação nas práticas idolátricas, a falta de comunhão verdadeira na celebração da ceia do Senhor e as divergências quanto à posse e importância dos chamados dons do Espírito.
A discussão dessas questões oportunizou uma das mais belas páginas de toda a literatura mundial, que é o poema que muito mais tarde se tornou conhecido como capítulo 13 de 1Coríntios (a divisão da Bíblia em capítulos ocorreu mais de mil e duzentos anos após a carta ter sido escrita). O diagnóstico de Paulo para a desunião da igreja é que lhe faltava amor; sobravam orgulho, vaidade, preconceito, exibicionismo de dons, de conhecimento e de atos grandiosos, mas faltava amor. Mas a questão com a qual Paulo se debate mais extensamente é a da busca de supremacia por meio da posse de dons espirituais. Ele gasta três dos dezesseis capítulos com esse assunto. É aí que se aplica melhor o grande poema de Paulo, que começa assim: “Se eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, mas não tivesse amor…”.
E é justamente para demolir a suposta supremacia do dom de línguas que Paulo gasta todo o capítulo 14 de 1Coríntios. O apóstolo diz que a prática do dom de línguas sem amor é só barulho, como um sino que ressoa ou címbalo que retine (cap.13.1), ou como uma trombeta que não emite toque nítido, ou, ainda, o mesmo que falar ao vento (cap.14.7-9). A busca obsessiva por ter o dom de línguas é falta de amor e submissão ao Espírito Santo, que é quem dá os dons a quem ele quer dar, e não exatamente a quem quer tê-los (cap.12.11). A prática do dom de línguas sem amor pode tornar-se, e frequentemente isso acontece, uma tentativa frustrada de falar aos homens (cap.14.15 – “Como poderão louvar com vocês aqueles que não os entendem?”), bem como uma falha em testemunhar de Deus aos descrentes (cap.14.23).
O falar em línguas não tem proveito comum, pode-se dizer que é um dom “egoísta”, não existe nele um compartilhamento amoroso (cap.14.2-4 – “Quem fala em línguas fala apenas com Deus” e “Quem fala em línguas fortalece a si mesmo”). O uso do dom de línguas deve ser moderado pela racionalidade (Cap.14.15), a qual, justamente, permite esse compartilhamento amoroso. A exibição da capacidade de falar em línguas pode ser evidência de infantilidade espiritual (Cap.14.20), de alguém que somente busca atenção para si mesmo, e isso não é amor. A prática generalizada e incontrolada do dom de línguas pode descambar em desordem no culto e escândalo para os não crentes (Cap.14.39,23), o que, com certeza, não promove o amor.
Por outro lado, Paulo diz que os dons que promovem o amor, os que são praticados com amor, são aqueles que se usa para benefício de todos (cap.12.7), são os que se recebe em submissão amorosa ao Espírito de Deus, que os dá conforme a sua vontade (cap.12.11), são os que promovem a decência e a ordem (cap.14.39), são os que se pratica com humildade, isto é, sem objetivo de supremacia, e com entendimento, quer dizer, sob o domínio da inteligência (Cap.14.18).
Pr. Sylvio Macri